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Psiquiatria

Qual é o legado da pandemia para a saúde mental?

Dois anos após a maior emergência de saúde pública do século, países ainda patinam para desenvolver políticas públicas focadas nos danos à saúde mental causados pela pandemia.
Publicado em 15/12/2022
Revisado em 15/12/2022

Dois anos após a maior emergência de saúde pública do século, países ainda patinam para desenvolver políticas públicas focadas nos danos à saúde mental causados pela pandemia.

 

A prevalência global de ansiedade e depressão aumentou em 25% no primeiro ano da pandemia de covid-19, de acordo com um resumo científico divulgado pela Organização Mundial da Saúde (OMS) no início de dezembro. 

O dado alarmante virou manchete na mídia e assunto nas redes sociais, além de chamar a atenção para um fator importante: como os países têm se preparado para lidar com as consequências de longo prazo da covid-19 para a saúde mental da população?

Apesar dos diversos estudos feitos ao longo desses dois anos de pandemia que confirmam o impacto da doença e da crise global na saúde psíquica dos cidadãos, pouco foi feito em termos de medidas práticas no combate à crise – anunciada desde 2020 – de saúde mental. É o que mostra o mesmo estudo da OMS, que destaca as lacunas encontradas no enfrentamento da questão. 

 

Durante a pandemia

Medo de adoecer, de perder entes queridos, de ser demitido, incerteza sobre o futuro, desesperança, falta de perspectiva. Esses foram alguns dos sentimentos relatados por milhares de pessoas ao redor do mundo durante a pandemia. 

Em outubro de 2020, um grupo de pesquisadores da Universidade Federal Rio Grande Sul (UFRGS) realizou um estudo que aponta que 80% da população brasileira se sentia mais ansiosa. Destes, 68% apresentavam sintomas depressivos, 65% expressavam raiva e 50% tiveram alterações no sono. 

Já a pesquisa “Condições de Trabalho dos Profissionais de Saúde no Contexto da Covid-19”, realizada pela Fiocruz, mostrou que parte dos profissionais que estavam na linha de frente do combate à doença teve pensamentos suicidas, perda de satisfação na carreira ou na vida, irritabilidade e choro frequente e impossibilidade de relaxar.

Além dos fatores sociais, o aumento de sintomas e de transtornos mentais em si também estão associados à própria infecção da covid-19, como já falamos por aqui. Um estudo publicado na “The Lancet Regional Health – Américas”, sugeriu que um terço das pessoas que tiveram covid-19 foram diagnosticadas com transtorno neurológico ou mental.

 

O pós-pandemia

Embora a covid-19 não tenha se despedido de vez – ainda estamos lidando com o surgimento de novas variantes e eventuais ondas da doença –, podemos começar a falar em um pós-pandemia que exige tanta atenção quanto o período da crise inicial. Passado o momento mais crítico da emergência sanitária, ficam as crises sociais e econômicas. 

A economia global se vê diante de uma forte recessão, milhares de pessoas vivem em luto pela perda de familiares – há quem tenha perdido mais de um ente querido em um espaço de dias ou semanas –, crianças e adolescentes que, devido à necessidade de isolamento social, apresentam dificuldades em socializar e atraso no desenvolvimento escolar. Como esperado e como citado no início desta reportagem, o resultado só poderia ser o aumento de transtornos mentais em diversos países ao redor do mundo. 

E há um perfil dos mais afetados pelas consequências psicológicas da covid-19. Ainda com base no resumo divulgado pela OMS, jovens correm um risco desproporcional de comportamentos suicidas e automutilação. Mulheres, por sua vez, também foram mais severamente impactadas do que os homens, e pessoas com condições de saúde física pré-existentes, como asma, câncer e doenças cardíacas, estariam mais propensas a desenvolver sintomas de transtornos mentais.

O contexto socioeconômico também importa. De acordo com o estudo “Efeitos Psicológicos da Pandemia de COVID-19  na População Geral da Argentina”, de 2020, os sintomas são ainda mais pronunciados nos países com baixos recursos socioeconômicos e com taxas elevadas de trabalhadores independentes, como é o caso do Brasil. Uriã Fancelli, internacionalista e mestre em estudos europeus, exemplifica. 

