Mais de 720 mil pessoas morrem por suicídio todos os anos, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS). A causa já é a terceira principal entre jovens de 15 a 29 anos, e 73% dos casos ocorrem em países de baixa e média renda.
Os números, embora alarmantes, são importantes para compreender a magnitude do problema. O suicídio não é um fenômeno individual, mas uma questão de saúde pública. Assim, não há uma única causa por trás dele: as razões são variadas e incluem fatores sociais, culturais, econômicos, psicológicos, psiquiátricos, tecnológicos e de acesso à saúde, por exemplo.
“O suicídio não acontece no vazio, mas em contextos de desigualdade, discriminação, violência, falta de cuidado em saúde mental e também de redes de apoio frágeis”, afirma Karen Scavacini, psicóloga, doutora em saúde mental e fundadora do Instituto Vita Alere, referência em prevenção e posvenção do suicídio.
Por isso, é necessário olhar para o suicídio como uma questão de saúde pública. “Isso significa reconhecer que políticas públicas, acesso a serviços, formação de profissionais, campanhas de conscientização e combate ao estigma são fundamentais. Não basta pedir que a pessoa ‘procure ajuda’ se essa ajuda não existe ou não é acessível. Não basta falar que é só ligado à depressão, se temos tantas causas psicossociais”, completa.
Tratar o suicídio dessa forma, destaca Karen, é assumir que toda a sociedade tem responsabilidade em criar condições mais protetivas, reduzir riscos e ampliar possibilidades de cuidado e pertencimento.
Suicídio no Brasil
Entre 2010 e 2019, houve um aumento de 43% nos casos anuais de suicídio no Brasil, segundo dados da Secretaria de Viligência em Saúde, ligada ao Ministério da Saúde. Em 2021, o suicídio foi a 27ª causa de morte no país, afetando principalmente a população mais jovem. Entre adolescentes de 15 a 19 anos e jovens de 20 a 29 anos, foi, respectivamente, a terceira e quarta maior causa de mortalidade, conforme apontou o Boletim Epidemiológico Vol. 55, divulgado em 2024.
O documento diz que, “embora o Brasil não apresente taxas elevadas de suicídio em um contexto global, é preocupante a tendência crescente de mortalidade por essa causa no país.”
“No Brasil, não dá para falar de suicídio sem considerar o peso das desigualdades sociais. A pobreza (e o endividamento, especialmente por conta das bets/jogos de azar), o desemprego, a falta de perspectivas para os jovens e a dificuldade de acesso a serviços básicos de saúde criam situações de vulnerabilidade que podem aumentar o sofrimento. Além disso, a violência estrutural, o racismo, a desigualdade de gênero e a LGBTfobia também têm impacto direto na saúde mental e no risco de suicídio”, afirma Karen.
Do ponto de vista cultural, a especialista diz que ainda convivemos com muito estigma. Falar sobre sofrimento psíquico muitas vezes é visto como fraqueza, e isso impede que as pessoas busquem apoio.
“Em algumas regiões do país, questões ligadas à religiosidade, à masculinidade e ao silêncio sobre temas considerados ‘tabu’ também tornam a prevenção mais difícil. Outro ponto importante é o fácil acesso a meios letais, que em muitas regiões do país estão disponíveis sem regulação ou restrição adequada. E hoje, a internet também se tornou um espaço de risco: o contato com conteúdos impróprios, grupos que estimulam a autolesão ou algoritmos que reforçam padrões nocivos podem agravar o sofrimento, principalmente entre adolescentes”, destaca.
Porém, é necessário também olhar para os fatores protetores: quando há vínculos familiares fortes, redes de apoio comunitárias, espaços de convivência seguros, oportunidades de trabalho e estudo, além de acesso a informação de qualidade e a serviços de saúde mental, o risco diminui, aponta a psicóloga. “Não se trata só de diminuir os fatores de risco, mas também de aumentar os fatores de proteção, construindo contextos mais saudáveis, com mais cuidado e oportunidades para todos.”

