Bicheiro sim, mas homem de respeito – Outras Histórias #56

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Publicado em: 21 de junho de 2022

Revisado em: 17 de agosto de 2022

O caráter de um homem não pode depender do lugar onde ele ganha a vida. Nem se for no jogo do bicho.

 

 

 

Em seu livro Por um Fio, o dr. Drauzio conta a história de seu Raimundo, paciente que trabalhou a vida toda como metalúrgico até se aposentar. Ele tinha uma personalidade conservadora e reservada, mas, depois de um tempo, o estilo mudou. As roupas estavam mais elegantes e a vida financeira melhorou: seu Raimundo tinha entrado para a contravenção como apontador do jogo do bicho.

A esposa, evangélica, não gostou dos rumos que a vida do marido estava levando e o convenceu a ir a um culto. Lá, ele escutou vários testemunhos. Mas o plano da mulher não deu certo. Ouça neste episódio de Outras Histórias.

Eu vou contar uma história que tá no meu livro Por um Fio.

Um paciente que eu tive e que eu conheci pouco, na verdade, eu soube que ele trabalhou até os 14 anos na enxada, no interior do Piauí, e depois veio pra Grande São Paulo, onde ele ficou na casa de um tio e arranjou um emprego de metalúrgico. Exerceu essa profissão exemplarmente na mesma empresa até a aposentadoria. Ele era casado, tinha duas filhas, netos, casa própria e um fusca reluzente, que ele mesmo consertava nos fins de semana. Era um homem de personalidade conservadora, reservado. Vinha pras consultas em companhia da esposa, que o aguardava na sala de espera. Usava uma calça com vinco, sapatos caprichosamente engraxados e um paletó marrom, antigo.

Passado um ano da cirurgia, a sua aparência mudou. Substituiu as camisas lisas por outras estampadas, vestia calças novas e aposentou o paletó marrom. Quando eu tomei a liberdade de perguntar a razão da elegância, ele respondeu, sério: “Estou na contravenção, doutor”. Contou que, depois da operação, havia sido aposentado na fábrica. Habituado à vida ativa, ele saiu desesperado atrás de trabalho, mas foi uma busca infrutífera pra metalúrgicos com mais de 50 anos. Em casa, foi invadido pela tristeza que a sensação de inutilidade provoca em homens com o temperamento dele. A vida só recuperou a graça quando um amigo lhe ofereceu um lugar de apontador de jogo do bicho, serviço leve: receber apostas e repassá-las no fim do dia pro bicheiro, em troca de uma comissão de 20%. No princípio, ele hesitou. Não que o incomodasse a natureza do trabalho, nada tinha contra esse tipo de contravenção, até arriscava um palpite, de vez em quando, perto da fábrica. Sua implicância era com o local de recolhimento das apostas, um bar de esquina. Logo ele que se orgulhava de jamais ter posto os pés num botequim. A resistência de sua rigidez moral só foi vencida quando o amigo argumentou que o caráter de um homem não pode depender do local onde ele ganha a vida.

Os proventos arrecadados com o jogo, somados à aposentadoria, possibilitaram um padrão de vida desconhecido pelo casal. Trocaram os eletrodomésticos, o fusca, e renovaram as roupas, além de ajudar as filhas a ampliar as casas. A serenidade que o equilíbrio financeiro proporciona, no entanto, encontrou um desses obstáculos difíceis de transpor na vida conjugal. Dona Rinalda era evangélica, temente a Deus e, em dúvida sobre a lisura da nova atividade do esposo, foi ouvir a opinião do pastor. O religioso disse que o jogo era invenção de Satanás, pecado mortal, armadilha criada pelo senhor das trevas para roubar à alma humana a ventura de no porvir desfrutar as delícias do paraíso. Deus, em sua infinita bondade, tinha reservado as profundezas do inferno para receber homens como seu Raimundo, atolados no vício.

Dona Rinalda quis morrer de infelicidade: “De que adiantava ela, serva piedosa, ir para o céu, e o companheiro da vida inteira arder no fogo do inferno?” Na ânsia de salvar a alma do esposo querido, abandonou a postura submissa de tantos anos e decidiu conduzi-lo à presença do pastor. Apartado das atividades religiosa desde os tempos do Piauí, seu Raimundo disse que não iria de jeito nenhum, respeitava a religião e os religiosos, mas não precisava de intermediários entre Deus e ele. Com a insistência da mulher, ficou bravo, ameaçou até sair para a rua quando a conversa recomeçasse. Ela, irredutível, todo dia voltava à mesma ladainha.

Depois de duas semanas de relacionamento tenso, seu Raimundo experimentou os limites da persistência feminina: dona Rinalda caiu de cama, a vida para ela havia perdido o sentido, não se alimentava nem falava com ninguém. Ele resistiu dois dias, enfezado, no terceiro, voz mansa, prometeu ir ao culto, com a condição de que ela voltasse a comer e acabasse com aquela bobagem. Homem de palavra, sábado à noite, saiu, sisudo, de paletó e camisa abotoada, com a esposa exultante, de salto, a caminho do culto. Era noite de testemunho. O pastor, inflamado, leu uma passagem bíblica interminável, e uma senhora em pé, no fundo, recitou uma oração, que ecoou em coro pela igreja lotada. Entre os fiéis, seu Raimundo lembrou das missas da infância no Piauí, cercado pelos homens de chapéu na mão e mulheres de véu escuro, e se comoveu com aquela demonstração coletiva de religiosidade.

Quando a reza terminou, vieram os testemunhos. A primeira a falar foi uma mulher que abandonara o marido trabalhador por uma vida de luxúria. Descreveu suas noites nas boates, com roupas escandalosas e os homens aos pés. Obcecada pelos bens materiais, chegou ao fundo do poço. O encontro com a igreja salvou-a, afinal. Tinha voltado para a família e construído um ninho para Deus no coração. O segundo era ex-usuário de drogas. Em busca da felicidade ilusória, havia destruído a vida dos pais e irmãos. Chegara a perambular feito mendigo pela Estação da Luz e a dormir em soleira de porta. Estaria morto àquela altura se Jesus não houvesse operado em seu espírito. Em seguida, veio um rapaz delicado, que confessou ter sido garoto de programa e feito sexo ao vivo em show de inferninho gay na Rua General Jardim. O quarto foi o testemunho de um alcoólatra regenerado, que antes, sob o efeito da bebida, batia na mulher e trancava os filhos no quarto escuro. Como os anteriores, também não estaria ali, caso Deus não tivesse se materializado na figura do pastor para recolhê-lo da sarjeta. Quando um ex-presidiário, assaltante arrependido, começou o último testemunho da noite, seu Raimundo levantou e saiu. A mulher alcançou-o no caminho. “Por que você veio embora?” “Sou homem de respeito, e ali só tem ladrão, viado, mulher da vida e bêbado. Só por que recolho jogo do bicho sou obrigado a me misturar com gente que não presta?”.

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