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Incompatibilidade sanguínea | Entrevista

Publicado em 19/09/2011
Revisado em 09/08/2021

É importante conhecer as diferenças individuais e respeitá-las para realizar as transfusões de sangue com segurança. Veja entrevista sobre incompatibilidade sanguínea. 

 

Há 6 bilhões de seres humanos na Terra, mas cada um deles possui uma combinação de genes que o faz absolutamente único e diferente dos demais. Essa singularidade vale para todos os tecidos. Se tirarmos um pedaço de nossa pele para implantar num filho, certamente ele rejeitará a pele transplantada.

A mesma coisa acontece com o sangue, tecido vivo que circula por todos os órgãos do corpo. Nossos glóbulos vermelhos e brancos têm determinadas características que não se repetem em ninguém mais. Por isso, quando são transfundidos de uma pessoa para outra, o receptor recebe o sangue do doador como se fosse um transplante de órgãos e monta contra ele uma resposta imunológica, que poderá ser mais intensa ou mais delicada, dependendo do grau de compatibilidade existente.

Por isso, é importante conhecer as diferenças individuais e respeitá-las para realizar as transfusões de sangue com segurança, evitando incompatibilidade sanguínea. Cabe aos bancos de sangue determinar os sistemas sanguíneos e manter os estoques necessários para atender a demanda da população.

 

INCOMPATIBILIDADE SANGUÍNEA

 

Drauzio– O que diferencia o sangue de uma pessoa do sangue de outra?

Silvano Wendel Neto – Todos os seres humanos são geneticamente diferentes. Essa diferença vale também para o sangue. Só para termos uma ideia, ele é classificado principalmente como pertencente aos grupos ABO e RH, mas existem mais de 30 outros grupos sanguíneos, cada um carregando na superfície do glóbulo vermelho uma série de proteínas totalmente diferentes de um indivíduo para o outro. Esse é o primeiro aspecto.

O segundo aspecto é o que chamamos de reação incompatível ou incompatibilidade sanguínea. Numa transfusão, quando recebe os glóbulos vermelhos do doador, o receptor pode já ter desenvolvido anticorpos que reconhecem como estranha a proteína que está sendo administrada naquele momento.

Por isso, é muito importante conhecer as diferenças individuais para reconhecê-las e respeitá-las. Só assim será possível fazer transfusões ou manusear um paciente dentro do bom e moderno conhecimento médico.

 

Drauzio – Você disse que os sistemas mais conhecidos são o ABO e o RH. Portanto, as pessoas têm sangue dos tipos A, B, AB ou O e são RH positivo ou negativo. Você disse também que há mais de 30 sistemas como esses. No banco de sangue, além dos sistemas ABO e RH, são testados os outros sistemas?

Silvano Wendel Neto – Basicamente testamos ABO e RH, mas se tivermos conhecimento de que o receptor tem problemas específicos de incompatibilidade, testaremos o sangue também para os outros grupos.

É importante deixar claro, porém, que os sistemas ABO e RH são responsáveis por mais de 98% dos problemas de incompatibilidade sanguínea. Em certos momentos, porém, temos de nos preocupar com os outros 2% e o sangue deve ser testado para atender suas especificidades.

 

CONSEQUÊNCIAS DA INCOMPATIBILIDADE

 

Drauzio– O que pode acontecer com quem recebe sangue incompatível nos sistemas ABO e RH?

Silvano Wendel Neto – Do ponto de vista clínico, o sistema ABO é de longe o mais importante. Por exemplo, pessoas do grupo O apresentam naturalmente anticorpos contra os grupos sanguíneos A, B, AB. Se receberem sangue de um desses tipos, destruirão essas hemácias. Isso pode gerar uma série de distúrbios: queda brusca da pressão arterial, insuficiência renal, coagulação intravascular disseminada. O paciente começa a sangrar e, em 5% a 10% dos casos, essa reação pode ser fatal. Ou seja, uma transfusão incompatível pode induzir à morte.

Felizmente, hoje, isso raramente acontece, pois, há mais de cem anos, o fenômeno é conhecido na medicina. Portanto, em se respeitando alguns princípios básicos, a possibilidade de ocorrer é muito pequena, embora não seja inexistente.

