O transtorno de déficit de atenção com hiperatividade (TDAH) pode atrapalhar o desenvolvimento da criança e prejudicar o paciente na vida adulta. O tratamento acontece com a ajuda de medicamentos e acompanhamento multidisciplinar.
O transtorno de déficit de atenção com hiperatividade (TDAH) geralmente começa na infância e é caracterizado por desatenção, impulsividade e agitação a nível de comprometimento em várias áreas, como na relação com outras pessoas, no aprendizado escolar e também no trabalho.
Neste episódio do DrauzioCast, Daniel Segenreich, médico psiquiatra com Mestrado e Doutorado em Psiquiatria e Saúde Mental pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, Vice-Presidente da Associação Brasileira de Déficit de Atenção (ABDA) e professor da Faculdade de Medicina de Petrópolis, explica quais são os sinais do TDAH na infância, como o tratamento ocorre e quais as dificuldades que o transtorno pode causar já na fase adulta.
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Olá. Hoje nós vamos falar sobre o Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade, os TDAH.
Que que é isso? É aquele caso clássico, né, que todo mundo conhece aquela criança inquieta, que não para, que você não consegue conversar com ela, porque ela é distraída, ela responde por estar sempre, o tempo inteiro, falando… É a ideia que as pessoas têm de TDAH.
E na verdade, como nós vamos ver no decorrer dessa conversa, vocês vão ver que esse transtorno é muito mais complexo, porque não se limita a esses casos da criança que não para um minuto, que os antigos chamavam de “criança com um bicho carpinteiro no corpo”.
Nós vamos ver que esse tipo de problema de transtorno causa uma confusão na vida da criança, e não só da criança, como também dos adultos, e pouquíssimas pessoas sabem que TDAH pode começar na infância e ser carregado pela vida inteira.
E para falar mais sobre esse assunto, nós trouxemos aqui o Doutor Daniel Segenreich. O Daniel é médico psiquiatra, é mestrado e doutorado em Psiquiatria e Saúde mental na Universidade Federal do Rio de Janeiro, a UFRJ, é professor da Faculdade de Medicina de Petrópolis, e Vice-Presidente da Associação Brasileira de Déficit de Atenção. O Daniel tem uma experiência longa com, com TDAH. Daniel, vamos começar por aí, então, você primeiro explicando o que é TDAH.
Doutor Daniel Segenreich — Bom dia, professor Drauzio obrigado pelo convite, obrigado, pela oportunidade de falar sobre o assunto. Bom, primeiro, antes de mais nada, é importante dizer o que que é a sigla, né, e aí a essa sigla que a gente utiliza hoje, que é a sigla mais utilizada no mundo todo, né, se refere justamente ao Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade.
O TDAH, né, é um conjunto, na verdade, de sinais sintomas, né, a gente entende como o transtorno de base neurobiológica, onde aquelas crianças, né, e eventualmente adolescentes e adultos, né — quando se tornam adultos com TDAH tem uma quantidade muito mais significativa do que a média de sintomas de desatenção, sintomas de hiperatividade e sintomas muitas vezes de impulsividade; são os 3 grupos de sintomas —, como é um diagnóstico dimensional, né, não é que esses sintomas individualmente, né, ou de forma leve não seriam totalmente incomuns — são bastante comuns na população —, mas o problema no TDAH — e se torna um transtorno — quando a gente tem essa quantidade de sintomas numa quantidade muito maior, numa intensidade muito maior, gerando comprometimento.
Então, quando a gente vai falar sobre o diagnóstico de TDAH, a gente fala sobre todas essas características: não só a existência daqueles sinais e sintomas numa frequência e intensidade aumentadas, como trazendo comprometimento geralmente social, relacional e sem dúvida nenhuma aprendizado e na vida laboral.
E quais são as causas do TDAH? Por que que aparecem crianças com TDAH, enquanto outras são crianças de comportamento mais homogêneo,vamos dizer assim?
Nosso entendimento, né, é de que o TDAH é um transtorno que a gente chama de neurodesenvolvimento. Por isso que é muito importante que a gente tenha a referência histórica, na verdade, no início, na infância. Mesmo quando tiver adultos, né, que procuram a gente, né, com um diagnóstico… procurando na verdade [saber] se eles têm o diagnóstico de TDAH, a gente tem que buscar na infância, né, se tem histórico infantil.
