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O processo de descriminalização do aborto de anencéfalos no Brasil

aborto anencefalo
Publicado em 12/04/2012
Revisado em 11/08/2020

Por 8 x 2, STF decidiu pela descriminalização do aborto de anencéfalos. Veja as teses dos ministros que sustentaram a decisão.

 

O Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu por 8 x 2 nesta quinta-feira, dia 12/04/2012, que mulheres gestantes de bebês anencéfalos poderão interromper a gravidez com assistência médica. Os votos favoráveis à descriminalização foram dos ministros Marco Aurélio, Joaquim Barbosa, Rosa Weber, Carmen Lúcia, Luiz Fux, Gilmar Mendes, Ayres Britto e Celso de Mello. Os ministros Ricardo Lewandowski e Cezar Peluso foram contrários.

Em meio à discussão gerada pelo julgamento a respeito do tema, é importante definir o que é anencefalia. No dicionário, anencefalia é a ausência total ou parcial do cérebro. No livro “Aborto – Guia para Profissionais de Comunicação”, lançado em 2011 e que pode ser consultado na íntegra neste link, anencefalia é a “malformação em que não acontece o fechamento do tubo neural, ficando o cérebro exposto”.

Um feto anencefálico é, portanto, um natimorto cerebral, segundo a própria definição do Conselho Federal de Medicina. A consequência, em 100% dos casos, é a morte. Em mais de 50% dos casos, o coração do feto para de bater ainda na gestação. Quando nascem, os bebês sobrevivem por minutos ou poucas horas. Segundo Gollop, há pouco mais de 15 casos na medicina mundial de anencefálicos que sobreviveram por mais tempo.

No Brasil, até a decisão do STF, não era permitida a interrupção da gravidez em casos de anencefálicos. A lei, de 1940, prevê o abortamento em casos de estupro e quando a vida da gestante está em risco. No entanto, desde o final da década de 1980, juízes brasileiros começaram a conceder alvará que autoriza o aborto para os casos de anencefalia. O primeiro alvará foi expedido em 1989, em Rondônia. Até hoje, cerca de 10 mil foram concedidos em todo o Brasil.

A jurisprudência foi aberta porque é possível diagnosticar com clareza essa condição pelo uso da ultrassonografia. Dr. Thomaz Gollop lembra que a anencefalia foi um dos primeiros diagnósticos reconhecidos por ultrassom, na década de 1960, nos EUA e Inglaterra. “Há mais de 50 anos se faz esse diagnóstico com absoluta segurança”, afirma ele.

“Existe 100% de segurança no diagnóstico. O SUS (Sistema Único de Saúde) faz 2,5 milhões de ultrassons por ano e qualquer médico minimamente treinado reconhece, por volta do 3º mês, um feto com anencefalia. Não há erro”, completa Gollop.

Dados da Organização Mundial da Saúde (OMS) apontam o Brasil como quarto país do mundo em partos de anencefálicos, atrás de México, Chile e Paraguai. Em 2008, a Febrasgo (Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia) indicou cerca de 20 casos para 10 mil nascidos vivos no País, número 50 vezes maior que na França.

Segundo pesquisa da mesma instituição, realizada com 1.814 médicos da Febrasgo e publicada em 2009, de 9.730 mulheres atendidas nos últimos 20 anos com o diagnóstico de anencefalia, 85% decidiram por interromper a gestação. “A autonomia da paciente é fundamental. Quando fazemos diagnóstico dessa natureza, temos a obrigação de informar do que se trata: gravíssimo, sem perspectiva de vida útil e sem tratamento. A partir daí, ela decide o que quer fazer”, analisa Gollop.

Trâmites jurídicos

Em abril de 2004, o CNTS (Conselho Nacional dos Trabalhadores em Saúde) e a ONG ANIS (Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero) apresentaram ao STF uma ADPF, Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental. O objetivo é que o STF julgue constitucional o direito de interrupção da gravidez em casos de anencefalia.

A iniciativa das organizações foi motivada por um requerimento que o STF recebera meses antes. Dizia respeito a uma autorização para interrupção da gravidez de uma jovem de 18 anos, de Teresópolis (RJ), com diagnóstico de feto anencefálico. O parto, com a morte do bebê apenas sete minutos depois, ocorreu antes de decisão da Justiça sobre o abortamento.

Depois de analisar o pedido, o ministro relator, Marco Aurélio Mello, aprovou a ADPF 54. Assim, durante três meses, entre julho e setembro de 2004, a mulher que quisesse interromper a gravidez em caso de anencefalia não necessitava de alvará judicial. No entanto, após forte oposição de alguns setores da sociedade, a liminar foi cassada pelo Supremo em outubro daquele ano, sob argumento de que precisava de melhor análise.

Em 2008, pela primeira vez, o Supremo fez uma convocação para audiências públicas e ouviu testemunhos pessoais, exposições técnicas, científicas e jurídicas sobre anencefalia. Dois então ministros também participaram das audiências, o da Saúde, José Gomes Temporão, e da Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres, Nilcéa Freire.

