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A solidão das mulheres nas cadeias: para elas, a pena é dobrada

Quando uma mulher vai presa, além da pena, ela também recebe a sentença da sociedade: a solidão.
Publicado em 08/04/2024
Revisado em 08/04/2024

Quando uma mulher vai presa, além da pena, ela também recebe a sentença da sociedade: a solidão.

 

Diferente dos homens, quase toda mulher condenada à prisão recebe uma pena dupla: a do crime cometido e a da solidão. Enquanto as filas nas cadeias masculinas em dias de visita se estendem por quilômetros, as mulheres presas recebem — apenas e quando muito — a presença da mãe.

Longe dos filhos, abandonadas por seus parceiros e renegadas pelas famílias, elas entram e saem dos presídios sozinhas. O desamparo, no entanto, não é um mero sentimento individual: ele se reflete nas condições de saúde e de dignidade dentro das cadeias.

 

Quem são as mulheres presas no Brasil?

Adriana de Castro nasceu em Araras, interior de São Paulo. Aos 17 anos, teve o primeiro filho, João Vitor. Mais tarde, em 2003, conheceu o futuro marido. Ainda muito nova e completamente apaixonada, foi morar com ele em uma cidade vizinha. 

Mas essa não é uma história de amor.

A relação era conflituosa: Adriana era vítima de abusos psicológicos que só viria a reconhecer depois. Quando ela descobriu que o marido estava envolvido com o tráfico de drogas, a paixão falou mais alto. Acabou também entrando para o mundo do crime e, em seguida, eles tiveram dois filhos: Sandro e Gabriel.

Depois de um tempo, o marido foi preso. Durante a pena, Adriana o visitava com afinco. Em 2009, porém, ela é quem foi pega: a polícia encontrou entorpecentes em sua casa e ela foi condenada a oito anos de prisão por associação ao tráfico. O marido, então, a abandonou.

O perfil de Adriana é como o das mais de 45 mil mulheres privadas de liberdade no Brasil, segundo o Anuário de Segurança Pública de 2023. 47,33% delas têm até 29 anos, 63,55% identificam-se como preta ou parda, 37,67% estão presas em regime provisório e 59,9% foram acusadas pelo crime de tráfico de drogas.

Entre elas, o motivo que leva ao envolvimento no crime é quase sempre o mesmo: a influência de uma figura masculina. Em especial, a dos companheiros, que costumam deixá-las à própria sorte com os filhos após a prisão, independentemente de também estarem presos ou em liberdade.

Adriana, que só podia ter contato com quem o marido permitisse, foi condenada à solidão quando o filho mais velho tinha oito anos, o do meio quatro e o mais novo, apenas cinco meses.

 

Para a família, a mulher não pode errar

Além do abandono do parceiro, há o afastamento dos familiares. 

“A mulher não é vista como passível de errar ao ponto de estar presa. Seria contra a ‘natureza dela’, então é algo que acaba provocando uma dupla condição de preconceito”, explica a psicóloga Marina Benedet, especialista em Direitos Humanos, Responsabilidade Social e Cidadania Global, com experiência em projetos de pesquisa dentro de presídios femininos.

De acordo com o artigo 41 da Lei de Execução Penal, a visita de amigos e familiares é um direito previsto a toda pessoa presa, sendo regulamentado pelo regimento interno de cada estado. Os sábados e/ou domingos são os dias em que esses encontros acontecem, podendo entrar até dois visitantes por dia, além dos filhos e netos menores de 12 anos.

No entanto, não é raro que os finais de semana cheguem e a mulher encarcerada não receba uma única visita.

“As mulheres acabam sendo sempre quem cuida. E quando elas estão na condição de serem cuidadas ou assistidas de alguma forma, não são reconhecidas nesse lugar”, explica Marina. “A gente tem até alguns relatos de mães que dizem: ‘Do seu irmão, que também está preso, eu tenho que cuidar. Você se cuida sozinha’. A mulher é educada a dar conta de se virar sozinha, cuidando da vida dela e da dos outros”, continua.

Existem casos ainda de familiares que as rejeitam completamente, enxergando-as como pessoas que cometeram um erro imperdoável. Ou, ainda, que até querem visitar, mas ficam sobrecarregadas com as tarefas que eram responsabilidade delas antes de serem presas.