Então, é um transtorno neurodesenvolvimento, e a gente sabe que boa parte desses transtornos do neurodesenvolvimento estão associados a uma espécie de vulnerabilidade genética, né. Uma base biológica, hoje em dia muito estudada, né, de pequenas alterações ou micro alterações no DNA, né — que a gente muitas vezes chama de polimorfismos —, e essas micro alterações, quando associadas, né, e a gente acha que aumentando a vulnerabilidade e um funcionamento, vamos dizer assim, não 100% de determinadas regiões de atenção, a gente tem aí uma espécie de soma de fatores de risco para o desenvolvimento, para expressão do TDAH.
Tem uma correlação também, sem dúvida, com o meio, né, como que a criança é acompanhada, né, como existe, na verdade, na própria formação, existe uma influência sem dúvida do meio, mas acredita-se que, no caso TDAH, a base mais importante em termos de etiologia seja o aspecto genético TDAH.
Daniel, criança dá trabalho, né, assim, como regra geral?! Porque a criança corre pela casa, ela faz… e chuta a bola, e pula no sofá… e pra baixo. Quais são os sinais que devem levar as famílias a se preocupar com essa agitação da criança?
O que a gente geralmente orienta assim, no aspecto de casa, quando os pais podem perceber isso em casa, é uma intensidade, né, se eles tiverem outros filhos ou conhecerem outras crianças é até mais fácil, porque eles por comparação conseguem perceber melhor, mas é uma intensidade muito maior desses sintomas — vamo pegar pela hiperatividade — de agitação, de inquietude, que você sente que a criança não consegue parar; às vezes, se você conseguir conversar com a criança, voce escuta ela dizendo que é difícil ela ficar sentada, que ela faz esforço. Então, não é uma questão assim de simplesmente se opor à autoridade, mas é de não conseguir, na verdade, de não conseguir se conter em si mesmo.
E nessa agitação toda, ela começa a fazer um comprometimento importante ali, em casa, né, então quer seja é na hora do almoço do jantar… quer seja correndo de um lado para o outro — e às vezes escalando as coisas —, chega ao ponto, na verdade, de quebrar objetos, que os pais não aguentam, aí começam a brigar, vira um estresse significativo, né?! Quando a gente está falando na escola, aí, talvez, os professores, porque veem muitas crianças, conseguem perceber, né, na melhor naquela média esperada pela criança — e pela idade da criança —, né, que aquilo que fica muito discrepante, ao ponto também de trazer um comprometimento em sala de aula, né.
E aí quando a gente tem essa observação da escola, mais a observação da família, é que a gente junta realmente essas informações, ou seja, de lugares diferentes, né, e aí a gente começa a aproximar a entrevista de uma suspeita do diagnóstico de TDAH.
O TDAH, como outros transtornos psiquiátricos, não é diagnosticado por exames laboratoriais, nem por exames de imagem, não é?! Não adianta você fazer uma ressonância magnética do crânio para você chegar ao diagnóstico, né. Então, todas as doenças que não têm uma forma de demonstrar objetivamente que elas existem, causam problema no diagnóstico, não é?! Que técnicas vocês usam para dizer “não, é fundamental um médico ou a psicóloga, ou professor, checar esses pontos; aqui em sim nós temos características que são do transtorno”?
Exatamente, a gente não tem exames complementares assim, de precisão, né, em psiquiatria — praticamente em toda a psiquiatria —, então a gente depende sempre, na psiquiatria, né, de avaliação clínica do especialista, né.
Claro que tem, vamos dizer assim, a gente gostaria de ter marcadores mais específicos, né, achados mais específicos e exames complementares, mas isso ainda não foi descoberto, a gente ainda não conseguiu ter, do que foi testado, a gente não conseguiu ter a cura, assim, para ajudar no diagnóstico.
Então, o que, quais são as questões que acho que principais, né? É, novamente, a gente buscar esses sinais e sintomas, né, essas questões — e que existem — e ir atrás realmente da intensidade e do comprometimento, tá. A gente fala muito isso, porque quando, quando a gente vê até médicos novos, que começam a ser treinados na área, eles esquecem que existem critérios-diagnóstico, né. Então vamos só naquele primeiro critério-diagnóstico, que é a existência dos sinais e sintomas, e no final das contas isso, é bastante insuficiente, porque precisa que o outros critérios-diagnóstico de intensidade, gravidade e comprometimento sejam também satisfeitos.
Em termos assim, de coisas mais concretas, que a gente utiliza muito é para homogeneizar inicialmente a própria avaliação nesses comportamentos, são questionários, né, então a gente tem questionários que são validados tanto pra TDAH na infância e adolescência, quanto pra TDAH em adultos, né, e esses questionários servem ali como, em parte uma guia para entrevista clínica, com o médico, claro, e também como uma espécie de questionário de autopreenchimento, para que a gente faça uma triagem, né.
