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Saúde pública

Eleição do CFM traz um mau presságio

médico de jaleco e estetoscópio, com bandeira brasileira ao fundo. Eleição do CFM

Publicado em 09/08/2024
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Revisado em 12/08/2024

Resultado da eleição para conselheiros do CFM traz um mau presságio para a medicina brasileira nos próximos anos. Leia na coluna de Mariana Varella.

 

A eleição dos conselheiros do Conselho Federal de Medicina (CFM) terminou na última quarta-feira (7) com a participação de  mais de 400 mil médicos das 27 unidades da Federação. Médicos de todo o Brasil escolheram os membros efetivos e suplentes que farão parte do órgão até setembro de 2029.

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Cada estado e o Distrito Federal elegeram dois conselheiros, um efetivo e outro suplente, na primeira eleição online do CFM. O conselho deverá escolher os membros da diretoria do órgão, composta de presidente, vice-presidente, secretário-geral, primeiro e segundo secretários e tesoureiro.

 

Atuação do CFM

A eleição deveria interessar não apenas os médicos, mas todos os brasileiros, já que o CFM é um órgão que interfere diretamente nas políticas públicas de saúde do país.

Além de estabelecer as normas e diretrizes para a prática médica e fiscalizar a conduta de profissionais, o conselho influencia as decisões que afetam a saúde pública brasileira. Nesse sentido, tem forte atuação política na definição de programas e políticas de saúde.

Ao apontarem que o CFM foi dominado por uma excessiva ideologização nos últimos anos, o que ficou evidente durante a pandemia de covid-19, muitos especialistas em saúde têm criticado o fato de o CFM atuar politicamente e pregado a “despolitização” do Conselho.

Discordo. A atuação política de um órgão como o CFM é esperada, não apenas na proteção dos interesses da classe médica, mas também na sugestão, defesa e crítica de políticas públicas.

Longe de ser um problema, como muitos acreditam, um conselho de profissionais médicos que tenha atuação política não é algo prejudicial ao país. Ao contrário, espera-se que um órgão da relevância do CFM vá além da defesa dos interesses de classe dos profissionais, mas também participe ativamente da saúde pública de um país em que mais de 80% da população depende exclusivamente do SUS.

Atuar politicamente, portanto, não fere as atribuições de um órgão como o CFM, por mais que a política venha sendo demonizada no Brasil. Afinal, a saúde pública depende de decisões e escolhas políticas, e é esperado que haja disputas na área.

O que não se deseja, por outro lado, é que, ao atuar em decisões que definirão políticas de saúde pública, se abandone ou menospreze o conhecimento e as evidências científicas que orientam a prática médica. Embora elas não determinem as políticas  de saúde – seria ingenuidade achar que apenas critérios técnicos definem políticas públicas -, elas devem ser consideradas por aqueles que as defendem e desenham, principalmente em áreas tão caras ao país, como saúde e educação.

Assim, o respeito às evidências de qualidade e aos órgãos que ajudam a definir diretrizes e protocolos para a prática médica deve ser ponto de partida para a atuação de qualquer conselho eleito pelo CFM, independentemente da inclinação ideológica dos seus membros.

 

Eleição do CFM em 2024

Nesse sentido, a eleição dos atuais conselheiros do CFM assusta. Os médicos eleitos pelos estados que concentram a maioria dos profissionais da área não se furtaram de assumir publicamente, em diversas ocasiões, posições contrárias às evidências científicas e ao bom exercício da medicina.

Em São Paulo, a dupla eleita, composta pelo infectologista Francisco Cardoso e o ginecologista e obstetra Krikor Boyaciyan, se identifica como “direita conservadora” e se coloca contra o abortamento após 22 semanas de gestação mesmo nos casos previstos por lei.

Durante a pandemia de covid-19, Cardoso foi crítico da vacina contra a doença nas redes sociais, posição que sustenta até hoje. Profissionais de saúde e jornalistas ainda se lembram de sua atuação em postagens na rede X (antigo Twitter) que divulgavam informação sobre as vacinas e medidas de distanciamento social.

Várias vezes, incluindo na sua participação na Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Covid no Senado, em 2021, defendeu o uso da hidroxicloroquina para tratar a doença, contrariando as evidências.

No Rio de Janeiro, foi eleito o ginecologista Raphael Câmara Medeiros Parente, relator da norma do CFM que proibia médicos de realizarem a assistolia fetal em casos de gravidez decorrente de estupro, mesmo o procedimento sendo recomendado pela OMS (Organização Mundial da Saúde) para interromper gestações avançadas.

No Distrito Federal, ganhou a médica Rosylane Nascimento das Mercês Rocha, que quando era vice-presidente do conselho comemorou, nas redes sociais, os atos antidemocráticos do 8 de janeiro e sofreu processo administrativo movido pelo próprio CFM.

Segundo o jornal “Folha de São Paulo”, dos 27 médicos eleitos, ao menos 14 se posicionaram a favor do uso da cloroquina para tratar covid. Não chega a surpreender, se lembrarmos da atuação do CFM durante a pandemia.

O ex-presidente do CFM Mauro Ribeiro foi investigado pela CPI da Covid, por ter assinado parecer pedindo a liberação do uso da hidroxicloroquina em situações excepcionais, em 2020.

José Hiran da Silva Gallo, atual presidente e conselheiro do CFM eleito na última eleição por Rondônia,  enviou, em fevereiro de 2023,  um ofício à Anvisa criticando o uso de máscaras.  “O uso de máscaras como sinalização de virtude ou como medida de sensação de pertencimento social jamais podem ser impostas a pessoas que não compartilham de tais ideologias ou comportamentos, em especial na ausência de evidência científica ou mesmo eventual prejuízo à saúde do paciente”, afirmou à época.

Muitos desses novos conselheiros foram apoiados ativamente por bolsonaristas conhecidos, como Luciano Hang, dono da rede de lojas Havan, que se valem de suas opiniões para defender posições contrárias às evidências científicas. É um mau sinal.

Espera-se, portanto, que o CFM faça política, mas aquela em defesa dos interesses da saúde pública brasileira, com base em evidências científicas e nas diretrizes dos órgãos competentes. Negá-las, além de ir contra os preceitos da medicina moderna, só confirmará que o órgão, nos últimos anos, vem sendo vítima da influência de uma política reacionária e negacionista que fere a boa prática médica e compromete sua atuação.

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