As experiências em outros territórios indígenas brasileiros mostram que é possível evitar crises humanitárias como a do povo yanomami.
“Por que vocês estão aqui?”, “Vocês não acharam emprego em outro lugar?”, “Vocês vão morrer”. Essas foram algumas das frases que a médica de família e comunidade Carla Rodrigues ouviu ao chegar ao território yanomami, ainda em maio de 2021. Logo de início, ela percebeu o clima de hostilidade. Nem mesmo a antropóloga, responsável por recepcionar os profissionais de saúde e introduzi-los à cultura dos povos locais, estava lá. Ela havia sido demitida sob a justificativa de que não tinha trabalho ali.
Enquanto isso, os yanomami, um grupo de indígenas que vivem entre os estados de Roraima e Amazonas, precisavam cada vez mais de ajuda médica. Só nos últimos quatro anos, foram 570 mortes de crianças yanomami por conta de contaminação por mercúrio e fome, consequências do avanço do garimpo ilegal na região. Em 2022, esses povos concentraram quase 10% de todos os casos de malária no Brasil.
O órgão responsável por oferecer a atenção à saúde indígena é a SESAI, a Secretaria Especial de Saúde Indígena, um braço do Ministério da Saúde. Sob sua supervisão, está o SASISUS, Subsistema de Atenção à Saúde Indígena. É através dele que os povos originários têm — ou deveriam ter — a sua qualidade de vida assegurada.
Como funciona o SASISUS?
O Subsistema de Atenção à Saúde Indígena se divide em vários DSEI, isto é, Distrito Sanitário Especial Indígena. Eles são um modelo de atenção descentralizado que responde pelo atendimento em saúde a vários territórios. Cada DSEI pode agregar diversos municípios ou até estados, já que a sua divisão foi feita considerando critérios culturais e políticos desses povos, e não as fronteiras geográficas.
A rede de serviços dos DSEI conta com:
- Postos de saúde: postos com uma estrutura física mais simples, de 30m²;
- Pólos-base: podem estar localizados dentro da comunidade indígena ou em um município próximo. Equivalem às Unidades Básicas de Saúde (UBS) e possuem uma equipe multidisciplinar composta por médico, enfermeiro, dentista e auxiliar de enfermagem;
- Casas de Saúde do Índio (Casais): locais de recepção aos indígenas que fazem a ponte entre a aldeia e os demais serviços do SUS, como o atendimento secundário e terciário. Lá, é dado todo o apoio e acompanhamento durante tratamentos que exijam internação hospitalar.
Além desses serviços, os DSEI contam ainda com os Agentes Indígenas de Saúde, os AIS. Esses profissionais são indígenas da própria comunidade que recebem o treinamento necessário para examinar, diagnosticar e medicar os demais moradores da aldeia. Na prática, eles fazem o acompanhamento de gestantes, pacientes crônicos, vacinação, tratamentos de longa duração e também oferecem os primeiros socorros e o atendimento às doenças mais frequentes.
Veja também: Como funciona o SUS?
Doenças com maior incidência
As doenças mais frequentes variam em cada DSEI. Isso porque o contexto e as condições de vida de cada grupo indígena interferem nos problemas que os atingem. Os dados disponíveis não ajudam: os sistemas de saúde são mal alimentados e impedem uma visão mais realista da situação.
Ainda assim, sabe-se que as taxas de morbidade e mortalidade entre os indígenas é de três a quatro vezes maior do que as da população em geral. Muitos óbitos não têm causa registrada, mas, entre os que têm, percebe-se a alta incidência de:
- Infecções respiratórias e gastrointestinais agudas;
- Malária;
- Tuberculose;
- Doenças sexualmente transmissíveis;
- Desnutrição;
- E doenças preveníveis por vacina.
Além disso, quando o relacionamento com a população regional é mais próximo e há mudanças no estilo de vida da aldeia, surgem outros problemas, como hipertensão, diabetes, câncer, alcoolismo, depressão, entre outros. A alta taxa de suicídio também chama a atenção, chegando a quase o triplo da média nacional e sendo mais comum entre jovens de 10 a 19 anos.
A crise yanomami
Muitas dessas condições têm sido alardeadas no território yanomami há algum tempo. As imagens de crianças extremamente desnutridas comoveram o país e chamaram a atenção para uma crise humanitária que se intensificou nos últimos cinco anos.
