Lenacapavir: como funciona o medicamento revolucionário contra o HIV e por que o Brasil não pode usar - Portal Drauzio Varella
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Lenacapavir: como funciona o medicamento revolucionário contra o HIV e por que o Brasil não pode usar 

Saiba como funciona o lenacapavir e por qual motivo o Brasil não pode usar o medicamento ou seus genéricos

O lenacapavir é a nova ferramenta na luta contra o HIV, especialmente na prevenção. O remédio injetável, desenvolvido pela farmacêutica norte-americana Gilead Sciences, protege as pessoas contra o vírus por cerca de seis meses com apenas uma aplicação subcutânea. Dois grandes estudos publicados no ano passado mostraram eficácia entre 96% e 100% — o que, segundo especialistas, é bastante alto.

O impacto foi tão grande que a revista Science elegeu o lenacapavir como um dos maiores avanços científicos de 2024. “É uma poderosa adição à série de avanços biomédicos notáveis que estão constantemente fazendo com que o HIV/aids deixe de ser uma doença que desestrutura comunidades inteiras e passe a ser uma enfermidade rara”, disse o periódico. 

Apesar de sua relevância no combate a um dos maiores problemas globais de saúde pública, os brasileiros ainda enfrentam barreiras de acesso ao lenacapavir (ou a genéricos). Registros regulatórios em andamento, preço elevado e limitações em negociações internacionais são os principais impeditivos.

 

Por que o medicamento é tão poderoso

Segundo Gustavo de Araújo Pinto, infectologista e professor-adjunto da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), o lenacapavir atua bloqueando a formação do capsídeo do HIV. O capsídeo pode ser entendido como uma cápsula que envolve e protege o material genético do vírus.

“No caso do HIV, esse material não é o DNA tradicional, como nas nossas células, mas sim o RNA. Nas nossas células, o DNA fica protegido dentro do núcleo. Já nos vírus, essa função é exercida pelo capsídeo”, explica.

Ao impedir que essa cápsula seja formada, o lenacapavir compromete toda a estrutura do vírus. Sem o capsídeo, o HIV não consegue se multiplicar nem infectar novas células. “Quando inibimos a formação do capsídeo, bloqueamos também a capacidade de o vírus de gerar cópias de si mesmo. Consequentemente, inibimos a infecção de novas células”, completa o médico.

Nos Estados Unidos, o medicamento é usado desde 2022 como opção para pessoas que vivem com HIV multirresistente, quando os tratamentos tradicionais deixam de funcionar. “É o que chamamos de ‘tratamento de resgate’”, diz Jamile Barbiero Abdala, infectologista. Foi apenas em junho deste ano que o remédio recebeu aval da Food and Drug Administration (FDA, agência reguladora norte-americana, equivalente à Anvisa no Brasil) para uso como profilaxia pré-exposição (PrEP).

A PrEP é uma estratégia medicamentosa em que o indivíduo com alto risco de infecção pelo vírus toma remédio de maneira contínua ou episódica para evitar a transmissão em caso de exposição de risco. É um método de prevenção disponibilizado no Sistema Único de Saúde (SUS) desde o início de 2018.

Veja também: PrEP e PEP: como funcionam os medicamentos que protegem da infecção por HIV?

 

Estudos comprovam a eficácia do medicamento

O lenacapavir precisa ser injetado a cada seis meses. Sua efetividade foi comprovada por duas pesquisas. A primeira, publicada em julho de 2024, ganhou o nome de Purpose-1. Em resumo, os pesquisadores acompanharam 5.338 mulheres cisgênero de 16 a 25 anos na África do Sul e em Uganda. Enquanto parte recebeu a PrEP convencional, em comprimidos, outra parte utilizou o lenacapavir injetável. Nenhuma das voluntárias que recebeu a injeção se infectou com o HIV, mostrando uma eficácia de 100%. Já no grupo que usou os comprimidos, 55 mulheres contraíram o HIV. 

Em novembro do ano passado, outra pesquisa foi publicada, a Purpose-2. Dessa vez, o medicamento foi testado em 3.265 voluntários de diferentes perfis — homens cis e trans, mulheres trans e pessoas não binárias — em países como Brasil, Argentina, México, Peru, Tailândia, África do Sul e Estados Unidos. Houve uma redução de 96% no risco de infecção em quem recebeu a injeção, e apenas dois voluntários se infectaram.

“Tem uma taxa de proteção muito alta”, afirma o dr. Gustavo. 

As principais vantagens do lenacapavir em relação a outros fármacos para o HIV, segundo Janaína Teixeira, infectologista da Afya Educação Médica São João del Rei, estão no seu mecanismo inovador de ação e na forma de uso. Diferente dos tratamentos tradicionais em comprimidos, que exigem ingestão diária, o lenacapavir é aplicado por via subcutânea apenas duas vezes ao ano, a cada seis meses.

