Ouvindo as histórias de guerra dos imigrantes que moravam no Brás, o pequeno Drauzio se perguntava como eles sentiam tanta saudades do país de onde vieram.
Em seu livro infanto-juvenil, Nas Ruas do Brás, Drauzio conta como foi a infância em um bairro industrial. Cheio de imigrantes que fugiam da Segunda Guerra Mundial, o Brás era regido pelo apito das fábricas. As famílias cheias de crianças organizavam a rotina de acordo com o horário de trabalho dos homens.
O pai de Drauzio era rígido e, quando dava 19h, o obrigava a deixar as brincadeiras na rua e entrar em casa. Esse hábito só era quebrado nas noites quentes, quando todos os moradores se reuniam para conversar na calçada. O futuro médico ficava ouvindo, surpreso, as histórias de guerra que eles contavam. Ouça neste episódio de Outras Histórias.
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Este podcast conta parte de um capítulo do livro Nas Ruas do Brás, um livro infantojuvenil que eu escrevi e que foi publicado logo depois do Estação Carandiru. Ele conta a história do Brás, que era um bairro de operários naquele tempo. Eu nasci durante a 2ª Guerra Mundial e a Europa tava arrasada, né, os italianos, portugueses, espanhóis não tinham o que comer e vinham pro Brasil, que era um país novo, tinha oportunidades.
Olá, eu sou Drauzio Varella, e aqui você vai ouvir Outras Histórias.
Eles passavam pela hospedaria dos imigrantes, que era um centro de triagem, tá até hoje lá, no Brás, vale a pena visitar. É muito bonito, muito interessante. Eles passavam, ficavam ali na hospedaria dos imigrantes, passavam por uma triagem e aí saíam atrás de emprego nas fábricas do bairro. E havia necessidade de mão de obra naquele tempo. Então, conseguiam emprego sem nenhum problema, mas todos eram pobres, moravam em cortiços, não é, e o cotidiano era cronometrado pelo apito nas fábricas. Então, as mulheres que ficavam em casa, todas tinham muitos filhos, né. Vamos lembrar que, naquele tempo, a taxa de natalidade brasileira era de seis, sete filhos por mulher, e elas ficavam ali cuidando da casa, fazendo todo o trabalho, com as crianças, com os filhos, e mandando pra escola, alimentação, lavavam roupa. E tudo era medido pelos apitos nas fábricas, que a fábrica apitava pela primeira vez às 8 horas, depois ao meio-dia e depois apitava no final do expediente, às 6 horas da tarde. Aliás, apitava ao meio-dia e depois apitava à uma porque os operários tinham uma hora pra fazer a refeição.
A gente vivia ali, nas mesmas condições que os outros, e minha mãe morreu muito cedo, morreu com 32 anos, e eu, minha irmã, meu irmão fomos morar com a minha avó, que era na mesma rua. Mas, depois, essa avó morreu também, e a gente ficava jogando bola na rua. Os meninos jogavam bola na rua o tempo inteiro, o dia inteiro. E as meninas brincavam na calçada, a rua era um lugar muito amigável, até acolhedor, né. Tinha um ou outro carro que passava, era muito difícil.
Meu pai tinha dois empregos, trabalhava muito, mas ele controlava a vida doméstica, especialmente controlava os filhos e, dos filhos, controlava mais este, que era mais moleque, não é. Ele deixava ordem pra gente se recolher às 7 da noite. Sete da noite a gente tinha que ir pra casa e não tinha papo com ele, sabe: “Pai, deixa”. Não, nem adiantava pedir que a gente não tinha sucesso. E a minha irmã e eu, meu irmão, a gente fazia a lição depois do jantar e deitávamos cedo, acho que 9 horas, por aí, 9 e meia no máximo, a gente ia pra cama. Essa rotina só era quebrada nas noites quentes, né, aquele calorão. E nessas noites os homens puxavam as cadeiras pra calçada e sentavam a cavalo nelas, sabe, assim, quando você senta ao contrário, quando você senta com o peito no espaldar da cadeira. Eles usavam aquelas camisetas sem manga, essas camisetas de regata, e sentavam com as pernas abertas e cruzavam os braços, assim, sobre o espaldar e ficavam horas conversando ali. E a criançada, em volta, ficava brincando de esconde-esconde, as meninas de amarelinha, meninos não brincavam de amarelinha naquele tempo. E aí, depois de lavar a louça, as mulheres vinham apanhar um ar. Elas diziam isso: “Ah, vamos apanhar um ar lá fora”.
Nessas noites, eu gostava se sentar do lado do meu tio, tio Constante, e ficar ouvindo os adultos. Falavam da vida na fábrica, o tamanho dos cachos de uva na Itália, os porões do navio com o qual eles tinham chegado, o feno – eles armazenavam feno nos celeiros, eu ficava pensando como será esse feno, não é, esse capim – e a fome e o frio que eles passavam. Eles passavam tão frio que muitas vezes iam dormir no estábulo, encostados nas vacas, pra poder esquentar.
As histórias que mais me impressionavam eram as histórias da guerra: bombas que caíam assobiando, corpos dilacerados, escombros, rajada de metralhadoras, campos de concentração. E diziam que, no campo de concentração, serviam uma sopinha rala e uma batata no almoço, mais nada. E eu gostava em particular quando eles descreviam a morte de Mussolini, o ditador fascista italiano. Tinha um senhor, chamava Nicola, nunca mais esqueci, ele andava com uma boina na cabeça, assim, e ele sempre falava da morte de Mussolini com as mesmas palavras: “Pegaram o desgraçado num posto de gasolina, fugindo disfarçado. Enforcaram e depois penduraram de cabeça pra baixo como porco na porta do açougue”. Nunca mais me esqueci dessa descrição do seu Nicola.
Não importa a idade, os homens tinham ar de senhores, todos eles. Jamais trocavam de roupa ou diziam palavrão na frente das crianças. Eu até achava que adultos não sabiam falar palavrão. Eles se tratavam com cerimônia e respeitavam a palavra empenhada. Dar a palavra de honra valia mais do que ter um papel assinado. Falavam de um mundo distante do Brás, sem comida, com aldeias cobertas de neve, trincheiras, metralhadoras espalhando morte por todos os cantos. Eu não conseguia entender como eles podiam sentir tantas saudades de um lugar como esse.
Semanalmente estarei aqui para contar Outras Histórias. A trilha sonora foi feita pela In Sonoris e a produção é da Júpiter – Conteúdo em Movimento.
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