Grupos mais vulneráveis
Ao olhar os dados, nota-se que alguns grupos são mais vulneráveis que outros em relação ao suicídio. “Homens, por exemplo, morrem mais por suicídio em quase todas as idades, especialmente entre os 30 e 59 anos. Isso tem muito a ver com a dificuldade cultural de falar sobre sentimentos, a pressão para ser forte o tempo todo e a ideia de que pedir ajuda é sinal de fraqueza. A cultura do álcool, muito presente no Brasil, também pesa, porque aumenta a impulsividade e pode agravar quadros de depressão”, explica Karen.
Para se ter uma ideia, os dados do Ministério da Saúde indicam que 77,8% das mortes por suicídio em 2021 no Brasil ocorreram no sexo masculino.
No caso dos adolescentes, o risco está ligado a vários fatores — o suicídio, aliás, nunca ocorre por causa única. “Além das transformações próprias dessa fase, o cérebro ainda está em desenvolvimento, principalmente em áreas ligadas ao controle da impulsividade e à tomada de decisões, levando-os a agir no calor da emoção, sem conseguir avaliar todas as consequências. Outros fatores também são a pressão escolar, o bullying, as comparações nas redes sociais e, em alguns casos, a exposição a conteúdos nocivos na internet.”
Entre os idosos, pesam fatores como isolamento social, solidão, perdas e doenças crônicas, que podem gerar sentimentos de desesperança. E muitas vezes, os serviços de saúde não estão preparados para acolher as necessidades dessa população, alerta a especialista.
“Também não podemos esquecer de povos indígenas, pessoas LGBTQIA+, comunidades rurais, populações privadas de liberdade e outros grupos que enfrentam discriminação, exclusão e dificuldade de acesso ao cuidado”, completa.
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Transtornos mentais e o peso do estigma
Embora o diagnóstico de depressão seja frequente nos casos de suicídio — assim como o uso de álcool e outras drogas, ansiedade e transtornos de personalidade —, tentar associá-lo a uma causa única pode gerar uma visão reducionista da situação.
“O suicídio não pode ser explicado só pela presença de um transtorno mental. Ele nasce de uma soma de dores, do sofrimento psíquico, crises difíceis de enfrentar, falta de apoio, exclusão e, muitas vezes, o fácil acesso a meios letais. Ter um transtorno mental aumenta o risco, mas não explica tudo”, esclarece Karen.
A especialista alerta que, se pensarmos somente em diagnóstico, corremos o risco de ignorar aspectos sociais, econômicos e culturais que também pesam muito.
Além disso, o estigma é um dos maiores inimigos da prevenção. “Quando alguém tem medo de ser julgado, de ser visto como fraco ou de envergonhar a família ou até ser condenado por sua religião, acaba escondendo o sofrimento e demora a pedir ajuda. Isso pode ser fatal”, afirma.
Para mudar esse cenário, é necessário falar sobre o suicídio de maneira responsável, abrindo espaço para escuta sem julgamento e mostrando que buscar apoio é um ato de cuidado, e não de fraqueza, como muitas pessoas pensam.
“Também é fundamental que comunidades religiosas se engajem no cuidado, transformando a fé em fonte de acolhimento e não de exclusão. Campanhas de informação, educação em saúde mental nas escolas e serviços de saúde preparados completam essas possibilidades. Quanto mais natural e humano for falar sobre sofrimento, mais chances temos de salvar vidas.”

Campanhas de conscientização
A campanha Setembro Amarelo nasceu nos anos 1990, nos Estados Unidos. Em 2014, a Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP) e o Conselho Federal de Medicina (CFM) inseriram a campanha no calendário nacional brasileiro, com o objetivo de falar sobre saúde mental e prevenção do suicídio.