“As pessoas em condições de maior vulnerabilidade social tiveram uma experiência diferente em relação àquelas das classes mais privilegiadas. Em países como a Alemanha, por exemplo, as próprias empresas forneciam um número X de autotestes aos trabalhadores. No Brasil, no primeiro ano da pandemia, os testes custavam entre R$200 e R$300 e só poderiam ser realizados em laboratórios – lembrando que o salário mínimo no país era de R$ 1.039. Esse é somente mais um exemplo de como a classe média teve acesso a diferentes serviços de saúde que deixaram de ser fornecidos pelo Estado.”

Outro estudo, este da Universidade Estadual da Pensilvânia (EUA), avalia que, para cada fatalidade causada pela covid, há um impacto direto em nove parentes próximos (avós, pais, irmãos, companheiros ou filhos), que fazem parte de uma crise sanitária, social e econômica mais ampla do que a diretamente atribuída ao coronavírus.

Veja também: Geração sem perspectiva: os efeitos do isolamento social na adolescência

 

Saúde mental em foco no Brasil

Para dar conta dessa demanda, diversas instituições governamentais e não governamentais lançaram iniciativas de acolhimento psicológico durante a pandemia. 

Em abril de 2020, foi anunciado um serviço de apoio psicológico aos profissionais do Sistema Único de Saúde (SUS) que estavam atuando no combate ao novo coronavírus, que era disponibilizado através de teleconsultas. No mês seguinte, o Ministério da Saúde iniciou um levantamento sobre a saúde mental da população brasileira durante a pandemia através de um questionário online. 

Serviços como o Centro de Valorização da Vida (CVV) foram reforçados, profissionais de saúde mental se voluntariaram para ouvir indivíduos em sofrimento psíquico decorrente da covid-19 e assim por diante. De fato, a procura por temas de saúde mental na internet cresceu – a busca por “como lidar com a ansiedade” aumentou 33% até o final de 2020, quando comparado com 2019 –, assim como a procura por profissionais de saúde. Acontece que, em termos de desenvolvimento de políticas públicas de saúde mental feitas exclusivamente para o suporte pós-pandemia, ainda há muito a ser feito.

Em junho deste ano, o Ministério da Saúde anunciou o investimento de mais de R$ 45 milhões em iniciativas e estratégias para ampliar as ações e cuidar da saúde mental dos brasileiros pelo SUS. Entre elas, estão a Linha Vida (196), focado em na prevenção do suicídio e da automutilação (e atualmente em fase de projeto piloto no DF, ainda sem previsão para lançamento nacional), teleconsultas para o enfrentamento dos impactos causados pela pandemia da Covid-19 e as Linhas de Cuidado, para auxliar serviços de saúde a organizarem o atendimento de pacientes com ansiedade e depressão

A Sociedade Brasileira de Psiquiatria e a Sociedade Brasileira de Psicologia defenderam, em uma audiência pública realizada em novembro na Câmara dos Deputados, mais recursos para ambulatórios de saúde mental e para as estruturas de atenção psicossocial. Um ponto importante de crítica em comum de ambas as instituições são as recentes edições em normas da Política Nacional de Saúde Mental, que ameaça as conquistas da luta antimanicomial, como comenta Henderson Fürst, presidente da Comissão Especial de Bioética da OAB-SP.

“A fragmentação da histórica luta antimanicomial se encontra harmônica a outras medidas retrógradas adotadas como política pública excludente. Muito embora se espera que tais medidas sejam revogadas, elas são suficientes para desacelerar a consolidação dos avanços que foram feitos até aqui. Nesse sentido, há uma perda de sensibilidade das políticas públicas para as políticas de saúde mental pós-pandemia, e é preciso retomar a consciência e a sensibilidade da pauta para o cuidado com a saúde mental.”

Em 2013, os 194 Estados membros da OMS assinaram o Plano de Ação Integral de Saúde Mental 2013–2030, que os compromete com metas globais para transformar a saúde mental. O documento trabalha com quatro objetivos centrais:

  1. Fortalecer liderança eficaz e governança;
  2. Fornecer saúde mental e assistência social de maneira abrangente, integrada e responsiva baseadas na comunidade, ou seja, para além do ambiente hospitalar;
  3. Implementar estratégias para promoção e prevenção;
  4. Fortalecer sistemas de informação, de evidências científicas e de pesquisa.

Apesar do compromisso assinado no papel, “a mudança não está acontecendo rápido o suficiente e a história da saúde mental continua sendo de necessidade e negligência, com 2 em cada 3 dólares do escasso gasto público em saúde mental destinados a hospitais psiquiátricos independentes – mais que a serviços de saúde mental comunitários, onde as pessoas recebem melhor atenção”, salienta a Organização Pan-Americana de Saúde (OPAS) em artigo no site da instituição. 