O segundo problema está relacionado com o sistema RH. Ao contrário do sistema ABO, em que o indivíduo a partir dos seis meses de idade começa a produzir naturalmente anticorpos, no sistema RH essa produção não é natural. Para que tenha início, por exemplo, é necessário que um indivíduo RH negativo tenha tido contato com sangue RH positivo.

Como, nessas condições, o sistema imune começa a produzir anticorpos contra essa proteína, um novo contato pode provocar reação adversa, que é muito mais leve do que a do sistema ABO, embora também possa ser muito grave.

 

Drauzio– Se uma criança de cinco anos com tipo sanguíneo O receber sangue de um doador do tipo A, a reação certamente será muito grave. Já um homem de 50 anos, RH negativo, se receber uma transfusão de sangue RH positivo, pode não sentir absolutamente nada. Simplesmente ficará sensibilizado para uma segunda transfusão RH positiva.

Silvano WendelNeto – Exatamente. Isso vale não só para homens como também para as mulheres.

 

Drauzio – Pode-se dizer, então, que não é grave um doador RH positivo doar sangue para um paciente RH negativo, se não houver outra opção?

Silvano Wendel Neto– Se não houver outra opção e o receptor não tiver anticorpos presentes, não é grave, porque não vai induzir nenhuma incompatibilidade transfusional. Quando digo que não é grave, estou me referindo ao problema que a transfusão vai ocasionar no receptor naquele momento. No entanto, poderá ocorrer uma reação grave, se mais tarde ele vier a receber uma segunda transfusão de doador RH positivo.

 

DISTRIBUIÇÃO DOS TIPOS SANGUÍNEOS

 

Drauzio – Volta e meia, as rádios, especialmente as rádios AM, lançam pedidos de doação de sangue do tipo O negativo. Como é a distribuição dos tipos sanguíneos do grupo ABO e RH na população em geral?

Silvano Wendel Neto – Primeiro, é preciso entender que o sistema ABO é independente do sistema RH. Portanto, as frequências são distintas. Em linhas gerais, considerando o grupo ABO, 45% da população brasileira pertence ao grupo O; 40%, ao grupo A; 10%, ao grupo B e cerca de 5%, ao grupo AB. Embora esses números possam mudar de acordo com as características raciais e da população local, não costumam variar muito.

Quanto ao sistema RH, a frequência é outra: 85% das pessoas são RH positivo e 15%, RH negativo. Se quisermos saber a probabilidade de um indivíduo ser O positivo ou O negativo, temos de multiplicar as frequências do sistema ABO pelas do sistema RH.

 

Drauzio– Quais são os tipos mais raros de sangue, os que dão mais trabalho para conseguir doadores?

Silvano WendelNeto – O mais difícil é encontrar doadores do grupo O negativo. Não sei se todos se lembram dos conceitos de doador universal e receptor universal. É doador universal o indivíduo do grupo O que tem a vantagem de poder doar seu sangue para qualquer receptor, pertença ele ao grupo A, B ou AB, e a desvantagem de só poder receber hemácias do grupo O. Por exemplo, se o paciente é O negativo só pode receber hemácias do grupo O negativo. Se for do tipo A negativo, pode receber hemácias dos grupos O e A negativos, o que aumenta bastante a probabilidade de encontrar doadores. Já o indivíduo AB é receptor universal, porque pode receber sangue de qualquer tipo e apenas doar para pessoas com sangue AB.

 

FORMAÇÃO DE ESTOQUES

 

Drauzio– É sempre muito importante que o banco de sangue tenha disponível o sangue necessário para atender a demanda.

Silvano WendelNeto – Na verdade, o mais importante não é reconhecer as diferenças populacionais. É o banco de sangue ter estoques. Temos de estar sempre à frente de nossas necessidades. Temos de pensar que o sangue utilizado hoje deve estar armazenado há mais ou menos duas semanas. Ou seja, temos de ter um estoque que garanta a demanda por uma ou duas semanas. Por isso, o problema é mais de administração e de gestão do que, efetivamente, achar a unidade sanguínea compatível com determinado paciente.

 

Drauzio– Você acha que atualmente os bancos de sangue conseguem doadores com mais facilidade do que conseguiam no passado?

Silvano WendelNeto – Conseguem. O sistema de coleta de sangue no Brasil está muito bem organizado. É lógico que não podemos achar que a realidade no eixo da avenida Paulista em São Paulo (SP) seja a mesma de lugares remotos do País. Pode-se dizer, no entanto, que os bancos de sangue, sejam eles ao sistema público, sejam do sistema privado, estão bem estruturados.

