Esquizofrenia: os caminhos do diagnóstico e do tratamento no SUS - Portal Drauzio Varella
Página Inicial
Psiquiatria

Esquizofrenia: os caminhos do diagnóstico e do tratamento no SUS

Antipsicóticos, apoio familiar e acompanhamento especializado são essenciais. Entenda o papel do SUS e os seus desafios no tratamento da esquizofrenia

Antipsicóticos, apoio familiar e acompanhamento especializado são essenciais. Entenda o papel do SUS e os seus desafios no tratamento da esquizofrenia

Em uma manhã de janeiro de 1986, o mundo assistia à explosão do ônibus espacial Challenger. A nave, enviada ao espaço pelos Estados Unidos, desintegrou no ar minutos após a decolagem, matando sete tripulantes, entre eles a professora Christa Sharon McAuliffe, escolhida entre 11 mil pessoas para a viagem espacial. O acidente foi causado por um defeito no foguete, mas Leila Houck, professora de educação física em São Paulo, acreditou que pudesse ter sido sua culpa. 

A esquizofrenia é um transtorno mental que provoca a perda de contato com a realidade. Antes de saber que tinha essa condição, Leila conviveu por anos com diversos tipos de delírios, como o de achar que tinha dado o comando para que a nave explodisse. Ao procurar um psiquiatra, recebeu o diagnóstico de depressão severa, depois de transtorno bipolar e então de transtorno esquizoafetivo.

Foram dez anos no escuro. O tratamento com estabilizadores de humor não ajudavam, fazendo com que Leila interrompesse o uso dos medicamentos várias vezes. A pressão no trabalho era um gatilho para novos surtos psicóticos, até que ela resolveu pedir aposentadoria por invalidez. Foi só na perícia do INSS que ela recebeu o diagnóstico correto.

A esquizofrenia pode surgir de repente ou de forma gradativa, geralmente entre 20 e 25 anos de idade. É um transtorno que afeta as habilidades sociais, de trabalho e de autocuidado pelo resto da vida. No início, o paciente parece apenas desconfiado, depois passa a ter alucinações, comprometimento cognitivo, comportamentos inadequados e pensamentos e fala desorganizados.

“A esquizofrenia tem alta herdabilidade. Vários genes, com pequenos defeitos, se somam para aumentar o risco. Mas não é determinismo. Ou seja, os fatores ambientais também são fundamentais. Eventos traumáticos, hipóxia no parto, infecções na gestação, uso de substâncias na adolescência, especialmente maconha… Tudo isso pode interferir no desenvolvimento do cérebro e aumentar a chance de desenvolver a esquizofrenia”, explicou Raffael Massuda, professor do Departamento de Psiquiatria e Medicina Forense da Universidade Federal do Paraná (UFPR). O psiquiatra esteve presente no Congresso Brain, Behavior and Emotions 2025 para elucidar o transtorno a especialistas em neurociência e saúde mental do mundo todo.

O caso de Leila não é isolado. Chegar ao diagnóstico correto envolve diversos obstáculos e o acesso ao tratamento adequado também não é fácil, especialmente na rede pública de saúde.

Do surto psicótico ao atendimento

Quando o INSS diagnosticou Leila com esquizofrenia, ela já morava em Santos, litoral paulista. Abandonou o acompanhamento com o psiquiatra particular e deu início ao seu tratamento no Centro de Atenção Psicossocial (CAPS), através do SUS. Na maioria das vezes, pacientes com esquizofrenia buscam atendimento por causa da angústia que os sintomas causam ou são levados pela família, que nota a mudança de comportamento.

A partir daí, existem dois caminhos.

“Vamos partir de um primeiro episódio psicótico. Geralmente, o paciente deveria buscar um pronto-socorro. Esse é o caminho esperado. Só que aí já surge a primeira dificuldade: não existem pronto-socorros psiquiátricos de porta aberta, de maneira geral. Então, o paciente precisa dar entrada em uma UPA [Unidade de Pronto Atendimento], por exemplo, e ser referenciado para um pronto-socorro psiquiátrico. Lá será avaliado se há necessidade de internação ou não. Essa necessidade depende do risco de heteroagressão, de autoagressão e do suporte familiar ou social que o paciente tem”, explica Claudiane Salles Daltio, gestora do Programa de Ensino, Pesquisa e Assistência em Esquizofrenia da Escola Paulista de Medicina da Universidade Federal de São Paulo (PROESQ/EPM-Unifesp).

