O câncer do colo do útero é o terceiro mais frequente entre as brasileiras, atrás apenas do câncer de mama e do colorretal, e a quarta causa de morte de mulheres por câncer no país. Segundo o Atlas de Mortalidade por Câncer, disponibilizado pelo SIM (Sistema de Informações sobre Mortalidade), em 2019, foram 6.596 vítimas fatais de uma doença que, na maioria dos casos, é evitável com exame de rastreamento e uma medida simples e acessível: a vacina contra o HPV.
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Desde 2014, o Ministério da Saúde oferece, por meio do Calendário Nacional de Vacinação, a vacina contra o vírus para meninas de 9 a 14 anos. Em 2017, o SUS (Sistema Único de Saúde) passou também a ofertar a vacina para meninos de 11 a 14 anos [EDIT: em setembro de 2022, o Ministério passou a oferecer a vacina para meninos de 9 a 14 anos].*
Países que organizaram boas campanhas de vacinação contra o vírus viram o número de casos de câncer do colo de útero despencar. O exemplo mais bem-sucedido é o da Austrália, que prevê erradicar a doença até 2028. Ruanda, no continente africano, conseguiu vacinar 94% das meninas e também espera reduzir drasticamente a taxa de mortalidade por esse câncer, em geral mais comum em países pobres.
Apesar de gratuita, a cobertura vacinal da vacina contra o HPV está bem abaixo dos 80% recomendados pelo Ministério da Saúde. Entre as meninas, 83,4% do público-alvo recebeu a primeira dose, mas apenas 55,6% tomou a segunda. Entre os meninos, esse número é ainda mais baixo: 57,9% dos jovens vacinaram-se com a primeira dose e apenas 35,6% com a segunda.
Mas por que a cobertura vacinal contra o HPV é tão baixa, se somos o país do SUS e temos uma das maiores coberturas vacinais do mundo, além de um programa de vacinação, o PNI (Programa Nacional de Imunizações), cuja excelência é reconhecida internacionalmente?
Primeiro, por ser uma vacina que evita uma série de doenças, como câncer do colo do útero, de pênis, de ânus, de uretra e de garganta, além de prevenir condiloma (o Ministério da Saúde afirma que cerca de 10% da população terá verrugas genitais em algum momento da vida). Depois, por permitir uma vida sexual mais saudável, com mais liberdade.
Muitos pais acreditam que vacinar crianças contra uma infecção sexualmente transmissível fará com que iniciem a vida sexual mais cedo. Além de não haver nenhuma relação entre a vacina e o início precoce da vida sexual, o motivo para vacinar as crianças é puramente biológico: crianças costumam ter uma resposta imunológica mais efetiva às vacinas do que adultos, principalmente antes de entrarem em contato com o vírus.
Outro motivo seria a falta de uma comunicação bem feita. O Ministério da Saúde já mudou o público-alvo algumas vezes, e reduziu de três para duas as doses necessárias. Especialistas apontam que as campanhas precisam ser mais bem comunicadas para aumentar a adesão.
O acesso a unidades básicas de saúde também é um empecilho para a vacinação. Muitas regiões não têm UBSs próximas, e seu horário de funcionamento é restrito.
Além disso, a queda da cobertura da primeira para a segunda dose entre as meninas se deve ao fato de que no início de 2014 a campanha de vacinação ocorreu nas escolas. Isso aumentou a aderência à vacinação, pois as adolescentes não precisavam procurar as unidades básicas para receber a vacina.
O outro motivo, que também afeta a cobertura das demais vacinas, é velho conhecido: a desinformação. Pesquisa da Sociedade Brasileira de Imunizações (SBIm) e da Avaaz, realizada em 2019 com 2 mil pessoas acima de 16 anos, avaliou o impacto das fake news na vacinação.
Os dados mostram que 13% dos brasileiros deixaram de se vacinar ou de vacinar uma criança sob seus cuidados. Isso representa um contingente de mais de 21 milhões de pessoas.
Entre as razões para a não vacinação estavam a falta de planejamento ou esquecimento (38%), falta de informação (27%), dificuldade de acesso a postos (20%), medo de efeitos colaterais graves (18%), entre outros.
A pesquisa revelou que 7 em cada 10 pessoas acreditam em, no mínimo, uma informação imprecisa sobre vacinas. Esse dado revela a importância de os profissionais de saúde abordarem o assunto todas as vezes que tiverem oportunidade, mesmo em atendimentos a outras questões de saúde.
Doença psicogênica
Poucas vacinas foram alvo de desinformação como a vacina contra o HPV. Entre 2014 e 2017, a equipe médica do IPq (Instituto de Psiquiatria) da USP avaliou, a pedido do Ministério da Saúde, mais de uma dezena de jovens acreanos que relataram sintomas como convulsões e desmaios que estariam associados à vacina contra o HPV.
Os psiquiatras Renato Luíz Marchetti e José Gallucci Neto analisaram os 16 casos mais graves de um total de 74 no Hospital das Clínicas da USP, e concluíram que a maioria havia desenvolvido um quadro de doença psicogênica, cujos sintomas têm origem psíquica e não orgânica.
“Trata-se de uma doença funcional do sistema nervoso, associada a uma situação de estresse emocional, no caso a vacinação. O paciente não inventa a doença, ele sofre de fato, mas os sintomas, embora estejam relacionados ao evento da vacinação, não são de forma nenhuma causados pelo imunizante”, explicou Gallucci.
Mesmo que os sintomas não tenham sido gerados pela vacina, o caso dos meninos do Acre ganhou a mídia, causando pânico nos pais. Outros surtos de doença psicogênica foram relatados no Brasil e no exterior, e isso incitou uma série de desinformações a respeito da vacina contra o HPV.
É urgente pensar campanhas bem estruturadas e comunicadas, que levem em conta os fatores que contribuem para a queda da cobertura vacinal. Sem isso, corremos o risco de ter de volta doenças erradicadas como a poliomielite ou de perdemos vidas por infecções evitáveis como a pelo HPV.
* O SUS também oferece a vacina contra o HPV para homens e mulheres imunossuprimidos (que vivem com HIV/aids, estão em tratamento oncológico ou realizaram transplante de órgãos, etc.) de 9 a 45 anos. Para esse grupo, a vacina é oferecida em 3 doses, com intervalo de 2 meses e 6 meses.