A cesárea não deveria ser automaticamente sua primeira opção

mulher grávida com a mão na barriga. veja relação entre gravidez e coronavírus

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Publicado em: 14 de março de 2018

Revisado em: 2 de janeiro de 2024

Carmen Lúcia teve seu primeiro parto em 1978. O nascimento da primogênita ocorreu como o planejado, com direito ao parto normal e sem complicações. Dois anos depois, estava novamente no hospital aguardando o nascimento do segundo filho, que não veio com a tranquilidade da irmã mais velha. Depois de alguns contrações, o veredito foi dado: seria uma cesárea.

O parto foi complicado, sem a estrutura nem os equipamentos necessários, e com um médico que ela nunca havia conhecido. “Comecei a sentir as dores antes do esperado e precisei correr para o local mais próximo. A cama em que dei a luz estava enferrujada e parecia que nada estava limpo nem desinfetado”, relembra. A recuperação levou semanas e as marcas grosseiras, que alcançam a altura do umbigo, continuam visíveis quatro décadas depois.

A OMS (Organização Mundial da Saúde) recomenda que a cada 100 nascimentos, apenas 15 se apoiem na cesárea, mas essa proporção está distante da encontrada nas maternidades brasileiras. Nos últimos dez anos, de todos os partos feitos em rede pública no país, 55% foram cesáreas. O número nos torna o segundo país que mais realiza a cirurgia no mundo, ficando atrás apenas da República Dominicana. Na rede privada, o desequilíbrio é ainda maior: de todas os partos realizados nesse setor, 80% são cesáreas.

Cesárea x Parto normal

 

Como qualquer procedimento cirúrgico, a cesárea apresenta riscos. Comparada ao parto normal, ela é quatro vezes mais perigosa para a saúde da mulher. Complicações podem ocorrer tanto nas primeiras horas e semanas, ou em longo prazo. Anestesia, sangramento e abertura do útero podem provocar desde vômitos até lesões em órgãos próximos, como a bexiga e o intestino. “A cesárea veio para salvar bebês com problemas para sair ‘sozinhos’, e os riscos que ela carrega são mais baixos quando já está programada que em uma emergência. Ela não deve ser glorificada nem condenada, mas sim, usada em caso de necessidade, com excelente orientação do médico”, explica Ana Luiza Farias, ginecologista e obstetra da Santa Casa de Misericórdia de São Paulo.

A especialista também explica que se criou uma cultura de que, a partir de 40 semanas, o bebê deve nascer de qualquer jeito. Esse conceito é tão forte que às vezes até familiares sentem-se livres para indicar uma cesárea para a mãe, mas não é bem assim. A cirurgia deve ser feita em casos específicos, como quando pacientes com má formação ou tumor na vagina não suportariam o parto normal, ou quando o bebê não está em posição favorável. O parto normal de uma gravidez gemelar (gêmeos), por exemplo, pode ser arriscado porque as cabeças podem enroscar no cordão umbilical. A mesma avaliação deve ocorrer quando os fetos estão com os ombros na direção do canal vaginal ou quando há descolamento da placenta.

Por que cesáreas são preferidas?

 

Ana Paula, jovem mãe da capital de São Paulo, teve acesso apenas a hospitais públicos e relata que recebeu um acolhimento muito eficiente, inclusive depois do parto. Não pensou duas vezes e optou logo pela cesárea. “Achei que não daria conta de empurrar minha filha. O médico que me acompanhou explicou os benefícios e riscos, mas sempre senti que a cesárea seria a melhor opção”, diz.

E por que pessoas como Ana Paula continuam elegendo a cesárea como sua primeira opção? O medo da dor do parto e a possibilidade de escolher uma data para o nascimento geralmente são as primeiras respostas que surgem em nossa cabeça, mas essa é uma questão complexa. “Até pouco tempo, várias residências obstétricas ainda ensinavam práticas condenadas, como a episiotomia, que consiste em um corte feito na região do períneo para, supostamente, facilitar a saída do bebê. Já foi comprovado, com evidências científicas, que o procedimento é totalmente desnecessário na hora do parto”, explica Lígia Moreiras, doutora em ciências, saúde coletiva com ênfase em saúde da mulher e pesquisadora sobre violência obstétrica no Brasil.

A medicalização excessiva do corpo feminino ao longo da vida e até mesmo a sobrecarga da classe médica, que opta pela praticidade da cesárea em vez do extenso trabalho do parto normal, também pesam na balança.

Mas no ápice desta discussão está a falta de informação que famílias e mulheres, principalmente pobres e negras, têm neste período. “A mulher não escolhe como vai ser o seu próprio parto porque seu conhecimento vem do senso comum. Não falamos como o parto normal pode ser na vida real, sempre focamos na suposta dor excessiva, nas tragédias e na eterna demora que é para ver o seu filho nascer”, conta Lígia. Ainda segundo ela, os cursos para gestantes nunca são voltados para a qualidade do atendimento obstétrico, dando preferência a questões menores. “Alguns profissionais ainda dizem: preparem o quartinho e deixe o parto comigo. E não é assim. O que se deve ter em mente é: como tornar esta experiência de nascimento mais saudável?”

A OMS está criando medidas para que este desequilíbrio entre partos normais e cesáreas mude. Endossando a ideia, o Ministério da Saúde publicou em 2016 um Protocolo Clínico de Diretrizes Terapêuticas para orientar os profissionais da saúde sobre o tema e incentivar o parto normal. Funcionou? No ano de 2017 foram realizados 2,7 milhões de partos somente na rede pública. Desses, 58,1% foram normais. Ainda há trabalho a ser feito para alcançar os 85% recomendados, mas inverter posições e ultrapassar o número de cesáreas já é um avanço significativo para um país que estava no caminho oposto desde 2010.

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