Para se ter uma ideia, as mortes por doenças evitáveis entre 2019 e 2022 sofreu um aumento de quase 30% em relação ao período de 2015 a 2018. Entre 2020 e 2021, foram mais de 40 mil casos de malária na população yanomami, que não passa de 35 mil pessoas. Em 2021, mais da metade das crianças acompanhadas tinha um quadro de desnutrição aguda. Em 2022, 99 crianças de 1 a 4 anos haviam morrido por desnutrição, pneumonia ou diarreia.
O aumento vertiginoso dessas doenças está intimamente relacionado ao avanço do garimpo ilegal na região. Ainda que essa ameaça já exista na terra indígena yanomami há décadas, ela se expandiu assustadoramente nos últimos tempos. Segundo dados do MapBiomas, a destruição causada pelo garimpo aumentou em 3.350% entre 2016 e 2020. Especialistas afirmam que isso se deu, entre outros motivos, pela fragilização das políticas ambientais e de proteção aos povos indígenas.
A dra. Carla Rodrigues atuou pelo programa Mais Médicos no DSEI Yanomami e Yekuana entre maio de 2021 e fevereiro de 2022. Em uma equipe volante, ela visitava aldeias em regiões com e sem garimpo. A diferença era nítida:
“No território que eu andei que não tinha garimpo, ainda que falte muitas coisas, é uma saúde completamente diferente. As crianças têm o mínimo de nutrição e são felizes. Já esses territórios com garimpo apresentam outra realidade. Os garimpeiros seduzem os indígenas e fazem com que eles comecem a defender o garimpo, porque não têm outra assistência do Estado ali. Os indígenas foram armados e virou um ambiente instável. Na minha penúltima entrada, em janeiro de 2022, saímos debaixo de fogo cruzado. A gente suspeita que eram os garimpeiros incentivando os indígenas. Eles não querem que permaneçamos ali, sob o risco de denunciá-los”, relata.
Dessa forma, além de trazer a malária e contaminar a água e o solo que os indígenas utilizam para se alimentar, os garimpeiros ainda criam um clima de guerrilha na região. Postos de saúde foram invadidos e equipes de saúde, expulsas. A própria dra. Carla teve de abandonar o trabalho no DSEI por correr risco de vida.
“O polo-base que entramos estava fechado devido à violência e nós saímos com ele sendo fechado novamente pelo mesmo motivo. E era um lugar que a comunidade precisava muito de atendimento, mas a gente não conseguiu ficar ali”, desabafa a médica de família.
Os profissionais também são bastante visados. Se tentassem reclamar, sofriam retaliações. Nos últimos anos, houve ainda a interrupção da formação de mais agentes indígenas de saúde, somado à perda dos líderes locais das comunidades para o garimpo.
“É um desmonte da saúde adicionado a uma flexibilização ambiental e à falta de controle. Não tinha ninguém fazendo a segurança do território. Pelo contrário, eram pessoas ajudando com que ele fosse ainda mais invadido”, afirma a dra. Carla.
Veja também: Comunidades tradicionais e a preservação do meio ambiente | Recorte
Outra realidade
Por outro lado, o Brasil soma 738.624 indígenas divididos em aproximadamente 305 etnias, 5.361 aldeias e uma extensão territorial de 1.135.182,35 km². Portanto, a situação sanitária de cada grupo indígena varia dependendo do local e do contexto em que ele está inserido.
A médica de família e comunidade Daphne Lourenço começou a atuar pelo Mais Médicos em 2020 no DSEI Xingu, no Mato Grosso, e hoje faz parte do Projeto Xingu, um programa de extensão da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) presente na região há mais de 60 anos. Lá, o problema é outro: as aldeias estão envoltas pelo cinturão do agronegócio, especialmente os produtores de soja.
“Eles estão a toda hora tentando cooptar os indígenas para o movimento, convencer de que é rentável e fazê-los entrar em cooperativas em que os indígenas cedem a terra para eles plantarem”, diz a médica.
Como consequência, os problemas de saúde também mudam: por estarem mais próximos do modo de vida da cidade, os indígenas desenvolvem mais doenças crônicas, como hipertensão e diabetes. Expostos às queimadas e às mudanças climáticas nos plantios, eles também são atingidos pela desnutrição, ainda que com menor gravidade do que os yanomami.
No entanto, os 16 povos que vivem no Xingu são bastante unidos contra o assédio do agronegócio. “Em geral, eles lutam para que o território demarcado continue em paz, sem a invasão da monocultura ou da extração da madeira”, destaca a dra. Daphne.
Segundo a médica, a consciência política dos indígenas do Xingu vem muito da história desses povos. Trazidos para a região durante a ditadura, eles se reúnem, discutem e se organizam em prol do que é mais importante para a comunidade. A presença do Projeto Xingu também tem papel fundamental nisso: ao longo de sua atuação, foram feitas muitas oficinas de gestão política e territorial que incentivam os indígenas a reivindicarem seus direitos.