Quer dizer, a pessoa sozinha, né, ou enfim, os pais com uma criança preencherem o questionário, não é suficiente para o diagnóstico — de longe, aliás, não é. Serve como uma espécie de triagem. Ou seja, aqueles que vierem bastante negativos ali, com poucos sintomas, provavelmente não têm TDAH; aqueles que têm na verdade muitos sintomas, aí sim, vale a pena serem avaliados, de forma mais precisa, pelo médico, na entrevista clínica.
Então eu acho que esses instrumentos um pouco mais concretos servem inicialmente como triagem e como realmente um guia de entrevista médica pro especialista, tá, mas os exames complementares, né, no final de contas tem uma função para gente — nesses casos, né, e isso é bom sempre lembrar —: eles excluem os outros transtornos.
Então eu tenho crianças que às vezes eu avalio, que eu acho que são crianças com ausência, né, que têm na verdade, então, um quadro que é epilético, vão ter obviamente desatenção — os pais confundem uma coisa com a outra —, quando se suspeita que é ausência, se fizer um eletroencefalograma, pode ter realmente ali achado específico de ausência e você exclui o TDAH — ou pelo menos pensa inicialmente como sendo um quadro epilético.
Como costuma ser o comportamento escolar dessas crianças com TDAH? Quando existe comprometimento, tem geralmente duas situações onde tem maior problema, né. A gente separa a parte de aprendizado, tem algumas crianças que realmente, pelo nível de desatenção que elas têm e até também pela agitação, elas têm dificuldade de fixar, concentrar realmente no que está sendo passado, no que o professor está falando, naquilo que está sendo exposto no quadro negro… Então, assim, a partir daí elas vão ter dificuldades que vão ficar claras nas tarefas de sala de aula, nas tarefas de casa, nas provas e em qualquer método de avaliação, e aí a gente identifica que ela tem uma dificuldade de aprender, né, como consequência direto, né, dessa dificuldade de atenção e de agitação.
O outro aspecto é o comportamental, porque algumas crianças têm uma facilidade, né, até cognitivo, independente do TDAH, e conseguem ter resultados muito bons na escola, mas tem uma dificuldade muito grande na socialização, né. Crianças que você vê que são muito agitadas e muito inquietas, muito impulsivas, elas cansam outras crianças, elas acabam sendo excluídas de determinadas brincadeiras, jogos entre eles, o movimento mesmo social da aula, e a gente realmente também tem um outro tipo de comprometimento já, que é esse mais comportamental, não só de aprendizado.
E quando você recebe uma criança que vem com essas queixas e você fica seguro de que se trata de TDAH, como é que você orienta o tratamento?
Então, uma coisa muito importante no tratamento e a gente descreve sempre como multidisciplinar, né, ou transdisciplinar, então, a gente trabalha em equipe, o ideal é realmente que o paciente seja acompanhado não apenas pelo médico, né.
Então a gente tem nessa equipe, né, o trabalho do psicólogo, ele [paciente] tem muitos psicólogos com formação, com especialização em TDAH, a tendência em termos de terapia, é que seja terapia com algum tipo comportamental, mais voltado pros aspectos realmente de TDAH e tratamento de TDAH, mas além disso, né, no caso inclusive de crianças, a parceria com a escola é fundamental, a figura muitas vezes do pedagogo, ou do psicopedagogo, né, fazendo a interface, também é fundamental nessa equipe, e em determinada situações quando você suspeita que existe algum problema fonoaudiológico, o fonoterapeuta também, né — até para fazer realmente o diagnóstico inicial, e se houver algum problema de aprendizagem de linguagem, isso vai ser acompanhado por ele.
Então, com essa equipe multidisciplinar formada, aí sim, eu acho que o médico também vai atuar, e se tiver o diagnóstico e indicação para uso, eventualmente vai usar medicação. Vai variar um pouco entre idades, né, e só lembrando de que pré-escolares podem ter TDAH, sem dúvida, mas no caso do pré-escolar a gente sempre começa com o que não é tratamento medicamentoso.
Por definição, até cinco anos de idade, cinco a seis anos de idade dependendo do local, a gente acaba inicialmente pela parte psicoterápica, né, e o uso da medicação não é a primeira opção. Quando a gente vê escolar, aí a gente tem uma entrada da medicação mais ou menos no mesmo tempo, havendo a indicação, é claro, do restante da equipe multidisciplinar.