Na alçada legislativa, um projeto de lei que cria um “programa de atenção aos problemas de saúde mental decorrentes da pandemia de covid-19″, está parado na Câmara dos Deputados desde abril de 2021. 

A fim de auxiliar profissionais de saúde e gestores a lidar não apenas com a pandemia da covid-19, mas com possíveis futuras emergências de saúde pública, a Fiocruz desenvolveu o guia “Recomendações e orientações em saúde mental e atenção psicossocial na covid-19” em parceria com o Ministério da Saúde.

No capítulo de recomendações aos gestores, a instituição elenca uma série de ações a serem tomadas no pós-crise, chamado de período de recuperação:

  • Investir em estratégias qualificadas de comunicação social que favoreça a recuperação;
  • Capacitar e supervisionar as equipes que trabalham na fase de recuperação;
  • Implementar as ações específicas de Saúde Mental e Atenção Psicossocial na rede do SUS, como parte de um plano de recuperação psicossocial de médio prazo (mínimo de 6 meses);
  • Fornecer atenção à saúde mental dos membros das equipes que trabalharam na linha de frente da fase de resposta (durante a emergência), particularmente àqueles que trabalharam junto aos casos mais graves;
  • Fortalecer as ações e projetos sociais que promovam a vida;
  • Consolidar a coordenação interinstitucional e a participação comunitária na tomada de decisões;
  • Monitorar e avaliar experiências e as lições aprendidas. 

O presidente eleito, Luiz Inácio Lula da Silva, também já anunciou que irá criar a secretaria de Saúde Mental dentro da estrutura do Ministério da Saúde ao assumir o governo em 2023. 

Veja também: Falta de informação ajuda a estigmatizar transtornos mentais

 

O que outros países estão fazendo?

A crise de saúde mental é global. A exemplo disso, a Confederação do NHS (sistema público de saúde do Reino Unido) está pedindo uma expansão das propriedades do NHS, o sistema de saúde do país, para cuidados especializados em saúde mental e realizando uma grande campanha de recrutamento de psiquiatras, como parte de um plano de recuperação. Atualmente, 1 a cada 10 cargos na rede pública estão vagos.  

O presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, também tem priorizado a saúde mental no país. Seu governo delineou uma estratégia multifacetada para lidar com a crise, incluindo metas para integrar a saúde mental à atenção primária, investindo na força de trabalho e novas abordagens para programas de atendimento. O chamado “Plano de Resgate Americano” recebeu um investimento de US$ 5 bilhões em saúde mental e programas de uso de substâncias.

Uma das principais mudanças práticas foi a alteração do telefone da Central Nacional de Prevenção do Suicidio para 988 (Antes, o número era 1-800-273-8255). Os primeiros dados sugerem sucesso da redução, com chamadas aumentando 45% no primeiro mês em comparação com o mesmo período do ano anterior.

 

Onde pedir ajuda

Se você ou um ente querido está em sofrimento mental, saiba como conseguir atendimento psicológico gratuito. Se for uma situação de crise,  é possível receber atendimento especializado em uma unidade dos Ambulatórios Multiprofissionais de Saúde Mental, equipados com psiquiatras, psicólogos, assistentes sociais e outros profissionais que atuam na área. Basta buscar na barra de pesquisa do seu navegador por “Ambulatórios de Saúde Mental” + o nome da sua cidade para encontrar o endereço mais próximo.

Se não for possível sair ou caso queira apenas conversar sobre o que está sentindo, acesse o chat do Centro de Valorização da Vida (CVV) ou ligue através do 188; a ligação é gratuita e o serviço está disponível 24 horas por dia. 

O CVV é formado por voluntários e promove o apoio emocional e a prevenção do suicídio. Algumas cidades contam com pontos físicos do grupo, onde são realizados encontros para os “sobreviventes do suicídio” (pessoas que perderam alguém próximo ou realizaram alguma tentativa de suicídio), exibem filmes e debatem sobre saúde mental. Para saber se há alguma unidade na sua cidade, clique aqui. 

Em caso de emergência ou de ameaça de suicídio, não hesite em acionar o SAMU 192

O importante é não sofrer sozinho. Compartilhe a sua dor, por mais difícil que seja. Às vezes, quando a dor emocional é muito grande, é difícil enxergar além da névoa. Mas lembre: sempre há alguém disposto a ouvi-lo e a passar por isso com você. Você não está só.

Veja também: Como conseguir atendimento psicológico gratuito

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