Residências terapêuticas: conheça as casas para pessoas com transtornos psiquiátricos

Nas residências terapêuticas, pessoas que antes estavam internadas em manicômios podem receber o tratamento com a liberdade de entrar e sair da própria casa. Saiba como funcionam os SRTs.

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Publicado em: 22/05/2024

Revisado em: 24/05/2024

Nas residências terapêuticas, pessoas que antes estavam internadas em manicômios podem receber o tratamento com a liberdade de entrar e sair da própria casa. Saiba como funcionam os SRTs.

 

Entre 2010 e 2023, mais da metade dos 38 mil leitos em hospitais psiquiátricos foram fechados, segundo levantamento do Conselho Federal de Medicina (CFM). Mas muitos dos pacientes não tinham dinheiro, família e muito menos uma rede de apoio a qual recorrer. Para onde foram, então, todas essas pessoas?

Parte delas, para os Serviços de Residência Terapêutica, os SRTs. 

Antes da reforma psiquiátrica, movimento que ganhou força no Brasil a partir dos anos 1980, pessoas diagnosticadas com transtornos mentais eram enviadas para hospitais psiquiátricos — popularmente chamados de manicômios. Lá, eles ficavam isolados da comunidade e, em muitos casos, eram internados em condições precárias e até cruéis.

A partir de 2001, o Brasil institucionalizou a reforma. Desde então, houve um esforço federal para fechar todos os manicômios e substituí-los pela Rede de Serviços de Saúde Mental, a RAPS. Com um olhar humanizado e o avanço tecnológico nos tratamentos, agora os pacientes poderiam contar com novas modalidades de cuidado. Entre elas, os SRTs.

Os Serviços de Residência Terapêutica são casas destinadas à reinserção de pessoas com transtornos mentais crônicos. Em espaços domiciliares, os moradores recebem cuidados personalizados e têm liberdade para ir à farmácia, ao mercado, à padaria, etc. Ou seja, além do tratamento, eles ganham também um lar e uma vida social. 

 

Quem pode viver nas residências terapêuticas?

De acordo com a legislação, as residências terapêuticas devem acolher:

  • Portadores de transtornos mentais que estiveram por dois anos ou mais em internação psiquiátrica;
  • Egressos de internação no Hospital de Custódia e Tratamento Psiquiátrico (HCTP), instituição que abriga pessoas que cometeram algum delito em virtude do seu transtorno mental;
  • Pessoas que estão em acompanhamento nos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) e cujo problema de moradia é crucial para o avanço do seu projeto terapêutico;
  • E moradores de rua com transtornos mentais severos que também estejam sendo acompanhados pelo CAPS.

De forma geral, são pessoas com transtornos mentais crônicos que levam a um comprometimento importante da vida, como esquizofrenia, transtorno bipolar, deficiência intelectual e até alguns graus de demência em pacientes mais idosos.

Por outro lado, a enfermeira Juliana Elena Ruiz, especialista em saúde mental e membro do Grupo de Trabalho de Saúde Mental do Conselho Regional de Enfermagem de São Paulo (Coren-SP), afirma que boa parte dos diagnósticos é antiga e nem condiz com a condição atual do morador.

“A grande maioria que veio dos hospitais chegou com o diagnóstico de esquizofrenia. Só que, na saúde mental, a gente não trabalha com diagnóstico, nós trabalhamos com os sintomas, para não estigmatizar”, conta a profissional.

 

SRTs X Hospitais psiquiátricos X CAPS

Independentemente do transtorno, o tempo de permanência na residência terapêutica é ilimitado. Assim como em qualquer outro lar, as pessoas vão lá para morar pelo período que precisarem. Enquanto isso, trabalham questões relacionadas à saúde física e mental, ao lazer, à geração de renda e à interação com a comunidade ao seu redor.

 

SRTs X Hospitais psiquiátricos ou manicômios 

No caso dos antigos hospitais psiquiátricos, os relatos mostram que essas instituições eram frequentemente superlotadas e funcionavam sob internação compulsória, muitas vezes com uso de força física e medicalização exagerada. Além disso, o período de internação era prolongado: grande parte dos pacientes era abandonada pelas famílias e perdia o contato com o mundo externo. 

As residências terapêuticas, por sua vez, recebem um número bem mais limitado de moradores e a liberdade de cada um deles é respeitada. Mesmo sendo acompanhados por profissionais da saúde, eles podem entrar e sair da casa para procurar trabalho, interagir com os vizinhos e praticar atividades que lhes deem prazer.

“É muito mais personalizado. Uma coisa é você ter uma estrutura de cuidado para dez, 15, 20 moradores. Outra para centenas ou milhares, como era antigamente, né? Não era possível ter essa visão especializada”, diz Ariel Lipman, psiquiatra e diretor da SIG Residência Terapêutica, empresa que oferece serviços médicos na área dos distúrbios mentais.

 

SRTs X CAPS

Já os atuais CAPS, Centros de Atenção Psicossocial, têm como objetivo oferecer o tratamento necessário aos pacientes enquanto eles permanecem em suas comunidades e mantêm os seus laços afetivos. Assim como os SRTs, eles também foram criados como estratégia da reforma psiquiátrica.

“Vamos supor que você tem depressão e ainda não passou na UBS. Você pode ir para o CAPS. Eles têm uma equipe multiprofissional que vai te atender e fazer o acolhimento. Vão entender qual é a sua problemática para conseguir construir o que a gente chama de Projeto Terapêutico Singular. As residências terapêuticas têm que estar vinculadas a um CAPS, mas o CAPS é um outro dispositivo de saúde”, explica a enfermeira Juliana.