Muita gente morre de medo dessas medicações, [diz] “ah, agora é um exagero… A criança começa a ir mal na escola, já dão remédio…”, “a criança vai ficar dependente dessa medicação, vai ter que tomar medicamento pelo resto da vida…”, como é que você analisa esse panorama?
É, isso é um tópico bastante complexo para os pais, bem difícil até de abordar aqui, né, a maior parte das vezes eles vêm muito preocupados com a questão da medicação, né, um ou outro pai ou mãe que tem, às vezes, assim, uma referência de alguém em tratamento já vê de uma outra forma, mas na maior parte das vezes é natural, né.
E assim, eu definitivamente acho que a medicação, embora seja muito importante, ela se torna, acho que insuficiente ou até ruim, vamos dizer assim, se não for bem orientado; não é simplesmente o diagnóstico e o remédio, né. Você vai fazer o diagnóstico, vai ter todas as orientações médicas, comportamentais, definir a equipe clínica, e vai, na verdade, né, indicar ou opinar sobre a questão realmente da entrada do remédio.
O que eu costumo fazer, é que eu sinto que algumas famílias, assim, levam susto de primeira, se eu falar sobre medicação. Então eu converso sobre, mas eu falo que eu não vou impor, né, eles têm tempo, né, tranquilamente, [pra quando] saírem do consultório, lerem sobre o assunto, buscar informação, terem dúvidas, voltarem na verdade com essas dúvidas, e no momento certo quando, estiverem em paz em relação a isso, com todas as duvidas tiradas, aí sim, acho que é o momento de fazer uso da medicação.
Se não, realmente, quando a gente começa de maneira, assim, na cabeça dos pais, abrupta, né, eles ficam com tanto medo, que isso acaba, na verdade, prejudicando o tratamento como um todo.Então, se perde a oportunidade de tratar, e eles começam, às vezes, a mudar, né, a própria prescrição — “ah, não, hoje eu não dar, não, porque hoje ele acordou bem…”, “ah, não, fim de semana acho que não precisa…”, “ah, não sei o quê” —, então fica muito mais perdido, e aí a chance sobre este problema é muito maior.
E quando o tratamento é bem indicado, realmente se trata de um caso de TDAH, eu vou dar algo, ritalina, pra criança… Como costumam ser os resultados?
Então, os resultados no que tange à concentração e até a inquietude, são muito bons, né, e os resultados são muito mais rápidos do que os resultados em tratamento de outros transtornos, né, na psiquiatria.
Então, o tamanho de efeito do remédio a velocidade são muito bons, mas outra coisa é importante: orientar o que que vai mudar, né, então, por exemplo, a criança vem e, além disso, ela tem outras questões que são comportamentais e não associadas ao TDAH — então alguns transtornos de oposição ao desafio, crianças que tenham comportamentos mais complicados, como dentro de um transtorno de conduta ou até transtornos outros de aprendizado —, eu digo “olha essa medicação não é para isso, isso vai ser tratado de outra maneira conjugada”, então, assim, é muito importante que… eu até falo com os adultos, né, assim, “olha eu vou te explicar o que o remédio não funciona, porque, na verdade, você já escutou…” — o adulto, né —- “…você veio aqui, já com tudo que você acha que funciona e você acha que o remédio é mágico, então, eu vou pegar aquilo que você está pensando e vou tirar tudo aquilo que você está pensando em excesso e errado. Ou seja, eu vou explicar pro que que ele não funciona”.
E pro adulto, né, só pra gente não esquecer que na verdade não é só criança, pro um adulto, a medicação funciona muito bem nesse aspecto da concentração e da inquietude, mas tem uma questão mais organizacional e até de macro administração de planos e tempos… Enfim, a organização da pessoa mental, que o remédio não é tão eficiente ou tão direto, e aí é justamente o aspecto que eu acho que a psicoterapia ajuda muito, né, por isso que essa congregação em vida adulta também é importante.
A questão de gente já “ah, meu filho vai ficar viciado nesse remédio”… Provoca dependência?
Esse é um ponto em que a gente recebe muita pergunta sobre esse assunto. Vamo lá… A dependência química, né, aquela alteração, assim, que a gente se preocupa cada vez mais com os remédios que o pessoal chama de tranquilizantes, né, ou remédios para dormir — que são os benzodiazepínicos —, a gente não tem com o metilfenidato ou os psicoestimulantes, né, não é esse tipo de problema.
