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Saúde pública

Do Carandiru ao CDP: como Drauzio Varella começou seus atendimentos nas cadeias?

O médico fala sobre a jornada de mais de três décadas atendendo homens e mulheres no sistema penitenciário paulista
Publicado em 24/05/2023
Revisado em 24/05/2023

O médico fala sobre a jornada de mais de três décadas atendendo homens e mulheres no sistema penitenciário paulista.

 

Uma experiência de quase 35 anos de atendimento médico voluntário em cadeias e presídios, masculinos e femininos, não é uma coisa à toa, e Drauzio Varella levou isso muito a sério. Tanto que por essa trilha fez muitas amizades, cuidou de muitas pessoas, escreveu uma trilogia de livros sobre assunto – ”Estação Carandiru” (1999), “Carcereiros” (2012) e “Prisioneiras” (2017) – e, acima de tudo, expandiu o conhecimento sobre seu ofício. “Aprendi muito sobre medicina fazendo esse corpo a corpo nos presídios, porque é uma medicina de guerra. Você não tem exames de laboratório ou de imagem. Tem apenas uma cesta básica de medicamentos e um número absurdo de doentes para examinar e tratar. Sei que errei muito, principalmente pela falta de recursos, mas no dia seguinte você faz voltar e a gente vê o que deu certo e o que deu errado. É uma experiência que levo até hoje”, explica.

Mas antes de entrar na cadeia para atender presos, sempre uma vez por semana, essa história tem um prólogo incontornável chamado aids. “Fui envolvido pela epidemia de aids desde o início. Soube dos primeiros casos ainda no ano de 1981 e dois anos depois, quando tinha 40 anos, consegui um estágio de três meses no Memorial Hospital de Nova York. A cidade era o epicentro da epidemia americana. O número de casos ainda era pequeno comparado com o que viria depois, mas já era significativo. Aids é uma doença que provoca depressão imunológica, infecções oportunistas e câncer. Era tudo que mais me interessava na medicina, porque na época chefiava o Serviço de Imunologia no Hospital do Câncer.” 

Drauzio já tinha experiência com doentes graves, pessoas com câncer, e acreditava que lidava bem com pacientes que iam a óbito, mas nada o tinha preparado para a quantidade de jovens afetados fatalmente pela doença. “Quando voltei para o Brasil, tinha certeza que aquilo viria para cá e que seria muito grave. E a imprensa chamava de ‘peste gay’, o que era um horror e também um desserviço, porque aí as mulheres não se sentiam alvo, os homens hétero também não, enquanto isso a doença ia se espalhando feito louca.”

Foi então que Drauzio conseguiu um espaço no jornal “O Estado de São Paulo” e escreveu um longo artigo de página inteira em edição dominical, explicando detalhadamente a aids, buscando tirar todo véu de preconceito e ignorância relacionado à doença. “Eu era grande amigo do Fernando Vieira de Mello, diretor de jornalismo da antiga e saudosa Jovem Pan, e ele me chamou pra ir à rádio, para gravar uma entrevista. A princípio titubeei, porque naquela época médico sério não falava em veículos de comunicação de massa de jeito nenhum. Era considerado propaganda, autopublicidade. Mas acabei indo e gravei.” A entrevista foi dividida em partes e ficou rodando na programação da rádio AM por muito tempo, mas Drauzio só soube umas duas ou três semanas depois. Ficou indignado por não terem avisado e ligou para Vieira de Mello, que lhe respondeu da seguinte forma: “Você vai ter que decidir – quer ficar bem com seus colegas ou dividir informações no meio de uma epidemia?”. “Isso me pegou. Foi aí que comecei a fazer umas vinhetas que ficaram muito populares em São Paulo”, conta o médico.

Essas vinhetas fizeram tanto sucesso que acabaram chamando a atenção de uma empresária catarinense chamada Maria Odete Brandalise, dona da TV Barriga Verde (afiliada da Rede Bandeirantes), que convidou Drauzio para fazer uma série de vídeos. Ele aceitou com a condição de poder falar por onde a epidemia de aids estava se espalhando. Lugares de exclusão, tais como cadeias, comunidades gays e os guetos dos usuários de drogas injetáveis. Foi então que, em 1989, Drauzio Varella conheceu o Carandiru. 

“Passei um dia gravando lá e foi uma coisa que me tocou muito. Fiquei com a cadeia na cabeça por umas duas, três semanas. Depois parei para refletir que se aquilo estava na minha cabeça sem parar, eu tinha que chegar mais perto. Aí fui lá conversar com o diretor da cadeia. Expliquei que queria fazer um trabalho de testagem lá, que iria conseguir os testes. Tinha quase 8 mil detentos lá, e mais umas 1500 pessoas em visitas íntimas. A sociedade deixava 1500 mulheres entrarem lá para fazerem sexo com aqueles caras sem dar camisinha, sem dar nenhuma informação sequer. O diretor topou, consegui os testes, e consegui uns detentos usuários de cocaína injetável, muito hábeis para pegar veia, para me ajudar. Fizemos quase 1500 testes e pouco mais de 17% eram HIV positivo. Hoje esse número fica em torno de 1%”.

