Hipóteses defende que a frieza dos médicos surge da necessidade de lidar com o sofrimento humano diariamente. Currículo da Unicamp busca resgatar empatia.
Médicos, enfermeiros e outros profissionais ligados à área da saúde são incentivados a não demonstrar os sentimentos e, se possível, se distanciar emocionalmente dos pacientes. De outra forma, como lidar com o sofrimento humano, mortes, doenças e traumas e sair ileso? A tática utilizada para minimizar essas emoções é manter certo afastamento e partir da premissa de que o médico deve se preocupar somente em tratar a doença do paciente.
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A frieza dos médicos se transformou em algo tão inquestionável que os pacientes até se espantam quando o especialista fica mais de 5 minutos no consultório e conversa olhando em seu olhos, não para a tela do computador.
O médico e professor de emergências clínicas Marco Antônio de Carvalho Filho, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), percebeu há 5 anos essa ”deficiência” nos estudantes de Medicina e desenvolveu um projeto de pesquisa que propõe recuperar a empatia dos futuros doutores, a fim de melhorar a relação médico/paciente. Ele, que ministra aulas para o sexto ano de Medicina, notou que os alunos chegavam quase prontos para exercer a profissão nessa etapa do curso, com inúmeras habilidades técnicas, mas, na prática, não se sentiam à vontade ao atuar nos consultórios e lidar diretamente com o paciente. ”Faltava algo, então fomos entender o que era.”
A primeira iniciativa de trabalhar a frieza dos médicos foi alterar a grade horária de um dos cursos mais disputados do país (203 alunos por vaga, segundo o último vestibular). Além disso, os coordenadores passaram a convidar médicos renomados, que ”gostam de ser médicos e nasceram para isso” para dar palestras aos alunos do primeiro ano da faculdade e contar um pouco dos desafios da carreira. Os alunos também participam de palestras de pacientes, para estabelecer um contato inicial com eles.
Arte e reflexão
Outra técnica adotada e que vem surtindo efeito contra a frieza dos médicos é utilizar obras de artes e música para discutir e induzir à reflexão sobre temas espinhosos, como morte, perda e frustração. Na opinião de Marco Antônio, apesar da morte ser inerente à medicina, ninguém discute abertamente o assunto. ”É como se tivéssemos que ser infalíveis o tempo todo, ter respostas para tudo. Compartilhar os sentimentos que envolvem uma situação dessas pode ser considerado um sinal de ineficiência”, destaca.
No segundo ano, é estimulada a habilidade de comunicação dos futuros médicos. ”Como devemos iniciar uma conversa com o paciente e como fazer com que ele se sinta à vontade? É importante ficar claro que não oferecemos verdades ou regras absolutas, somente uma oportunidade de o estudante refletir”, emenda.
Hipóteses sobre a falta de empatia
Marco Antônio revela que sua equipe entrevistou durante 3 anos seguidos todos os estudantes que chegavam à universidade, a fim de saber os motivos que os levavam a escolher a carreira. ”Salvar vidas e conhecer a natureza do homem são as respostas campeãs”, explica. Mas o que acontece com a empatia, que simplesmente desaparece ao fim do curso?
”Todo calouro de medicina tem que estudar muito para conseguir entrar numa boa faculdade. Então, para isso, ele deixa de fazer outras atividades, se fecha. Logo, não tem uma vivência social muito rica. Além disso, dificilmente ele precisou trabalhar, já que os alunos normalmente são de classe econômica alta. Então, o aluno entra na faculdade totalmente protegido e de repente se depara com sofrimento de toda espécie: desigualdade social, falta de estrutura, de leitos, muita dor, gente que morre à toa. Eles até chegam com vontade de mudar, mas o curso é extremamente massacrante”, destaca.
A empatia, habilidade de importar-se com o outro, dá lugar ao cinismo como forma de blindar-se emocionalmente. ”Tudo porque ele não consegue elaborar os sentimentos que vivencia durante o curso. Mas se blindar é uma armadilha, porque não conseguimos parar de sentir. Então o resultado é que o próprio médico fica frustrado e infeliz”, completa Marco Antônio.
Resgate da empatia
O resgate da empatia perdida ao longo de tantos plantões e jornadas intermináveis ocorre no sexto ano, quando os alunos são induzidos a atender pacientes fictícios, representados por uma companhia de atores da própria universidade. ”Lidar com a doença traz uma carga emocional muito grande”, revela.
As consultas são gravadas e depois toda a turma assiste e discute com os professores sobre os erros e acertos e verificam se a abordagem estava correta. A experiência, que começou em 2010, já ensinou ”novos olhares” a mais de 400 alunos.
Durante esse período, segundo o especialista, os níveis de empatia foram avaliados antes e depois das atividades por meio de uma escala internacional de empatia médica. O resultado da avaliação dos alunos do sexto ano passou de 117 pontos para 123. A pesquisa constatou também que 94% dos alunos consideraram que sua capacidade de ouvir o paciente havia evoluído; 91% acreditavam que a capacidade de ouvir outra pessoa também melhorara.
A experiência pedagógica foi publicada na revista “Academic Medicine” e tem sido apresentada em vários congressos médicos internacionais. ”Eles receberam muito bem as atividades, porque a gente explica que é legítimo se envolver, que o aluno pode chorar, sentir, e que a prática da medicina vai muito além do resultado imediato, já que estamos cuidando de um ser humano”, finaliza Marco Antônio.