“Ou seja, diferentemente dos tratamentos convencionais em que o paciente precisa tomar comprimido todo dia, fazer o uso diário, ele é uma medicação injetável via subcutânea, como se fosse, vamos exemplificar, uma insulina, só que o paciente utiliza a cada seis meses, porque ele tem liberação prolongada”, explica. 

Em julho deste ano, a Organização Mundial de Saúde (OMS) recomendou o lenacapavir injetável para prevenir o HIV. Segundo a OMS, o medicamento representa um “passo transformador na proteção de pessoas em risco de contrair o HIV – particularmente aquelas que enfrentam desafios com a adesão diária, o estigma ou o acesso a cuidados de saúde”. O Brasil, no entanto, ainda não tem acesso à droga. 

 

Por que o Brasil ainda não terá acesso amplo?

Em audiência pública sobre o medicamento realizada em agosto na Câmara dos Deputados, Raphael Sanches Pereira, gerente-geral de Medicamentos da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), disse que há dois pedidos de registros da droga: um para tratamento de HIV, feito em novembro de 2024, e outro como PrEP, realizado recentemente. 

“Tanto o registro quanto a inclusão de nova indicação hoje estão já com status avançado de análise. Mais precisamente, os dois estão esperando uma resposta da empresa. Para o registro, existe uma exigência aberta há um mês, e o pós-registro, para a PreP, hoje [dia 28 de agosto, dia da audiência].” 

Há, no entanto, um grande impeditivo para a inclusão no SUS: o preço. Hoje, o tratamento para prevenção custa entre  25,4 mil dólares por pessoa ao ano (cerca de 136 mil reais) e  44,8 mil dólares (R$ 241 mil) por ano nos Estados Unidos, segundo estudos. A empresa farmacêutica não anunciou preço para o Brasil, mas nessa faixa inviabiliza a compra por meio do sistema público. 

No final do ano passado, a Gilead Sciences anunciou um acordo de licenciamento voluntário livre de royalties com seis laboratórios, que ganharam o direito de vender os medicamentos para 120 países considerados de baixa e média baixa renda. O Brasil, no entanto, ficou de fora da lista, por ser considerado de renda média. Um estudo da The Lancet, publicado em junho deste ano, estima que o lenacapavir genérico poderia ser produzido por 41 dólares e 94 dólares por pessoa-ano, dependendo dos volumes.

“A gente fala que toda inovação que não é disponível, que não é acessível a toda a população mundial, ela não é, na verdade, uma inovação. Ela se torna um privilégio de algumas pessoas”, diz a dra. Janaína.

A reportagem questionou o Ministério da Saúde sobre o contato com a Gilead, o andamento das negociações e a possibilidade de uso de genéricos. Em resposta, a pasta limitou-se a informar que “em relação ao lenacapavir injetável, o medicamento não possui registro na Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), requisito essencial para sua incorporação ao SUS”.

Veja também: Por que os casos de HIV têm crescido entre os idosos?

 

O que a Gilead disse? 

Na audiência pública na Câmara, Arturo De la Rosa, diretor e representante da Gilead Sciences no Brasil, afirmou que a empresa tem o compromisso de trazer ao país a inovação que o lenacapavir representa e que, desde o ano passado, vem trabalhando para transformar isso em realidade. Ele disse ainda que a molécula do medicamento foi desenvolvida a partir de uma pesquisa de 20 anos, e que a “empresa tem o desafio de fazer um balanço entre o acesso universal e o trabalho de muito tempo”.

Sobre o preço, Arturo ressaltou que é preciso aguardar as diligências em andamento no Brasil. Ele também disse que o lenacapavir deve ser visto como uma peça importante do “quebra-cabeças” para acabar com a epidemia de aids, mas não necessariamente como uma “bala de prata”. Segundo o representante, alguns países têm conseguido bons resultados no controle da doença por meio de outras alternativas, como a PrEP oral.

 

Histórico do tratamento do HIV no Brasil

O primeiro caso de HIV no Brasil foi registrado no início da década de 1980. No final dos anos 1980, o AZT — um medicamento antes utilizado em pacientes com câncer — começou a ser empregado no tratamento da aids. “Esse medicamento tinha muito efeito colateral e era pouco eficaz”, conta a dra. Jamile. 

Já em meados dos anos 1990, o país passou a adotar o coquetel de antirretrovirais, conhecido como terapia tríplice, marco no combate à epidemia. Décadas depois, em 2017, o país também começou a apostar na prevenção, e a PrEP foi incorporada ao SUS, com distribuição a partir de 2018. A estratégia trouxe bons resultados: em São Paulo, por exemplo, houve redução de 55% nas novas infecções em apenas sete anos.

O Ministério da Saúde, em nota, disse que o Brasil praticamente triplicou o número de usuários que receberam a PrEP do SUS. Hoje, segundo a pasta, são 135 mil pessoas recebendo o tratamento, contra 50,7 mil em 2022. “Esse marco reforça o compromisso do governo brasileiro na resposta ao HIV e à aids, garantindo que mais pessoas tenham acesso a estratégias de prevenção eficazes e seguras.”

Veja também: Quais são as diferenças entre HIV e aids?

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