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Testes de QI: o que são, como funcionam e por que são polêmicos?

Os testes de QI são eficazes e amplamente utilizados, mas não devem ser usados de forma isolada para medir a inteligência de uma pessoa. 
Publicado em 31/05/2023
Revisado em 01/06/2023

Os testes de QI são eficazes e amplamente utilizados, mas não devem ser usados de forma isolada para medir a inteligência de uma pessoa. 

 

A avaliação do quociente de inteligência (famoso teste de QI) é projetada para medir a capacidade intelectual de uma pessoa. O método, no entanto, é a típica ferramenta que pode tanto ser usada para gerar benefícios quanto para causar sofrimento. Ao longo de sua história, ao mesmo tempo que foi utilizada para ajudar crianças com dificuldade de aprendizagem, também serviu de munição para grupos eugenistas e racistas que a todo momento tentam encontrar alguma fórmula ou discurso para validar suas falsas ideias de superioridade.

Por causa dos perigos associados às falhas de aplicação, interpretação dos resultados e uso indevido, é consenso entre a comunidade científica que os testes de inteligência devem ser aplicados apenas por profissionais capacitados. No Brasil, o Conselho Federal de Psicologia (CFP) determina, com base na Lei Federal nº 4.119 de 27 de agosto de 1962, que somente psicólogos treinados realizem esse tipo de avaliação.

“A restrição se dá pelo fato de a avaliação psicológica ser um processo amplo e que envolve a integração de informações provenientes de diversas fontes de informação, dentre elas: testes psicológicos, entrevistas, observações sistemáticas e análises de documentos – e, dependendo dos objetivos da avaliação psicológica, a compreensão poderá abranger aspectos psicológicos de naturezas distintas”, explicou Evandro Morais Peixoto, psicólogo e conselheiro do CFP, em nota enviada à reportagem do Portal Drauzio.

 

Uma história centenária

Apesar das controvérsias, os testes são extremamente eficazes e amplamente utilizados, segundo os especialistas ouvidos. O primeiro modelo, que serviu de base para os demais, foi proposto em 1905 pelos psicólogos franceses Alfred Binet e Théodore Simon. A ferramenta criada por eles buscava avaliar a capacidade das crianças em idade escolar – aquelas que tinham baixo rendimento eram enviadas para programas especiais de educação.

A versão, incrementada posteriormente pelo psicólogo Lewis Terman, funcionava mais ou menos assim: uma avaliação com 30 tarefas era dada a um grupo de crianças. Se um menino ou menina com 7 anos conseguisse acertar uma pergunta respondida pela maioria dos indivíduos com a mesma idade, então teria a idade cronológica igual à sua idade mental. Por outro lado, se não fosse capaz de resolver o problema, teria uma idade mental abaixo da média e precisaria de ajuda na aprendizagem.

De lá para cá, o teste foi modificado e outras versões foram criadas. Em meados de década de 1950, o psicólogo americano David Wechsler publicou novos modelos chamados Escala Wechsler de Inteligência para Crianças (WISC, na sigla em inglês) e Escala Wechsler de Inteligência para Adultos (WAIS, na sigla em inglês), amplamente usadas até hoje em versões atualizadas. Ambas são compostas por testes que avaliam capacidade verbal, memória de trabalho, raciocínio perceptivo e velocidade de processamento. No Brasil, eles foram adaptados para a cultura local.

As pessoas que conseguem alcançar entre 85 e 115, segundo o modelo de Wechsler, têm uma inteligência média; aquelas que alcançam valores menores são considerados indivíduos com baixa inteligência; por fim, as pessoas com notas acima desse patamar são aquelas chamadas de superdotadas. No Brasil, os profissionais também costumam usar testes como o R-1 (Teste Não Verbal de Inteligência), o R-2 (Teste Não Verbal de Inteligência para Crianças) e o TIG-NV (Teste de Inteligência Geral Não Verbal). Assim como os anteriores, eles têm questionamentos e tarefas.

Os resultados obtidos nesses testes, no entanto, não contam toda a história sobre a inteligência de um indivíduo, segundo Alessandro Antonio Scaduto, professor do Departamento de Psicologia da Universidade Federal do Paraná (UFPR). “Uma coisa que gera confusão nas pessoas é que esses testes seriam uma medida de toda a capacidade intelectual, mas nem na psicologia científica a gente tem essa expectativa. Às vezes, isso é só o começo da conversa, já que isoladamente a inteligência é um preditor modesto do desempenho geral da pessoa.” 