As conclusões das audiências foram claras: o diagnóstico de anencefalia é feito com 100% de certeza; a anencefalia é uma condição irreversível e letal em 100% dos casos; a gestação de um feto anencefálico é de maior risco para a mulher; a interrupção da gestação, nesse caso, não deve ser tratada como aborto, mas como antecipação terapêutica do parto e a anencefalia não se confunde com deficiência. A anencefalia é uma condição de inviabilidade de vida extrauterina.

Assim, desde outubro de 2008 até o início de 2011, o processo ficou aguardando entrada em pauta. Em março de 2011, o ministro Marco Aurélio apresentou o seu relatório, com uma descrição geral do processo, e pediu pauta para julgamento. O presidente, ministro Cezar Peluso, marcou o julgamento para o dia 11 de abril.

Em abril de 2009, a AGU, Advocacia Geral da União, emitiu parecer favorável à antecipação terapêutica do feto nos casos de anencefalia, com base na Constituição Federal, o que alimentou a esperança pela aprovação da ADPF 54.

Principais teses em defesa da descriminalização

O advogado Luís Roberto Barroso, professor titular de Direito Constitucional da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), foi quem formulou e apresentou a ação no STF. Em sua estratégia de argumentação, ele se apoiou em três teses.

Primeiro, a de que a interrupção da gestação em caso de feto anencefálico não constitui aborto, mas sim de fato atípico, segundo o jargão jurídico. “Nós ainda acrescentamos nesse tópico que não há, no Direito brasileiro, uma definição do momento em que tem início a vida, porém existe uma definição do momento da morte: é quando o cérebro para de funcionar. A lei de transplantes de órgãos considera a morte como a morte cerebral, encefálica. Nós argumentamos que, no caso do feto anencefálico, ele não chega nem a ter um início de vida cerebral, porque o cérebro não se forma”, sustenta Barroso.

O segundo ponto da defesa é que o código penal prevê duas situações em que o aborto não será criminalizado: quando a gravidez interrompida é resultado de estupro ou quando a gestação gera grave risco para a vida da mãe. “Nesses dois casos, o feto tem potencialidade de vida, porém o legislador, ponderando a potencialidade de vida do feto com a vida da mãe, ou com a violência física e moral sofrida pela mulher, permite a interrupção da gravidez. No caso da anencefalia, essa potencialidade de vida não existe. Portanto, a interrupção da gestação é menos drástica, é menos gravosa do que nos dois casos já previstos no código penal”, afirma o advogado.

Segundo ele, o código penal só não prevê expressamente a anencefalia como uma das exceções para a criminalização do aborto porque, quando foi elaborado, em 1940, não havia possibilidade de se fazer o diagnóstico.

Por fim, a última base para sustentar a defesa do aborto em caso de anencefalia é a da dignidade da pessoa. Barroso diz que um dos componentes da ideia do princípio da dignidade da pessoa humana é o direito à integridade física e psicológica. Obrigar uma mulher a levar a gestação de um bebê anencefálico adiante significaria ferir esses direitos.

“Nós consideramos que essa imposição de um prolongamento do sofrimento inútil dessa mulher viola a dignidade da pessoa humana. Nós sustentamos que esse é um momento de tragédia pessoal na vida da mulher. Algumas mulheres querem levar a gestação a termo, outras não querem. Cada um tem o direito de se comportar de acordo com seu sentimento e sua convicção. O Estado não tem o direito de tomar essa decisão pela mulher”, conclui.

 

Atraso

 

Para Barroso, o Brasil está muito atrasado na discussão do aborto. Mais ainda, o País está em marcha ré quando se fala em anencefalia. Segundo ele, pouquíssimos países do mundo, mesmo na América Latina, criminalizam a interrupção da gestação no caso de feto anencefálico e de fetos inviáveis em geral.

“A questão da anencefalia é uma questão muito menor, porque nem todas as implicações éticas do aborto estão presentes aqui, de modo que eu acho que essa é uma discussão menor. Nós estamos atrasados nessa matéria. Nenhum país democrático e desenvolvido impede a mulher de interromper a gestação no caso de anencefalia”, lembra.

Dizer que liberar o aborto em caso de anencefalia pode abrir precedente perigoso para eugenia, segundo Barroso, é levar a discussão para um terreno perigoso. “Não há criança anencefálica, não há adulto anencefálico. Portanto, quem suscita o propósito dessa discussão a temas como eugenia, ou está desinformado ou está de má fé. A eugenia não tem nenhuma relação com o que está sendo tratado aqui. O que está em jogo é a autonomia da mulher, é o direito da mulher em escolher como ela vai atravessar o seu próprio sofrimento”.

O ministro José Antonio Dias Toffoli se ausentou da votação, já que parte da tramitação do processo se deu quando ele era advogado geral da União, mas chegou a antever o resultado. “Eu não faço prognóstico, tenho essa superstição, mas o meu sentimento é positivo. A minha expectativa é favorável. Quando nós propusemos a ação em 2004, ela parecia quase impossível. Hoje, parece corresponder ao senso comum, o que significa que o debate evoluiu e que a sociedade brasileira amadureceu. Depois, temos de ir além”.

Mais: em entrevista ao site Drauzio Varella, o Dr. Thomaz Gollop esclareceu pontos importantes sobre a questão no Brasil. Assista aqui.

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