Não à toa, a resposta do DSEI Xingu durante a pandemia da covid-19 foi um sucesso. A dra. Daphne, então ponto focal para a doença no Distrito, conta que houve um esforço conjunto entre o Projeto Xingu, o Instituto Socioambiental (ISA), a Associação Terra Indígena Xingu (ATIX) e a Fundação Nacional dos Povos Indígenas (FUNAI) para proteger os indígenas da doença.
“A gente montou um planejamento que envolvia desde a criação de locais especiais para o atendimento até a distribuição de alimentos, testagem, manejo clínico… Assim, nós conseguimos atrasar a chegada da covid até praticamente o início da vacinação. Isso fez muita diferença para o território, porque permitiu que a gente se organizasse para atender as pessoas doentes”, lembra a médica.
Orelhas gigantes, boca pequena e coração enorme
Um dos pontos-chave para o sucesso da ação foi a união de vários conhecimentos, como o universitário, o da medicina tradicional e também o da medicina indígena. Os raizeiros locais, por exemplo, curandeiros que utilizam plantas medicinais para o tratamento de enfermidades, participavam ativamente das reuniões.
Para a médica, essa interculturalidade é o maior desafio de trabalhar na terra indígena. “A gente está em uma posição colonizadora o tempo inteiro. Tentar desconstruir esse papel e valorizar a medicina indígena é muito importante”, afirma.
Logo nos primeiros meses de trabalho no Xingu, a dra. Daphne atendeu um paciente que atribuía o seu quadro grave de covid ao fato de ter cortado uma árvore de espírito forte sem pedir permissão. Mesmo com a saturação baixíssima, o indígena não queria aceitar o oxigênio, porque acreditava que isso traria feitiço para ele.
“Eu estava sozinha na área nessa época, não tive formação em saúde indígena antes de chegar. Aquilo para mim foi muito difícil. Eu passava o dia sentada do lado dele, tentando convencê-lo. Até que ele perdeu a paciência e disse: ‘Doutora, você não vai me ouvir? Eu não vou usar o oxigênio. Se você quiser ficar aqui comigo, você fica, mas não me pede mais o oxigênio’”, lembra.
Médica e paciente, então, chegaram a um acordo: ela estaria ali caso ele mudasse de ideia. Alguns dias depois, o pajé chegou e o paciente, pouco a pouco, foi se recuperando.
“Quando eu conto essa história, muita gente me pergunta: ‘Você acha que o pajé o curou?’. Eu acho que a pergunta não é essa. Ele fez o que acreditava que tinha que ser feito e o meu papel foi respeitar isso. Eu trouxe a informação do meu conhecimento, mas respeitei a decisão sobre o corpo dele. Naquele momento, eu comecei a entender o que era valorizar a medicina que eu não conheço e tentar dialogar com ela”, reflete a dra. Daphne.
No curso de formação feito pelo Projeto Xingu, os AIS desenham os profissionais de saúde que trabalham com os indígenas com orelhas gigantes, boca pequena e coração enorme. “Isso significa que não adianta você chegar a territórios nessa situação de vulnerabilidade social e de saúde, em um contexto cultural totalmente diferente do seu, e não estar com o coração aberto. Nós devemos saber ouvir antes de falar e estar sempre de coração aberto”, ilustra.
Tem solução?
Para a dra. Daphne, ainda que falte muito da articulação entre o SASISUS e o próprio SUS, um ponto forte do DSEI Xingu é justamente a capacitação de profissionais que entendam da saúde indígena.
“Os cursos de saúde do Brasil não falam sobre saúde indígena. A gente consegue trazer isso para os profissionais e vemos os nossos alunos voltando no futuro para trabalhar em território indígena. A longo prazo, temos profissionais extremamente capacitados atuando em campo”, destaca a médica.
Ouvir esses profissionais é outra iniciativa essencial, na visão da dra. Carla Rodrigues, bem como oferecer à juventude indígena outras alternativas que não o garimpo ou o agronegócio.
“O primeiro passo foi dado: o governo começou a se importar. A crise yanomami não é nova, o que é novo é o governo olhar e tentar resolver. Vamos ter que ampliar o nosso conceito do que é saúde. Compreender a língua deles, a cultura. Recuperar os alimentos, o roçado, os rios. O trabalho será longo, mas tem solução”, opina.
Veja também: Por que é tão importante preservar a nossa biodiversidade? | Recorte