Para Karen, o Setembro Amarelo ajudou a colocar o suicídio na agenda pública. Contudo, hoje também é preciso falar do risco do chamado “marketing amarelo”. “Quando empresas ou instituições usam a cor e os slogans só para marcar presença, sem oferecer cuidado real, formação ou investimento em ações concretas, isso esvazia a campanha e pode gerar mais dor e desconfiança em quem está sofrendo”, destaca.
Outro ponto de atenção, segundo ela, é que um mês inteiro dedicado ao tema pode ser demais em termos de exposição, especialmente quando o conteúdo não é trabalhado com responsabilidade. “O excesso pode levar à banalização ou até aumentar riscos se não houver cuidado na forma de comunicar. Precisamos rever os objetivos, menos sobre visibilidade, mais sobre cuidado real, como fortalecer serviços e políticas públicas, preparar profissionais, apoiar famílias e criar redes de proteção. As campanhas só fazem sentido quando são um caminho para ação, não um fim em si mesmas.”
Em nota, a Associação Brasileira de Estudos e Prevenção do Suicídio (ABEPS) alertou que as campanhas de conscientização devem ser constextualizadas e adaptadas para o público envolvido, e que ações pontuais e festivas não substituem políticas públicas estruturadas.
“A ABEPS reafirma seu compromisso com uma abordagem ética, crítica e transformadora da prevenção do suicídio. Defendemos que o Setembro Amarelo seja um marco de reflexão e cuidado continuado, não apenas um momento de visibilidade e publicidade. Que as campanhas sejam instrumentos de acolhimento e não de exposição. Que a vida seja valorizada com dignidade, escuta e políticas públicas efetivas”, diz a nota.
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Políticas públicas são fundamentais
Campanhas ajudam, mas sozinhas não dão conta de enfrentar o problema. O que realmente faz diferença, segundo Karen, são políticas públicas que garantam acesso a cuidado em saúde mental de qualidade e de forma contínua. “Isso significa investir na rede de atenção psicossocial, ampliar equipes, reduzir filas de espera e oferecer atendimento próximo das comunidades, inclusive em áreas rurais e periferias.”
Ela destaca ainda a necessidade de políticas intersetoriais, educação que inclua saúde mental no cotidiano das escolas, programas de prevenção ao abuso de álcool e drogas, fortalecimento de vínculos familiares e comunitários, combate à violência e à exclusão social, diminuição do acesso aos meios. “É fundamental lembrar que o suicídio não é só um tema de saúde, é também de assistência social, de educação, de trabalho e renda.”
Outro ponto importante é a regulação do ambiente digital, porque hoje muitos jovens estão expostos a conteúdos perigosos que estimulam a autolesão ou o suicídio. Em contrapartida, as plataformas podem ser aliadas na disseminação de informação responsável e na promoção de apoio para quem precisa.
“Nós mesmos já fizemos diversas campanhas nelas. Estamos falando sobre criar condições de vida digna, pertencimento, cuidado e esperança. Isso só acontece com políticas de longo prazo, articuladas e sustentáveis, que olhem para o problema com a seriedade que ele exige e não projetos de lei do ‘dia ou semana da prevenção do suicídio’”, completa.

Preciso de ajuda. O que fazer?
Segundo a especialista, o primeiro ponto é: se parece difícil enxergar outra saída, esse é justamente o sinal de que você precisa e merece ajuda. Falar com alguém de confiança pode ser um dos caminhos possíveis.
“Existem serviços gratuitos que podem apoiar. O CVV, no 188, funciona 24 horas. O Mapa Saúde Mental reúne iniciativas e serviços em todo o Brasil. O Pode Falar é um canal online e sigiloso para adolescentes e jovens. No Vita Alere, também produzimos materiais gratuitos, como cartilhas e guias práticos, que ajudam famílias, escolas e comunidades. Um exemplo é o Falar Ajuda, voltado a educadores para trabalhar a saúde mental de meninos, um tema ainda cercado de silêncio”, conclui Karen.
Conteúdo produzido em parceria com a RD Saúde.
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