O que às vezes acontece, que eu acho, assim, no final das contas, ruim, né, e eu peço sempre que, na verdade, as pessoas não associem, é que elas só conseguem fazer alguma coisa, né, em função na verdade do uso da medicação.
Então, esse tipo de associação, esse tipo de “ai, eu sou faço isso por causa do remédio”, “eu só faço isso porque eu realmente tô em medicação” é que eu não gosto que as pessoas façam, e eu fico fortalecendo que uma coisa não está ligada à outra. E mais importante até para evitar esse tipo de uso errado, é dizer o seguinte: se você tem TDAH, você está tratando um transtorno, não está usando remédio para realizar uma determinada atividade. E quando o foco é na atividade, somente, isso aumenta a chance de uso indevido, errado, e até por pessoas que não têm TDAH.
Então, essas informações elas elas são muito importantes no início, pra você estabelecer e até evitar que a pessoa faça uso abusivo, uso errado, né, eu fico ali o tempo todo brigando, aqui no consultório, pra que não usem na verdade 24 horas a medicação — o remédio é para ser usado de dia, se você tomar de noite, você vai ficar insone, e as pessoas, às vezes, querem fazer isso para ficar à noite toda trabalhando, estudando, né; tem gente que vai usar, obviamente, para fins assim, sei lá, recreativos, misturar com outras substâncias.
Então, o tempo todo a gente fica educando, né, e acho que ratificando que isso não pode ser feito. E claro que, quando a gente percebe, a gente interrompe o tratamento e tenta ajudar, na verdade, para que isso não volte a acontecer, nem que seja na verdade com a ajuda de colegas que trabalham com a parte de abuso e dependência química.
Agora, o importante que me veio à cabeça agora, doutor Drauzio, é sim que os estudos de início da medicação, lá atrás, né, e o correto acompanhamento, né, quando é criança, diminui muito a frequência nesses jovens [de] utilizarem outras substâncias — inclusive substâncias ilícitas —, né.
Então, quando a gente está falando de crianças muito interativas e impulsivas, se a gente consegue tratar impulsividade hiperatividade, a chance dele se aproximarem sei lá, de bebida alcoólica, ou mesmo de substâncias ilícitas, diminui bastante. Os estudos desse segmento mostram isso.
Então, o remédio acaba tendo um efeito protetor, né, assim, se colocado antes, né, obviamente antes da adolescência, diminui chances de que na adolescência e na vida adulta esses jovens se envolvam na verdade com substâncias ilícitas, por exemplo.
Duas perguntas que são a mesma, eu acho: você começa a tomar a medicação, quer dizer que a criança vai tomar pelo resto da vida? [A] segunda: pode fazer janelas sem tratamento no tratamento? Por exemplo, a criança [está] nas férias, né, [e] eu tenho 40 dias de férias. Pode suspender o medicamento por esses 40 dias?
Vamo lá. A medicação não necessariamente precisa ser tomada a vida inteira, e com pais e crianças eu eu falo muito bem sobre isso, porque eles têm muito medo, né… “Ter que”, nunca tem que nada, né, — poucas coisas a gente “tem que” na vida —, então, assim, essa não é uma delas.
Então, usar medicação é uma opção de tratamento, é a melhor talvez opção de tratamento, mas é uma opção ainda, então tem toda uma equipe e outra que também traz, né, esses ‘inputs’ de tratamento.
Bom, quando a gente mantém [o remédio] e o resultado é muito bom, claro que a gente vai sempre avaliando, e tem realmente um grupo de crianças e adolescentes que vão se adaptando e utilizando estratégias, e criando uma espécie de resiliência, que de repente se tornam adultos que não têm mais a intensidade e a necessidade de usar medicação para tratamento; não é uma obrigação que as crianças vão usar a vida inteira. Se for necessário, se elas se tornarem adolescentes e adultos que sentem a necessidade e tiver indicação, pode ser mantida, mas aí não tem a obrigação e a necessidade.
Em relação à questão das janelas de tratamento terapêutico, né, a gente parar um tempo, isso é muito comum com crianças e adolescentes, especialmente quando o remédio interfere no apetite, né, e dificulta obviamente que a criança se alimente. Especialmente algumas crianças que já são magras, né, e elas começam a ter, assim, uma rejeição, né, porque a medicação diminui o apetite, então elas rejeitam um pouco a comida. Tem pais que não conseguem lidar bem com isso, né, e acabam deixando a criança sem se alimentar direito.