Em geral, o CAPS está próximo dos SRTs. Os moradores costumam frequentá-lo para realizar atividades terapêuticas e também é para lá, por exemplo, que eles são encaminhados ao passarem por uma crise.

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Como é formada a equipe que atua nas residências terapêuticas?

Mesmo com o apoio próximo dos CAPS, as crises costumam ser manejadas pelos próprios profissionais presentes na SRT, que já conhecem os moradores. A depender o tipo de residência terapêutica, a formação muda:

  • SRT Tipo I: são as moradias destinadas a pessoas com transtorno mental em processo de desinstitucionalização (fim da internação prolongada) que devem acolher, no máximo, oito moradores. Além de um supervisor, são necessários cuidadores, chamados também de “acompanhantes comunitários”;
  • SRT Tipo II: são as moradias destinadas a pessoas com transtorno mental e acentuado nível de dependência, especialmente física, que devem acolher, no máximo, dez moradores. Além do supervisor e dos acompanhantes comunitários, faz-se necessário a presença de um técnico de enfermagem.

Na rede privada, a equipe pode ser ainda mais extensa.

“A gente precisa de profissionais ligados à saúde, como enfermeiros, psicólogos, terapeutas ocupacionais. Em geral, um psiquiatra também é fundamental nessa estrutura. E tem a equipe da cozinha, da limpeza. O que precisar para a manutenção da estrutura física”, acrescenta o dr. Ariel.

 

Como é o dia a dia dentro das residências terapêuticas?

Apesar de poder haver profissionais voltados para os afazeres domésticos, a proposta é que os próprios moradores assumam a responsabilidade pelos cuidados com a residência. 

Na maioria das vezes, as casas são compostas por áreas individuais e comuns. Nos quartos, não é permitido o compartilhamento por mais de três moradores. No mais, o modelo segue o de uma residência comum: sala, cozinha, banheiro, lavanderia, entre outros espaços.

No dia a dia, os moradores ficam responsáveis por tudo: fazer a comida, lavar a louça e a roupa, limpar a casa, notar o que está faltando, fazer as compras de supermercado, etc. Muitas vezes, os moradores ficaram internados por tanto tempo em hospitais psiquiátricos que não sabem realizar atividades básicas para o convívio, como cozinhar ou lidar com o dinheiro. Por isso, a ajuda dos acompanhantes comunitários é essencial.

Com regularidade, os moradores e a equipe também realizam uma reunião chamada de supervisão técnica, a fim de discutir os acontecimentos e eventuais problemas da casa. 

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Como fica a relação com os familiares?

“A gente trabalha no SRT com a proposta de tentar reinserir o morador novamente na comunidade até que um dia ele consiga se virar sozinho ou retornar para a família. Mas o que a gente vê é que, muitas vezes, a família está tão adoecida que também não consegue dar suporte para as crises daqueles moradores e se afasta”, relata Juliana.

Ainda que alguns familiares façam visitas frequentes aos seus entes queridos, muitos deles os abandonam nas SRTs. Como são pacientes que costumam ter alterações comportamentais, a relação pode ficar difícil e desgastada. Nessas situações, a equipe trabalha dos dois lados, na tentativa de restabelecer esse laço afetivo.

“A gente respeita muito a privacidade, a individualidade e a singularidade de cada morador. Então, ele quer? A gente vai atrás. Ele não quer? A gente não vai atrás”, pontua a enfermeira.

Para aqueles que buscam se reerguer sozinhos, o morador tem direito a dois benefícios:

  • Programa de Volta Para Casa (PVC), um auxílio financeiro destinado às pessoas acometidas por transtornos mentais com histórico de internação de longa permanência em hospitais psiquiátricos ou de custódia; 
  • e o Benefício de Prestação Continuada (BPC), que é a garantia de um salário mínimo ao idoso ou à pessoa com deficiência, inclusive de natureza mental e intelectual. 

 

Residências terapêuticas: um marco na luta antimanicomial

Quando se trata dos impactos positivos das residências terapêuticas, o psiquiatra Ariel destaca:

“Os benefícios para o paciente e para a família são muitos: a garantia do tratamento correto, a diminuição de crises e internações e a manutenção da saúde clínica também, não apenas psiquiátrica”, afirma. 

Atualmente, na rede pública, existem 6.595 residências terapêuticas. De acordo com o levantamento de maio de 2023 realizado pelo Departamento de Saúde Mental do Ministério da Saúde, a maioria deles se concentra no Sudeste (4.715) e no Nordeste (1.259). O Sul possui 399 SRTs, enquanto o Centro-Oeste tem 175 e o Norte, apenas 47.

De acordo com Juliana, a expectativa é que novas unidades sejam inauguradas, tendo em vista que a fila de espera dos hospitais psiquiátricos e de custódia está em vias de ser finalizada. Para ela, as residências são um marco importante para a luta antimanicomial e a reforma psiquiátrica:

“A proposta da residência é que a gente consiga reinserir pessoas que foram privadas de liberdade, de cidadania e dos seus direitos, para a comunidade. Para que ela consiga restabelecer laços afetivos, construir uma rede de apoio e ter o mínimo de autonomia. É uma casa onde a gente vai dando suporte para que elas consigam seguir a sua vida”, conclui.

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