Existem alguns períodos do ano em que há redução no número de doações. Isso acontece nos feriados de Páscoa, Carnaval, do Natal e do Ano-Novo e obriga o banco de sangue a permanecer atento para começar a trabalhar com antecedência a fim de manter os estoques dentro dos níveis necessários para o atendimento da população.

 

AUTOTRANSFUSÃO

 

Drauzio– Alguns médicos, quando vão realizar uma cirurgia eletiva, com data marcada, e sabem que provavelmente aquela pessoa precisará de transfusão, colhem o sangue do próprio paciente para fazer uma autotransfusão quando terminar a cirurgia. O que você pensa a respeito dessa prática?

Silvano Wendel Neto – A autotransfusão é uma ferramenta importante na medicina, mas não deve ser superestimada, porque são poucas as vezes em que o paciente realmente vai necessitar daquela unidade de sangue colhido. Na verdade, nossa experiência mostra que cerca de 1/3 dos pacientes colhe sangue a mais do que precisa e 1/3 colhe sangue a menos.

Apesar de existirem situações bem definidas em que a autotransfusão é fundamental, ela não pode ser encarada como única medida, uma vez que se trata de um procedimento complementar ao processo cirúrgico como um todo. Por isso, o cirurgião deve manter bom contato com o banco de sangue e encaminhar o paciente com antecedência. Não adianta mandá-lo hoje, se a cirurgia estiver programada para amanhã, porque não haverá tempo de tomar uma providencia efetiva.

 

TRANSFUSÕES NOS TRANSPLANTES

 

Drauzio– Gostaria que você falasse sobre a importância das transfusões de sangue nos transplantes de órgãos que são cada vez mais comuns hoje em dia.

Silvano Wendel Neto – O banco de sangue é fundamental para suporte dos pacientes que vão receber um transplante de órgão, qualquer que seja ele e, à semelhança de qualquer outra transfusão, os sistemas do grupo sanguíneo têm de ser respeitados. Não se pode iniciar um procedimento desse tipo sem estar devidamente acompanhado pelo banco de sangue.

À medida, porém, que essas intervenções estão sendo mais controladas, as equipes de transplante adquirem experiência maior e dominam melhor a arte, menos sangue é necessário. Talvez a exceção seja o transplante de medula óssea, porque existe uma fase em que ela não produz nada e o paciente precisa de suporte vigoroso de hemácias e de plaquetas. Já, nos transplantes de fígado, por exemplo, que antes exigiam 40, 50, 60 transfusões durante o ato cirúrgico, essa realidade praticamente não existe mais.

 

TRANSFUSÕES MÚLTIPLAS

 

Drauzio – Como se desenvolve a incompatibilidade sanguínea nos pacientes que necessitam de transfusões múltiplas?

Silvano Wendel Neto – É aí que entram aqueles 2% de que falamos no início da entrevista. No Brasil, existem duas comunidades que são grandes usuárias de transfusões de sangue ao longo da vida: os talassêmicos e os portadores de anemia falciforme.

 

Drauzio – Quais as principais características dessas duas doenças?

Silvano Wendel– A talassemia é uma doença genética que acomete basicamente a população dos países banhados pelo Mediterrâneo e seus descendentes. Ela se caracteriza por um defeito na produção de hemoglobina, componente do sangue responsável pelo transporte do oxigênio para todas as células do corpo. A anemia falciforme também se caracteriza por anormalidade na produção da hemoglobina, mas seu mecanismo genético é diferente e a doença acomete mais a população originária da África.

Nesses dois grupos de pacientes, quanto mais grave for a doença, mais eles irão depender de hemácias transfundidas. Como já disse antes, os anticorpos do sistema ABO são produzidos naturalmente, mas os dos outros grupos sanguíneos aparecem depois de uma transfusão. Já disse também que existem mais de 30 grupos sanguíneos, para ser mais exato, mais de 200 proteínas diferentes na superfície das hemácias e que não identificamos todas elas nas transfusões.