E às vezes você chega a ver, né, em poucas ocasiões, mais nos casos mais graves, uma modificação no processo de desenvolvimento até de crescimento. Então, se isso acontece, né, a gente faz realmente nas janelas de tratamento, especialmente nas férias, né, que geralmente elas têm menor demanda de atenção, até em algumas situações, né, pontuais, embora isso seja exceção, no fim de semana, né, até que (inint) [00:20:24] “posso fazer de segunda à sexta?”, e de repente parar no fim de semana, se a dose é muito baixa, se a dose é baixa da medicação, a gente consegue realmente suspender esses dois dias e até investigar se isso melhora bastante a parte alimentar. Eu acho que esse é um ponto importante que justifica essas janelas.
Em outras situações, quando não tem nenhum efeito colateral, a gente acaba mantendo, né, mais de forma contínua, né, porque fora das escolas e dos trabalhos a gente também precisa ter atenção. E a gente vê que o benefício em outras situações, né, que não só de trabalho ou de escola é muito bom, com o tratamento.
Hoje o TDAH é bastante conhecido pela população de um modo geral, mas sempre é associado às crianças, né, à infância, e nós sabemos que TDAH pode se prolongar pela vida adulta. Sempre se prolonga? Se prolonga na maioria dos casos?
Existem uns estudos dos mais clássicos, até um pouco mais antigos, que mostram, na verdade, que a persistência na vida adulta é de cerca de 60 a 70%, tá, então não é obrigatório, né.
Definitivamente, tem crianças que se tornam adultos, né, sem TDAH, ou pelo menos uma quantidade tão, mas tão diminuta, e sabendo tão lidar com aquilo que não tem mais comprometimento do transtorno mesmo, mas tem um grupo grande que chega à fase adulta.
E existem muitos adultos que não têm diagnóstico na infância, então esses adultos à vezes sabem sobre o diagnóstico, sabem sobre o conceito de TDAH já com 20, 30 anos de idade, 40… e aí eles vem buscar realmente ajuda, e quando você busca a história deles, né, realmente tem uma história infantil, mas que na época aquilo não foi tratado como se fosse TDAH, e não teve acesso realmente a nenhum tipo de tratamento, e aí a gente faz o diagnóstico e trata esse adulto na vida adulta.
O interessante é que, assim, quando você está com uma criança com TDAH, você pode usar todo o melhor tratamento para ela, e eu digo assim, a gente tá escrevendo uma história, e aí essa história pode ser escrita desde o começo, de uma forma muito mais legal.
Quando a gente está na verdade vendo um adulto, a gente vai fazer o inverso: a gente vai reescrever uma história que já tem muitos vícios, que já tem muitas questões, até de organização mental, que foram solidificados com essa desorganização máxima. E aí dá mais trabalho, porque a pessoa tem que modificar coisas que talvez estejam muito incrustadas nela. Ela vai ter que fazer bastante esforço em terapias, se dedicar mesmo ao tratamento maior, porque o TDAH não é só a questão de atenção tomando remédio, a gente fala muito de disfunção executiva, que é essa dificuldade de planejamento, dificuldade de estipular o tempo para exercer cada atividade, de priorizar, de fazer escolhas, e esse funcionamento todo ele foi construído naquela pessoa adulta, né, sob égide desse déficit de atenção.
Então quando você vai reconstruir isso tudo, dá muito mais trabalho, né, e é bem mais complexo, nesse sentido, o acompanhamento do adulto. Se não, eles acabam fazendo isso, eles acabam às vezes pegando a medicação e atrelando, na verdade, o uso a uma determinada atividade específica, né, simplesmente para ficarem mais concentrados, para fazer uma coisa só, e aí isso não é tratamento, não é legal.
Daniel, esses diagnósticos que não são feitos, e a pessoa, já na infância, tem sinais claros de TDAH, que se mantém depois na vida adulta, que tipo de desarranjos costumam provocar?
Então, a gente tem, vamos supor, a criança, o adolescente que nunca foi tratado, né, e ele vem num acúmulo de problemas, tem uma área chamada de “the time study”, né, o estudo de uma vida inteira de um paciente que não foi tratado na infância, a gente sabe que vão somando fatores de risco e também de espíritos negativos.
Então, vamos pegar uma pessoa, por exemplo, com TDAH não tratado, chegou na adolescência, foi aprender a dirigir… E uma coisa que a gente sabe, né, que tem em pacientes que não são tratados: maior chance de desatenção, de hiperatividade na direção e comprometimento ou maior frequência de acidentes automobilísticos, problemas realmente, assim, de direcionamento mesmo na própria prática de direção — e aí a gente tem mais espíritos negativos nesse lado.