Drauzio logo viu que não adiantava apenas testar, era preciso mais, era preciso fazer uma campanha de esclarecimento regular. “Depois de tomar uma canseira do diretor que achava que aquilo não ia dar em nada, consegui um equipamento com a UNIP [Universidade Paulista] e comecei a dar palestras num cinema antigo que tinha lá. Dava aula e respondia perguntas, sempre de modo direto, sem firulas. Isso foi tomando corpo e virou um programa de prevenção que funcionou por mais de dez anos. Todo esse trabalho de conscientização acabou com a cocaína injetável na cadeia e diminuiu a incidência da aids.”

Mas conscientização sobre aids também não era o bastante quando todos ali padeciam de problemas às vezes muito mais prosaicos, como sarna, sífilis e candidíase. “O Carandiru tinha um serviço médico muito precário, como todas as cadeias, então como eu estava sempre lá, os presos começaram a me parar no corredor para me perguntar sobre os mais diversos sintomas. Vi que não era certo não escutar essas pessoas, então comecei a ir uma vez por semana para fazer esse atendimento, coisa que faço até hoje. Aí foi quando definitivamente entrei nesse universo e me envolvi muito. Fiquei fascinado por eles.”

Drauzio foi ao Carandiru semanalmente de 1989 até 2002, quando ele foi implodido. Depois passou a trabalhar na Penitenciária do Estado, logo atrás de onde era o Carandiru, e ficou três anos. Depois, mais um ano no CDP (Centro de Detenção Provisória) da Vila Independência, caminho para São Bernardo. Em 2006, mudou a chave e começou a trabalhar voluntariamente em um presídio feminino, tudo em São Paulo, capital. 

“No primeiro dia que cheguei à penitenciária feminina vi que tinha que esquecer tudo que tinha aprendido em cadeia de homem. Não tem nada ver uma com a outra. Primeiro porque quando homem vai pra cadeia tem sempre alguém que vai visitar, mãe, irmã, companheira, namorada. Quando a mulher vai pra cadeia, ela é abandonada completamente. Isso faz diferença. Segundo porque mulher tem filho, e quando se está na cadeia isso é fonte de angústia e incerteza porque ela sabe que ninguém vai saber cuidar do filho como ela cuida”, relembra.

As diferenças entre cadeias masculinas e femininas são muitas e isso, obviamente, afeta as demandas médicas e os problemas de saúde. “A organização na [cadeia] feminina é muito melhor. São duas presas por cela, por exemplo. Nesse CDP que estou agora são 25 homens por cela. Isso muda tudo. As dinâmicas, os problemas de saúde, a dificuldade de convivência. A situação de saúde na cadeia masculina é sempre muito pior, principalmente por causa da superlotação, mas também porque os homens são muito mais ignorantes e descuidados com a saúde. As mulheres são sempre mais cautelosas. Na dos homens, por exemplo, tem problemas hoje que já tratava nos tempos do Carandiru, coisas como sarna. Sífilis também. Não tem um dia que não apareça um caso. Já nas femininas não existe esse tipo de promiscuidade de contato. Geralmente são questões ligadas a menstruação, infecções, candidíase.”

O CDP a que Drauzio se refere é o do Belém, que tem 1500 presos e nenhum atendimento médico, apenas três ou quatro enfermeiros (o mesmo acontece nos outros 42 CDPs do Estado de São Paulo). Os próprios prisioneiros é que fazem a pré-seleção de quem será atendido de acordo com prioridades e/ou gravidade. Se forem problemas simples como pedido de receita ou uma dipirona, os enfermeiros dão conta. Se for algo mais grave, o jeito é esperar a visita semanal do dr. Drauzio.

Mas voltando à questão prisões masculinas versus femininas, o que existe em comum entre elas? “Aí não tem escapatória, são invariavelmente problemas relacionados à pobreza mesmo. Coisas também simples, como dor de dente, canal.  Tudo coisa que dá para resolver lá mesmo. Mas não existe infraestrutura, nem interesse do poder público de cuidar daquelas pessoas.” Enquanto isso, Drauzio vai fazendo o que pode com o que tem. Uma vez por semana.

Veja também: Trabalho no Carandiru e o impacto do massacre | Comentando Comentários

 

Sobre o autor: Dafne Sampaio é jornalista e analista de mídias sociais. Interessa-se por cultura, ciências, saúde, comunicação e, acima de tudo, pessoas.

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