Assim sendo, à medida que um organismo reconhece uma proteína que lhe é estranha, pode passar a produzir um anticorpo específico contra aquela proteína. Portanto, nada impede que um doador compatível hoje se torne incompatível no futuro sem que esteja envolvido o sistema ABO. Ou seja, o doador de sangue compatível durante um período pode deixar de ser indicado para aquele receptor. Cabe, então, ao banco de sangue aplicar testes laboratoriais adequados a fim de reconhecer as incompatibilidades e selecionar novos doadores para determinado paciente naquele momento transfusional.

 

PERGUNTAS ENVIADAS POR E-MAIL

 

Geovana Albuquerque – Guarulhos?SP – Meu noivo é RH positivo e eu, RH negativo. Que exames devemos fazer antes de termos um filho?

Silvano WendelNeto – Nesse caso, a primeira coisa a fazer é levantar a história clínica da mulher. É preciso saber se já ficou grávida alguma vez (ficar grávida não significa necessariamente ter filhos; às vezes, ter tido um aborto é o suficiente para a mulher RH negativo que entrou em contato com sangue RH positivo começar a produzir anticorpos) e se já recebeu alguma transfusão de sangue.

O segundo passo é encaminhar o casal para testes laboratoriais extremamente simples a fim de confirmar o tipo sanguíneo de acordo com os sistemas ABO e RH e verificar se não existem anticorpos presentes no sangue dela contra o sistema RH.

 

Rodorvânia de Souza Araújo São Luís do Campo Maior/PI– Que riscos corre o bebê, filho de pais com RH incompatíveis?

Silvano Wendel Neto – Se a mulher for RH positivo e o marido Rh negativo, o bebê não corre nenhum risco. Os problemas podem surgir se ela for RH negativo e ele, RH positivo.
A probabilidade de o filho ser RH positivo é de 50%, quando a mãe é RH negativo e pai RH positivo. Se for o primeiro filho do casal e a primeira gestação da mulher que nunca recebeu uma transfusão de sangue RH positivo, o risco de a criança ser afetada é muito pequeno. No entanto, na hora do parto, ao entrar em contato com o sangue dessa criança RH positivo, a mãe com RH negativo passará a produzir anticorpos que poderão prejudicar os filhos que virão depois.

Felizmente, há mais de 30 anos, podemos contar com a imunoglobulina anti-Rh que previne a formação de anticorpos e deve ser administrada até três dias depois do parto. Existem alguns esquemas que preveem administrar uma dose pequena desse medicamento entre a 26ª e a 30ª semana de gestação. Isso aumenta a prevenção em torno de 2%, 3%.

 

Drauzio – Vamos imaginar o caso da mulher RH negativo que tenha sido sensibilizada anteriormente ou por meio de transfusão ou por meio de gravidez. Que riscos corre o feto nessas circunstâncias?

Silvano Wendel Neto – Nesse caso, a gestante é considerada de alto risco e tanto ela quanto o feto requerem acompanhamento obstétrico frequente.

Se o crescimento da criança for normal – existem alguns exames que mostram isso – não se faz absolutamente nada durante a gestação. Espera-se que ela nasça para realizar alguns testes sanguíneos. Embora seja um procedimento bastante incomum hoje em dia, algumas vezes, é necessário trocar todo o sangue da criança, porque está comprometido pelos anticorpos da mãe, mas a evolução costuma ser muito boa.

Nas situações mais graves em que o feto está sendo afetado pelos anticorpos maternos dentro do útero, existe a possibilidade de fazer uma transfusão intrauterina. Guiado pelo ultrassom, o obstetra introduz uma agulha no cordão umbilical ou direto na barriguinha da criança e administra sangue RH negativo a fim de fazê-la amadurecer mais depressa e apressar seu nascimento para evitar os danos provocados pelos anticorpos que a mãe está fabricando.

Em geral, crianças de crescimento normal dentro do útero, ao nascer, ficam no banho-de-luz (fototerapia). Já as que foram afetadas pelos anticorpos maternos precisam de acompanhamento neonatal mais cuidadoso.

 

Maressa Ferreira Fideliz – Governador Valadares/MG – Parentes próximos podem ter filhos normais?

Silvano WendelNeto – Existem alguns genes que precisam estar em dose dupla para manifestar uma doença. Casamentos consanguíneos aumentam a possibilidade de que os filhos recebam genes anormais dos dois lados, isto é, um da mãe e outro do pai. Isso não quer dizer que parentes próximos terão filhos anormais. Quer dizer, apenas, que a probabilidade de ter filhos com alterações genéticas é maior.

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