A gente também sabe que, pela impulsividade, tem estudos sobre doenças sexualmente transmissíveis, gestação não programada… Tudo isso mais frequentes na população não tratada. Vamos supor que uma pessoa passe por algumas questões dessas, e ela vai, cada vez mais, ficando angustiada de como a vida dela não se encaixa e não se organiza. Uma das coisas que na vida adulta começa a ficar mais frequente, é o aumento da chance de quadros depressivos, quadros ansiosos, então isso acaba sendo às vezes até uma espécie de consequência, desfecho a longo prazo do TDAH não tratado, e a soma de tudo isso, quando a gente vê o adulto, né, é aquela história da comorbidade: o paciente tem ansiedade, tem depressão, e quando você pega na história de vida inteira, um quadro de TDAH, que talvez contribuiu, né, para esse quadro, para aumento da chance do quadro de ansiedade e depressão, então essa história é muito comum.
Sim, na verdade, você tem pessoas que têm TDAH nítido, né. Deveras, quando eles contam a história de vida, você fala “desde criança que é assim”, né. Esses quadros costumam se agravar durante a vida adulta ou eles se mantêm mais ou menos estáveis?
A sintomatologia de inquietude, de hiperatividade, parece, em parte, diminuir, né, na vida adulta, ou talvez mais claramente ser melhor controlada por aquele adulto. Então, ele descreve até que ele fica com as pernas balançando, os dedos estão tamborilando ou então que os pensamentos são diversos, mas eles não têm aquela agitação que a criança tem de correr de um lado pro outro, subir nas coisas, então eles vão controlar, até por uma questão de etiqueta social.
Mas, a desatenção permanece, né, a disfunção executiva talvez até seja aumentada, agora, como as demandas da vida adulta são muito maiores, a expressão clínica e as funções de transtorno, o problema que aquilo causa, acaba sendo bastante maior.
A gente também tem que lembrar que as crianças geralmente estão com pais, né, que podem ter TDAH ou não, né, essa é outra questão, mas acabam que eles dão um pouco dessa conformação da casa, eles dão essa sustentação; e quando a pessoa está em voo solo, né, já adulta, ela tem que assumir realmente várias demandas diferente, e se ela tiver déficit de atenção não tratado, ela vai ter realmente muito mais dificuldade e comprometido. Por isso que aparece realmente mais na vida adulta, às vezes com mais comprometimento.
Na vida adulta, é difícil você ter um adulto que fica correndo na sala, não é?! Ele aprendeu, como você disse, que isso não se faz, não se deve fazer. Mas, o que deve chamar mais atenção? Porque tem gente que diz assim “eu sou esquecido, eu saio de casa, volto 10 vezes para buscar…”, “esqueci os óculos, esqueci a chave do carro…”, enfim, o que deve me preocupar? Porque todos nós esquecemos alguma coisa, temos desatenções. Mas quando é que eu devo me preocupar?
É isso, né, assim, acho que enfim, aqueles sintomas típicos que podem acontecer, que geralmente acontecem com frequência grande, às vezes, com o nível de comprometimento… Novamente, assim, importante: tem pessoas que tem isso tão frequentemente, mas é muito frequentemente, que elas começam a ter dúvidas delas mesmas, né, então, assim, elas o tempo todo estão se questionando se elas lembraram alguma coisa; elas não acreditam nelas.
Eu tenho alguns colegas, tenho até uma amiga pessoal que diz assim: “Dani, quando alguma coisa acontece, é ruim, né, quando o marido me chama, né, é porque eu sei que eu fiz alguma coisa errada, só não sei o que que é, porque ainda não lembrei, mas com certeza eu fiz alguma coisa errada e eu já fico me tremendo, porque, assim, eu já vou ter que me explicar para ele porque cargas d’água, né, aquilo aconteceu”.
Eu me lembro uma vez que ela falou assim, ela também perde tudo, aí ela pegou um ticket na saída do estacionamento e ela falou assim “eu não vou tirar esse ticket da minha mão, se não vou perder”, aí ela foi pra pagar. Ela falou que quando chegou lá, o ticket não estava na mão dela.
Daí ela falou assim: “Daniel, eu não sei. Pode ter acontecido tudo: eu posso ter parado para ver uma coisa no celular no meio do caminho, eu posso ter deixado no chão para amarrar sapato, enfim, qualquer coisa pode ter acontecido, que eu não lembro, mas no final das contas o ticket não estava na minha mão”.