Se houver internação, o paciente receberá medicação antipsicótica e poderá receber alta depois de 15 a 60 dias. Se a internação não for necessária (isto é, os sintomas existem, mas são controláveis), a pessoa poderá tomar os medicamentos em casa, com orientação médica e suporte dos familiares. Depois, em ambos os casos, o acompanhamento continuará de forma ambulatorial em Unidades Básicas de Saúde (UBS), ambulatórios especializados ou no próprio CAPS.

Paulo*, diferente de Leila, precisou passar um tempo internado. Em 2012, cansado da perda de autonomia, dos comportamentos exagerados e do autoisolamento, ele procurou atendimento médico no posto de saúde. Até então, havia apresentado alguns sintomas e episódios, mas sem um tratamento específico. Dessa vez, foi encaminhado para o hospital geral da sua região, onde ficou cerca de 23 dias internado.

“Foi uma experiência desagradável. A gente não espera passar por isso e fica num estado de incerteza, sem saber o que vai acontecer. Era um período longo e eu contava para os médicos o que estava sentindo, mas nada parecia dar certo, porque eles interpretavam minhas falas como delírios ou perseguições. Aos poucos, fui me adaptando à rotina da internação — horários certos para tomar remédios, levantar, tomar café, dormir. Quando apresentei uma melhora, recebi alta, mas com ressalvas, e fui encaminhado ao CAPS”, relembra Paulo.

CAPS: o pilar do tratamento no SUS

Hoje, os CAPS são o principal instrumento de saúde mental do SUS. O CAPS III, por exemplo, é muito importante para pacientes com esquizofrenia, porque tem acolhimento noturno e permite intensificar o tratamento sem que a pessoa precise ficar internada. 

Em teoria, as UBS, os CAPS e os hospitais devem atuar de forma integrada como uma rede de atenção psicossocial, promovendo trocas entre os serviços que garantam a integralidade e a continuidade do tratamento. Na prática, porém, há diversos impasses.

O primeiro é a falta de psiquiatras nas UBS, enquanto muitos clínicos se recusam a atender casos mais complexos. Os hospitais, por sua vez, enfrentam escassez de leitos para internação, e as residências terapêuticas — casas onde ex-pacientes de longas internações podem viver — ainda são poucas. Além disso, muitos municípios que poderiam ter CAPS não têm, e, nas unidades existentes, o atendimento costuma ser esporádico e as equipes, incompletas.

Mesmo com os obstáculos, o CAPS tem um papel fundamental para pacientes com esquizofrenia. Por causa da internação, Paulo estava desconfiado, mas ouviu a médica do hospital e deu uma chance ao Centro de Atenção Psicossocial.

“Num primeiro momento, eu não me reconhecia como paciente psiquiátrico. Mas encontrei muita compreensão. Felizmente, o CAPS em que fui atendido era bem estruturado: tinha médicos, psicólogos, terapeutas ocupacionais, pedagogos, nutricionistas… um quadro completo. No meu caso, isso fez diferença. Minha família também me apoiou, e eu decidi aderir ao tratamento”, conta. 

Depois da estabilização do quadro, a UBS assume a responsabilidade de monitorar o paciente continuamente. No entanto, tanto Leila quanto Paulo enfrentaram dificuldades, como pressa no atendimento, falta de especialização dos profissionais de saúde mental e demora para conseguir uma reavaliação ou troca de medicamento.

“O SUS prevê que boa parte dos transtornos seja resolvida na atenção primária, o que faz sentido em termos de organização. Mas, no caso da esquizofrenia, um transtorno grave, multifacetado e de difícil manejo, isso raramente acontece de forma adequada. O ideal seria um atendimento multiprofissional, com psiquiatria, psicologia, terapia ocupacional e assistência social. Na prática, muitas vezes tudo recai sobre o clínico geral da UBS, que não dá conta”, opina Fernando Rocha Loures Malinowski, também gestor do PROESQ/EPM-Unifesp.

Por sua capilaridade, a UBS poderia agir de forma preventiva, identificando jovens em sofrimento psicológico antes do primeiro surto e garantindo o tratamento imediato. Não há, no entanto, um programa estruturado nesse sentido.

Veja também: Como funciona o SUS?

Os medicamentos

A adesão ao tratamento é outro grande gargalo. O paciente muitas vezes demora ou nunca chega a ter consciência da doença e da necessidade do remédio. Durante o surto, não tem crítica sobre a sua condição. Por isso, precisa de alguém que garanta o fornecimento da medicação, como familiares ou profissionais da saúde.

Os medicamentos são cruciais para o sucesso do tratamento. Eles amenizam os sintomas durante as crises e previnem que elas aconteçam. Sem medicação, o risco de recaída é alto e o tratamento se torna mais difícil com o tempo.