Além da falta de afeto, as mulheres que não recebem visitas também deixam de obter o chamado “jumbo”, um kit com alimentos e produtos autorizados pela unidade prisional que serve ainda para conseguir trocas dentro do presídio.

No caso de Adriana, os pais desejavam visitá-la, mas ela mesma pediu para que não fossem ao presídio. 

“Eles não deveriam pagar por um erro que eu cometi. Eu fiz isso por amor a eles, né? A eles e aos meus filhos. Eu não queria que eles me vissem naquele lugar. Eles entenderam, até porque já tinham uma certa idade. É muita humilhação, sabe? Tem que ficar abaixando, passando em revista. Eu não queria que meus pais passassem por aquilo”, relata.

Por lei, todos os visitantes devem ser submetidos aos procedimentos de revista mecânica, com uso de escâner corporal e detector de metais. Entretanto, segundo um relatório de diagnóstico das inspeções realizadas pela Defensoria Pública de São Paulo, entre 2015 e 2019, 68,5% dos visitantes relataram sofrer maus tratos nos dias de visita, incluindo revista vexatória, humilhações, abuso de autoridade, não disponibilização de banheiros, entre outras queixas. 

Até o fim da sua pena, portanto, Adriana manteve contato com os pais — e, consequentemente, com os filhos, que estavam sob os cuidados deles — apenas por cartas. 

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Terceira condenação: a distância dos filhos

“Muitas vezes, quando a mulher está presa, os filhos vão para abrigos ou estão com um familiar que já não tem mais proximidade com ela. Envolve também uma questão burocrática de quem está com a guarda dessa criança. A gente vê muitas mulheres que ficam completamente sem notícias dos filhos. Não sabem para onde foram ou com quem estão”, destaca a psicóloga.

Nessas horas, a dor da saudade faz companhia para a solidão.

De acordo com a Lei 13.769/2018, a mulher gestante ou que for mãe de crianças até 12 anos e estiver em prisão preventiva pode cumprir a pena em prisão domiciliar, desde que o crime não tenha sido cometido com violência ou grave ameaça à pessoa. Além disso, para as mulheres gestantes e puérperas, cabe ao poder público assegurar a assistência integral à saúde da mãe e da criança antes, durante e depois do parto.

Já no que diz respeito às mães em cumprimento definitivo da pena, é obrigatório que as prisões tenham um berçário, a fim de permitir a amamentação adequada até pelo menos seis meses de idade. A partir daí, a lei exige a manutenção de creches para o cuidado de crianças entre seis meses e sete anos cujas mães estejam presas.

A realidade, porém, é completamente diferente.

Segundo números do último Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias, o Infopen 2017, apenas 14,2% dos estabelecimentos penais possuem espaço reservado para gestantes e lactantes, somente 3,2% contêm berçário e/ou centro de referência materno-infantil e menos de 1% dispõem de creche. 

Os locais destinados à convivência entre mães e filhos são, portanto, raros. Eles variam entre os estados de federação, tanto no que diz respeito à estrutura quanto nas regras internas. Considerando que grande parte dessas mulheres não têm o respaldo de ninguém fora da prisão, o destino emocional, financeiro e material de suas crianças também fica comprometido.

 

Visitas íntimas para as mulheres é “regalia”

Ainda de acordo com o Infopen, 6,97% dos estabelecimentos prisionais construídos no Brasil destinam-se exclusivamente às mulheres. Entre as prisões mistas, somente três a cada dez contam com espaços adequados para que as presas possam receber visitas íntimas. Já no caso das unidades exclusivamente femininas, uma em cada duas não possuem lugares apropriados.

“Existe uma lógica de que a mulher que está presa não tem a necessidade de visitas íntimas. Não é favorecido, diferente do que acontece com os homens. É uma leitura social de que os homens precisam ter relações sexuais, inclusive para controlar suas emoções; e as mulheres, não”, avalia Marina.

O direito à visita íntima, inclusive, é recente. Foi apenas em 1999 que uma resolução do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária (CNPCP) recomendou que o direito fosse assegurado a ambos os gêneros. No Rio de Janeiro, por exemplo, um artigo de 2014 publicado na “Revista UFRJ”, mostra que os homens presos no estado têm três vezes mais chances de receberem visitas íntimas do que as mulheres.