Ela falou que ela olhou, ela tava tão frustrada, que ela quase começou a chorar na frente… o rapaz da bilheteria, lá, disse assim “minha senhora, é muito fácil, tem problema nenhum, a gente libera”, e ela estava chorando, p da vida com ela mesmo, né, o negócio do ticket era só mais uma das coisas, mas ela estava extremamente desapontada com ela e com a estratégia que ela criou e que não foi, na verdade, suficiente, né.
Então, assim, essa intensidade, a gente vê que aí são aqueles quadros muitos típicos, realmente muito comprometedor, e também, assim, uma coisa talvez um pouco mais típica, é a desorganização, sabe?
Eu vejo, às vezes, pelas as pessoas que chegam: “eu fiz três faculdades pela metade, quatro cursos de especialização de não sei o quê, decidi ir para o Estados Unidos, aí fiz não sei o quê lá, aí depois voltei…”, é uma vida completamente sem um rumo, e eles ficam chateados com isso.
No primeiro momento é romântico, né, e a pessoa faz 10 coisas ao mesmo tempo, incrível e não sei o quê, mas quando essas pessoas começam chegar aos 30, 40 anos, com a dificuldade de cumprir, né, muitos falam “Dani, eu sou aquela promessa não cumprida, eu sou aquela fraude, sou aquela pessoa que todo mundo acha incrível, que tem ideias brilhantes, mas eu não gosto nada”, e isso acaba sendo realmente, acho, que um ponto muito comum no consultório de adultos.
Nesses casos, muitas vezes o tratamento medicamentoso é brilhante, não é?
Sim. A medicação melhora muito a concentração, acho que ajuda muito a pessoa realmente até a recuperar, né, junto à terapia, essa essa confiança nela própria, obviamente acaba que, tudo muito bem acompanhado, ajuda bastante na autoestima, né.
Mas, assim, eu acho sempre importante a terapia em associação, sabe? Eu peço hoje muito, assim, que psicólogos que se interessem pela área, que se especializem, se formem nessa área, porque é um trabalho que a gente precisa em conjunto, né. Eu acho que só o médico, para o tratamento completo do TDAH, sempre falta alguma coisa.
Uma criança, ou mesmo adulto, que tenha acesso a esse tratamento multidisciplinar tem uma chance muito boa hoje de conseguir resultados bastante satisfatórios, né, em saber lidar e impedir que o TDAH provoque transtornos na vida pessoal, como esse que você descreveu. Mas, e as crianças pobres? As crianças que frequentam a escola pública? Como é a estrutura do SUS para o tratamento?
Então, o Brasil tem uma coisa interessante, né, a gente tem ilhas de excelência, talvez a gente seja um dos países com maior desenvolvimento de pesquisas, assim, de ponta em TDAH. A gente tem, então, assim, pessoas absolutamente brilhantes, né, Professor Palmares, Professor Roddick….
Mas, assim, dentro das universidades, né, e com serviço, claro, público, né, do SUS, nas universidades, mas,ainda assim, pequeno, para a quantidade da população que a gente tem.
Então, quando a gente vai para o SUS espalhado pelo Brasil todo, fora dessas ilhas de excelência das universidades, a gente tem muito desconhecimento ainda, a gente tem muito pouco a oferecer.
Em muitos estados a medicação não é regulamentada no SUS, não é oferecida, nem, na verdade, recomendada em curta duração — que é mais barato, né —, a gente não tem muito regulamento, a gente tem muito poucos profissionais da psicologia trabalhando nesses centros, que conheçam e sejam especializados em TDAH, então a gente também não consegue oferecer essa parte importante do tratamento.
Então, realmente é bem, bem discrepante. É, desde assim, centros de excelência, onde tudo isso é oferecido, né, onde pesquisa de ponta é feita e publicada no mundo todo, até, na verdade, o mais frequente, claro, até pelo tamanho do país, que são muitos centros completamente desassistidos e sem informação, sem pessoas especializadas e sem a medicação para ser oferecido para ser entregue realmente nas farmácias públicas, né, de forma gratuita.
Queria agradecer a essa essa conversa e aos seus ensinamentos, Daniel.
Muito obrigado, professor Drauzio.
Nós conversamos com o doutor Daniel Segenreich, Daniel é médico psiquiatra, com mestrado e doutorado em Psiquiatria e Saúde Mental na UFRJ, é Vice-Presidente da Associação Brasileira de Déficit de Atenção e professor da Faculdade de Medicina de Petrópolis.
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