Atualmente, existem três tipos de antipsicóticos disponíveis no SUS:

  • Típicos (1ª geração): bloqueiam os receptores de dopamina D2, neurotransmissor que, em excesso, leva a delírios e alucinações. São eficazes contra esses sintomas, mas não possuem grandes vantagens no combate a apatia, isolamento social, falta de motivação, entre outras queixas. Também podem provocar mais efeitos colaterais. Alguns exemplos disponíveis no SUS são haloperidol e clorpromazina.
  • Atípicos (2ª geração): também bloqueiam os receptores de dopamina D2, mas de forma mais equilibrada, agindo ainda sobre os receptores de serotonina. Isso faz com que provoque um bom controle de todos os sintomas e tenha menor risco de efeitos colaterais motores em relação aos típicos. São eles: risperidona, olanzapina, quetiapina, clozapina e ziprasidona.
  • Típico de longa ação: é o caso do decanoato de haloperidol, uma injeção que apresenta como vantagem evitar o esquecimento ou abandono do medicamento. Em vez de tomar comprimidos todos os dias, a pessoa recebe uma injeção mensal, tomando a medicação de forma contínua e reduzindo o risco de recaídas.

O manejo desses medicamentos, no entanto, exige observação da tolerabilidade. Se não houver resposta ou se houver resistência, troca-se a medicação. Para pacientes “super-resistentes”, cerca de 10% dos casos, é possível associar mais de um medicamento ou indicar eletroconvulsoterapia.

“Um desafio é o acesso: em cidades pequenas, o paciente precisa se deslocar até municípios maiores para pegar o remédio na farmácia de alto custo. Outro ponto: mesmo quando o medicamento está disponível, muitos pacientes não aceitam tomá-lo. Por isso, as formulações injetáveis mensais são tão importantes, ainda que no SUS só exista uma opção disponível”, pontua Claudiane.

Depois de tomar diversos medicamentos e desistir várias vezes do tratamento, Leila encontrou na opção injetável a estabilidade que procurava. Paulo também realizou algumas trocas até entrar para um estudo clínico, que possibilitou a transição para um medicamento de última geração ainda não disponível no SUS. Até o momento, ele relata melhorias na qualidade de vida.

Sem rede de apoio, o tratamento é mais difícil

Além dos medicamentos, grande parte do sucesso do tratamento depende dos laços sociais do paciente com esquizofrenia, principalmente a família. Muitas vezes, as alucinações que acometem essas pessoas e a recusa em tomar os remédios por estarem alheias à realidade sobrecarrega os entes queridos. Não é incomum que, desgastados, os familiares acabem abandonando esses pacientes.

“O CAPS deveria oferecer grupos para familiares. A UBS também poderia, mas nem sempre isso acontece. E mesmo quando existe, às vezes colocar famílias tão diferentes — uma lidando com depressão leve, outra com esquizofrenia grave — não é tão efetivo. Outro obstáculo é a disponibilidade: os CAPS funcionam em horário comercial, e muitas famílias trabalham ou estudam, o que dificulta a participação”, detalha Fernando. 

Nesses casos, os grupos de pacientes são uma alternativa. Hoje, Leila e Paulo fazem parte da Associação Brasileira de Esquizofrenia (Abre), que promove rodas de conversas online e encontros presenciais para pacientes e familiares com o diagnóstico. A terapia em grupo, oferecida por alguns CAPS, também é bastante útil. Paulo, mesmo depois de ter o quadro estabilizado, optou por continuar frequentando a unidade.

“O CAPS foi fundamental, porque me deu um espaço para expressar sentimentos e angústias, algo que muitas vezes não conseguimos nem com a família. Isso me deu acolhimento e autoconfiança”, celebra.

No caso de Leila, o apoio da mãe foi fundamental para que ela não desistisse do tratamento. Hoje, ela recomenda que pessoas que estejam passando pelo mesmo mantenham a frequência nas consultas e tomem a medicação conforme prescrito, sempre conversando com o médico sobre os efeitos colaterais e possíveis ajustes. 

Paulo pensa parecido: a sua dica é confiar, ser disciplinado e aderir ao tratamento. “Muitas pessoas desistem por querer resultados rápidos, mas é preciso paciência. Confiar nos profissionais, pedir uma segunda opinião se necessário, mas não desistir. O tratamento não é só o remédio: é também boa vontade, autoestima, psicoterapia e oportunidade de socialização. A doença não define quem você é; é apenas um ponto da sua trajetória”, afirma.

Veja também: Como reconhecer um surto de esquizofrenia

*O nome foi alterado para preservar a identidade da fonte.

Compartilhe