O mundo aguarda a vacina contra a covid-19. Mas o que significa a interrupção do ensaio clínico da vacina da AstraZeneca?
Nunca o mundo desejou tanto uma vacina como agora, durante a pandemia de covid-19. Para desenvolvê-la, governos e farmacêuticas investiram bilhões de dólares, universidades e centros de pesquisas interromperam seus trabalhos, cientistas voltaram-se a estudos e pesquisas.
O resultado de tanto esforço mundial é um número expressivo de vacinas promissoras, muitas delas em fases avançadas de estudos, feitas em tempo recorde.
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Por isso, é natural que tenha gerado apreensão o anuncio, feito no dia 8/9/20, da interrupção temporária do ensaio clínico com a vacina desenvolvida em parceria pela Universidade de Oxford, na Inglaterra, e a farmacêutica inglesa AstraZeneca, devido à ocorrência de “evento adverso grave” a ser esclarecido.
Um evento adverso pós-vacinação (EAPV) é qualquer efeito indesejado sucedido após a vacinação que pode ou não ter sido causado pela vacina. Esses efeitos costumam ser leves, como febre baixa e dor no local da aplicação. Contudo, durante os ensaios clínicos não é incomum ocorrerem eventos adversos graves, que podem incluir hospitalização, risco de morte, incapacidade significativa e até morte.
Em caso de EAPV grave, o estudo clínico deve ser suspenso até que se esclareça sua relação com a vacina. Quanto tempo depois de tomar a vacina o indivíduo apresentou o efeito? O voluntário pertencia ao grupo-controle, que recebe placebo (substância inócua, que não causa nenhum efeito ativo), ou ao grupo que tomou a vacina? Houve relação causal, ou seja, foi realmente a vacina que provocou o evento? Há outras pessoas que desenvolveram quadros semelhantes? Essas são algumas das perguntas que os pesquisadores precisam responder antes de retomar o ensaio clínico.
A vacina de Oxford foi elaborada com uma técnica relativamente nova, que utiliza um veículo — no caso, um adenovírus que costuma causar um quadro semelhante a um resfriado em chimpanzés, mas é inofensivo aos seres humanos — com fragmentos do material genético do novo coronavírus, o Sars-CoV-2. Esse material é suficiente para despertar a resposta imunológica do organismo e fazê-lo produzir anticorpos contra o vírus, mas não para causar a covid-19.
A suspensão de um ensaio clínico é uma medida de segurança que costuma ocorrer com certa frequência. “A interrupção do ensaio clínico da AstraZeneca pela presença de um efeito adverso grave não é anormal, é um procedimento de rotina em estudos de vacina”, afirma a dra. Denise Garrett, médica epidemiologista e vice-presidente do Sabin Vaccine Institute, em Washington, nos Estados Unidos.
Com o planeta de olho na vacina, não demorou para notícias que especulam a causa da interrupção começarem a surgir poucas horas depois do seu anúncio.
O jornal americano “The New York Times” afirmou ter conversado com um parente de um voluntário do Reino Unido que teria desenvolvido mielite transversa, uma inflamação na medula espinhal que pode ser desencadeada por infecções virais e costuma ser grave. No entanto, nem a Universidade de Oxford nem a farmacéutica confirmaram a notícia.
Para entendermos a gravidade do efeito adverso que causou a interrupção precisamos ir além da especulação e aguardar os dados do estudo.
Pressão política
O episódio deveria servir, também, para colocar um freio nas autoridades políticas mundiais que prometem a vacinação em massa contra a covid-19 para este ano ou para o início de 2021, sem que ainda tenhamos uma vacina aprovada.
O presidente da Rússia, Vladimir Putin, já anunciou ter começado a vacinação em seu país com uma vacina cuja fase 3, a mais importante do ensaio clínico, pois é feita com milhares de pessoas, sequer foi publicada em revistas especializadas.
Donald Trump, presidente dos Estados Unidos, prometeu entregar uma vacina até o fim deste ano, em uma clara tentativa de colher os frutos da vacinação antes das eleições presidenciais que devem ocorrer no início de novembro.
No Brasil, o ministro interino da Saúde, Paulo Pazuello, afirmou, horas antes de a AstraZeneca anunciar a interrupção do ensaio clínico, que pretendia começar a vacinar os brasileiros em janeiro de 2021, justamente com a vacina da farmacêutica.