Valéria Thiers, professora do curso de psicologia da Escola de Ciências da Saúde e da Vida da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), tem opinião semelhante. Ela explicou que os números dos testes não podem ser considerados como o único ponto a ser considerado. “Eu poderia dizer que uma pessoa com suspeita de deficiência intelectual tem QI inferior a 70, mas esse não é o único critério. Outra questão a ser considerada para eu falar de deficiência intelectual seria a autonomia com relação a atividades de vida diária, atividades funcionais, como higiene própria, organização, trabalho e estudos, por exemplo.”

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Onde o teste de QI pode ser usado?

Para os especialistas, o ideal é que os testes de QI não sejam usados de forma isolada, mas sim como ferramentas dentro de um contexto mais amplo, tal qual uma avaliação educacional, um exame de saúde ou mesmo um processo previdenciário. No geral, existem os testes de fator geral – a avaliação psicotécnica para tirar carteira de motorista é um exemplo – e os testes de fatores múltiplos, focados em educação, problemas cognitivos e potencialidades. Eles têm perguntas padronizadas e, conforme o tipo, podem durar de 30 minutos a três horas.

Nas clínicas-escolas dos cursos de psicologia, disse Valéria, os testes de QI são frequentemente usados em avaliações de aprendizagem. Um exemplo é o caso de alunos que não aprendem ou estão com dificuldade de absorver os conteúdos. 

“Ao longo da avaliação, além de entrevistas com responsáveis, professores e alunos, escolhemos um instrumento como um teste de inteligência. Nesse processo, precisamos ver se a questão do aprender é um problema do aluno, do conteúdo, da didática, da escola ou uma situação pela qual a família passa. Então a avaliação psicológica vai ter que responder a isso para não onerar e responsabilizar o sujeito como o único responsável pelo aprender ou não aprender”, falou ela.

“Outro exemplo é a pessoa que está entrando com uma solicitação de aposentadoria especial em virtude de contato com produtos químicos danosos. É uma avaliação específica, que precisa passar por anamnese (conversa), entendimento sobre quem é esse sujeito, qual a condição de vida dela, quais suas necessidades, o que está acontecendo, quais as queixas envolvidas, e que também vai contemplar um teste de inteligência para verificar a cognição. Aí dessa avaliação a gente vai fazer a síntese e propor um encaminhamento. A avaliação psicológica está sempre a serviço de uma resposta para um problema que foi apresentado”, disse Valéria.

Na saúde, um dos principais exemplos do uso de testes de QI é com pessoas idosas que começam a ter problemas de memória, de se organizar para as tarefas do dia a dia, entre outros. Nesse tipo de situação, compreender a inteligência é importante para se fazer o diagnóstico do indivíduo, segundo Scaduto.

 

O que é inteligência?

Assim como o teste de QI sofreu alterações, o próprio conceito de inteligência também vem mudando ao longo do tempo. No último século, pesquisadores relacionaram a inteligência à capacidade de pensar racionalmente, memorizar informações, se adaptar e lidar com as circunstâncias e o ambiente, pensar de forma global, formar conceitos, planejar, resolver problemas, usar a linguagem e por aí vai. 

Hoje, um dos conceitos mais difundidos entre a comunidade científica é a teoria das inteligências múltiplas, proposta pelo psicólogo americano Howard Gardner em 1983. No total, conforme explicado por ele em seu trabalho e em seu site, são oito tipos:

  • Espacial – Capacidade de conceituar e mapear objetos e espaços de larga escala. Exemplo de profissionais: pilotos de avião, marinheiros e arquitetos;
  • Musical – Envolve sensibilidade à música e a habilidade de cantar, tocar instrumentos e compor músicas. Exemplo: regente musical e cantor;
  • Corporal – Capacidade de usar todo o corpo ou partes dele para resolver problemas ou criar produtos. Exemplo: dançarinos;
  • Linguística – Sensibilidade ao significado e ao uso, tanto verbal como oral, das palavras. Exemplos: poetas e escritores; 
  • Lógico-matemático – Aptidão para analisar problemas com a lógica. Exemplos: matemáticos e cientistas;
  • Interpessoal – Chamada também de inteligência social, é a habilidade de interagir efetivamente com os outros. Exemplos: psicólogos e professores;
  • Naturalista – Habilidade de perceber, manipular e classificar a fauna e a flora. Exemplo: biólogos; 
  • Intrapessoal – Sensibilidade aos próprios sentimentos, objetivos e ansiedades. De acordo com Howard, esse é um tipo de inteligência global necessária em uma “sociedade moderna complexa, em que cada um tem que tomar decisões consequentes para si mesmo”.