“O que não quer dizer que elas não vivenciem sua sexualidade. Muitas vezes, elas passam a se relacionar com outras mulheres afetiva e sexualmente, sem se reconhecerem como homossexuais, porque essa é a forma possível de se ter um contato íntimo”, relata a psicóloga.

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O desamparo à saúde mental das mulheres presas

Diante de todo esse cenário, os efeitos na saúde mental da mulher encarcerada são inevitáveis. Segundo um estudo do Departamento de Psiquiatria da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), a prevalência de transtornos mentais graves entre as pessoas privadas de liberdade é de cinco a dez vezes maior do que na população em geral. E os índices são piores entre as mulheres.

Na pesquisa, 68,9% delas relataram já ter tido algum tipo de transtorno mental ao longo da vida, contra 54% dos homens. Distúrbios ligados ao transtorno fóbico-ansioso, como pânico, agorafobia e transtorno de estresse pós-traumático, afetavam 40% das mulheres e 26,4% dos homens. Outros distúrbios de natureza afetiva, como transtorno bipolar e depressão, eram relatados por 36,5% das mulheres contra 12,3% dos homens.

De acordo com Marina, os problemas costumam já estar presentes fora da cadeia e se intensificam durante a pena. Muitas delas recorrem ao álcool e às drogas como uma forma de “bloquear” os pensamentos ruins. 

Segundo o Infopen, o suicídio consta como uma das três principais causas de morte dentro das cadeias femininas, depois apenas dos óbitos por causas naturais e por causas criminais. 

“Quando a gente fala da importância da rede de apoio, é porque ela é um fator protetivo para os processos de adoecimento das pessoas. A gente sempre vai ter algum tipo de prejuízo, mas a rede de apoio dá o suporte para que ele seja menor. Diante da situação de estar em um presídio, onde há extrema vulnerabilidade, torna-se ainda mais essencial”, destaca a psicóloga.

Desde 2014, com a Política Nacional de Atenção às Mulheres em Situação de Privação de Liberdade e Egressas do Sistema Prisional, as mulheres presas devem ainda contar com  acesso a atendimento psicossocial nas unidades prisionais, por meio de práticas interdisciplinares que englobam as áreas de dependência química, convivência familiar e comunitária, saúde mental, violência contra a mulher, entre outras. 

No entanto, mais uma vez, a realidade é outra, como relata Adriana: 

“Imagina, não tinha acompanhamento nenhum. Mal tem ginecologista, mal tem dentista. Eu perdi dois dentes que quebraram. Porque você vai ficando fraca, vai ficando sem vitamina. Você não tem apoio nenhum. Nenhum. Só se for em último caso e olhe lá”, diz. Ao longo de sua pena, ela passou pelas penitenciárias de Pariquera-Açu, Penitenciária Feminina da Capital e Butantã.

Para tentar distrair a mente, Adriana dormia, escrevia cartas para a família e caminhava na cela. Além disso, aprendeu a fazer crochê, habilidade que a ajudaria depois de sair da prisão.

 

Depois de livres, mais solidão

“Quando elas saem, precisam reconstruir os vínculos. É uma solidão que não está presente só ali dentro. Fora, a solidão permanece”, lembra a psicóloga. 

Por muito tempo após a saída da prisão, foi apenas Adriana e os filhos buscando reconstruir a vida interrompida. Anos depois, ela conseguiu um vislumbre diferente para o seu futuro. Em 2021, foi “encontrada” (nas palavras dela) pela Passarela Alternativa, uma instituição filantrópica que capacita mulheres egressas do sistema prisional em moda, costura e empreendedorismo, fomenta a geração de renda para mulheres em situação de vulnerabilidade e ainda oferece acompanhamento psicológico e outros tipos de suporte. Lá, o gosto pelo crochê que surgiu dentro da prisão deu lugar ao amor pelo corte e costura, o que lhe rendeu uma posição na estamparia e na área administrativa do projeto.

Hoje, Adriana namora, é mãe de mais um menino, Lorenzo, formou-se em pedagogia e está cursando a pós-graduação em educação especial. Quando conta quem é e o que faz, a solidão nem aparece na história:

Consultoria jurídica fornecida pela advogada criminalista Bruna Basílio de Morais Silva.

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