Essa interrupção não significa que a vacina não seja segura, mas que o estudo clínico está sendo conduzido com seriedade e transparência.
O fato ocorrido com a vacina inglesa revela a importância de respeitarmos o tempo da ciência e todas as fases dos ensaios clínicos.
A vacina contra o sarampo demorou dez anos para ser desenvolvida depois da descoberta do vírus, em 1953. Foi, até o momento, a vacina mais rápida da história.
Obviamente, muita coisa mudou de lá para cá. Graças ao desenvolvimento da ciência, acumulado durante as últimas décadas, é possível produzir uma vacina com mais rapidez, apressando as fases dos estudos. Mas apressar não significa saltá-las. A ciência tem seu tempo. Respeitá-lo é primordial para nossa segurança.
Antivacina
O movimento antivacina, embora amplamente presente em países como Franca e Estados Unidos, é pouco expressivo no Brasil. Isso se deve ao fato de nosso Programa Nacional de Imunizações (PNI) ser um dos mais eficientes do mundo, levando gratuitamente, por meio do SUS, vacinas para milhões de pessoas, mesmo nas áreas mais remotas e pobres do país.
A pesquisa Wellcome Global Monitor 2018, feita em 144 países pelo Instituto Gallup e divulgada no primeiro semestre de 2019, mostrou que 1/3 dos brasileiros desconfia da ciência. Apesar disso, 80% das pessoas confiam na segurança e eficácia das vacinas, taxa muito superior à da França, por exemplo, em que 1/3 da população suspeita das vacinas.
No entanto, nossa cobertura vacinal tem caído nos últimos cinco anos, e pela primeira vez em quase 20 anos, o país não atingiu a meta das principais vacinas indicadas para crianças até 1 ano, segundo levantamento dos dados vacinais de 2019, realizado pela “Folha de São Paulo”. Embora não seja possível responsabilizar apenas a desinformação e os antivacinas – nosso modelo de saúde ainda privilegia o tratamento de doenças em vez de ações de vigilância, prevenção e promoção em saúde -, especialistas apontam para o aumento da desconfiança nas vacinas.
De acordo com o médico sanitarista e advogado Daniel Dourado, é importante que as pessoas compreendam que as vacinas só são de fato eficazes se a maioria da população aderir às campanhas de vacinação. A chamada “imunidade de rebanho” (imunidade coletiva) só pode ser alcançada se a maioria da população se vacinar.
A Secretaria Especial de Comunicação Social (Secom) divulgou em suas redes sociais, em 1/9/20, uma peça publicitária em que o presidente Jair Bolsonaro afirmava que “ninguém pode obrigar ninguém a tomar vacina”, alegando uma defesa das “liberdades dos brasileiros”.
Embora ainda sequer tenhamos vacina para a covid-19, a frase instiga dúvida na população, que pode ficar ainda mais apreensiva após a interrupção do ensaio clínico da AstraZeneca.
É preciso que fique claro: o fato de a empresa ter noticiado rapidamente a interrupção mostra a clareza com que o ensaio tem sido conduzido. Publicar os resultados dos estudos para que eles possam ser avaliados e revisados pela comunidade científica internacional é parte essencial de qualquer estudo ou trabalho científico rigoroso. “Essa interrupção não significa que a vacina não seja segura, mas que o estudo clínico está sendo conduzido com seriedade e transparência. A única razão para esse evento estar recebendo tanta atenção dos meios de comunicação é porque se trata da vacina contra a covid-19”, conclui a dra. Garrett.
Para o dr. Dourado, o Estado pode limitar liberdades individuais em prol do bem-estar coletivo. “O governo não tem obrigação de incluir uma vacina contra a covid-19 no Calendário Nacional de Vacinação. Agora, se o Ministério da Saúde inclui-la, aí, sim, ela passa a ser obrigatória para crianças”, explica. Todavia, seria muito melhor se as pessoas entendessem a necessidade de agir coletivamente para enfrentar uma pandemia, apoiando e seguindo as orientações da ciência por compreenderem sua importância e não por imposição. Afinal, as vacinas são uma medida preventiva de saúde a que os brasileiros têm direito.