Na década de 1990, na linha da capacidade intrapessoal, a ideia de Inteligência emocional, do psicólogo, escritor e jornalista Daniel Goleman, também começou a ganhar espaço. Em resumo, Goleman diz que esse tipo de inteligência é a capacidade do indivíduo identificar e lidar com as emoções e os sentimentos. 

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O lado sombrio do teste do QI

Os testes de QI, apesar dos inúmeros benefícios e usos, também têm um lado bem sombrio. Em meados de 1920, no estado norte-americano da Virgínia, por exemplo, a Suprema Corte dos Estados Unidos autorizou a esterilização de pessoas com baixa inteligência. Na Alemanha nazista, o governo do genocida e líder totalitário Adolf Hitler autorizava o assassinato de crianças com baixo QI. 

E não pense que o uso indevido da avaliação é algo do passado. Até hoje, cientistas renomados usam resultados de teste de inteligência para tentar justificar a falsa ideia de superioridade de determinadas raças em relação a outras. É o caso do biólogo americano James Watson, ganhador do prêmio Nobel de 1962 pela colaboração na descoberta da estrutura da molécula do DNA. Os cientistas Maurice Wilkins e Francis Crick também foram agraciados naquele ano. 

Em 2019, ao ser entrevistado para o documentário “American Masters: Decoding Watson” (“Mestres Americanos: Decodificando Watson”, em tradução livre), da emissora PBS, ele disse que brancos costumam tirar notas maiores do que negros por questões genéticas, algo sem fundamento científico. Ele já tinha feito afirmações semelhantes em outras ocasiões.

De fato, testes de QI feitos nas décadas de 1960 e 1970 apontaram as diferenças citadas por Watson. No entanto, as avaliações eram enviesadas, e não levavam em consideração questões sociais, ambientais e culturais. 

“Os testes de QI aplicados naquela época foram adaptados para uma população americana com uma escolaridade média muito superior à escolaridade dos outros sujeitos, que no geral eram imigrantes e não tinham muito domínio da língua, e aí foi produzido o fator cor de pele. Mas não podemos misturar alhos com bugalhos. Para que o instrumento seja válido, ele precisa mostrar que é capaz de ser sensível a questões culturais e identificar as diferenças em função de grupos diferentes”, disse Valéria. 

Scaduto ressaltou que tudo o que o ser humano é como pessoa resulta de experiências, e uma parte delas tem a ver com o acesso a direitos e à cidadania. A população preta, no entanto, é historicamente vítima de exclusão social, disse. “É aquela coisa simples que se eu não tiver condições de viver bem para aproveitar e ir pra escola e me dedicar a coisas que tenho curiosidade, eu não vou conseguir utilizar o potencial que eu tenho e nem aproveitar adequadamente a minha capacidade.”

 

Teste de QI online funciona?

Todo mês, segundo o Google, há entre 100 mil e 1 milhão de buscas pelo termo “teste de qi”. As expressões “teste de qi online”, “teste de qi gratis”, “teste de qi gratuito” também são bastante procuradas. Para aproveitar esse excesso de pesquisa, e monetizar em cima delas, há diversos sites e blogs que oferecem avaliações de inteligência. 

Esses testes de qi gratuitos, no entanto, não são recomendados pelos profissionais da psicologia. As avaliações, conforme disse o CFP e os especialistas ouvidos para esta reportagem, devem ser aplicadas por profissionais treinados. “Uma avaliação de inteligência sem motivo nítido e sem prestar atenção em outras características psicológicas corre o risco de ser uma medida muito imprecisa e inadequadada”, disse Scaduto. 

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Sobre o autor: Lucas Gabriel Marins é jornalista e futuro biólogo. Tem interesse em assuntos relacionados à ciência, saúde e economia.

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