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Genética

Quimerismo: 2 códigos genéticos em 1 corpo

A personagem Brisa, da novela “Travessia”, tem uma condição raríssima que afeta a precisão dos testes genéticos; apenas 100 casos foram relatados na realidade.
Publicado em 02/05/2023
Revisado em 02/05/2023

A personagem Brisa, da novela “Travessia”, tem uma condição raríssima que afeta a precisão dos testes genéticos; apenas 100 casos foram relatados na realidade.

 

“Dom Casmurro”, maior clássico da literatura brasileira, aborda as incertezas da paternidade, um tema que sempre gerou controvérsias mesmo antes do surgimento dos testes genéticos. Na contramão dos saberes convencionais sobre genética, a novela do horário nobre da Globo instigou a audiência ao retratar o outro lado menos discutido: a dúvida sobre a maternidade biológica.

A suspeita aconteceu com a personagem Brisa, da novela “Travessia”, que não conseguiu comprovar o vínculo genético com o próprio filho. Os indícios sugerem que a protagonista tem quimerismo, uma rara condição em que um indivíduo tem duas populações de células geneticamente distintas no próprio corpo, o que explica a imprecisão nos testes de DNA.

A protagonista solicitou um exame para verificar se Ari é pai de seu filho – Tonho. O resultado mostrou que ele é o pai da criança; porém, não houve compatibilidade genética entre Brisa e o filho. Esse resultado seria possível apenas se ela adotasse o filho de outra parceira de Ari, o que é bastante improvável, visto que testemunhas presenciaram o nascimento da criança.

Apesar de extremamente raro, o indicativo de quimerismo retratado na novela suscita reflexões sobre responsabilidade e ética dos testes genéticos. A geneticista Susana Joya, assessora científica do Igenomix Brasil, acredita que esse exemplo de diagnóstico confuso pode acarretar consequências graves para o paciente e para toda a família. 

 

Causas e sintomas do quimerismo 

O quimerismo acontece devido à fusão de dois zigotos (embriões no início do desenvolvimento humano) em um só. Por isso, ao nascer, a pessoa quimera irá apresentar dois conjuntos de células com dois tipos distintos de DNA. Como se fossem duas pessoas dividindo o mesmo corpo.

Esse evento é considerado raríssimo pelos especialistas: a literatura científica moderna relata apenas cem casos diagnosticados. Contudo, a geneticista Susana Joya acredita que a ocorrência pode ser mais elevada do que os casos documentados: 

“A real prevalência do quimerismo em humanos é muito difícil de ser estimada, pois frequentemente ele não está associado à manifestação de sintomas”, informa. Os sintomas relatados pela literatura podem ser:

  • diferenças na tonalidade da pele;
  • cores distintas nos olhos;
  • grupos sanguíneos distintos no mesmo indivíduo;
  • desenvolvimento de órgãos genitais com partes masculinas e femininas;
  • texturas e cores diferentes no cabelo.

O diagnóstico é feito a partir da comparação do material genético da mesma pessoa. Os geneticistas comparam o DNA de células sanguíneas com células da saliva ou da pele, por exemplo. Caso as informações genéticas dos tecidos sejam distintas, a hipótese de quimerismo pode ser confirmada, segundo a pesquisadora.

Outro foco de atenção sobre o quimerismo se dá pelos mecanismos de rejeição de transplante de tecidos e órgãos. “Indivíduos quimeras podem sofrer com mecanismos de rejeição, resultantes em doenças autoimunes”, explica a geneticista.

 

Como o quimerismo pode se manifestar na vida real?

O primeiro relato científico sobre quimerismo sanguíneo no mundo ocorreu em 1953, em Londres. Uma mulher de 25 anos participou de uma campanha de doação de sangue e descobriu uma característica biológica desconhecida pela ciência. O seu tipo sanguíneo era AO: 61% de células do grupo O e 39% de células do grupo A. 

O conhecimento da época entendia que era possível ter apenas um tipo sanguíneo, variando entre  A, B, O ou AB . Porém, os cientistas descobriram que a duplicidade sanguínea ocorreu pelo recebimento de sangue tipo O do organismo de seu irmão gêmeo durante o desenvolvimento embrionário.

Uma injustiça judicial notória, ocasionada pela incompreensão sobre o quimerismo, ocorreu nos Estados Unidos a 20 anos atrás. Lydia Fairchild, mãe de duas crianças, solicitou inscrição em um programa de assistência governamental por conta da condição financeira difícil. Entretanto, o Estado negou o pedido após exames pedidos pelo juiz não mostrarem vínculo genético entre Lydia e os filhos. 

À época, os riscos de imprecisão do teste não foram considerados. Nem a posse das certidões de nascimento e o relato de médicos e enfermeiras que realizaram os partos de Lydia convenceram os agentes do judiciário. Após a realização de testes comparativos de DNA e pela pressão midiática em torno do caso, constatou-se que Lydia tinha quimerismo. Assim, o benefício social foi, enfim, aprovado. 

“Os profissionais da área de genética devem considerar todo o contexto clínico do paciente, a fim de evitar conclusões precipitadas baseadas apenas no laudo genético. Apesar de raros, o quimerismo e outros eventos biológicos podem confundir um diagnóstico”, explica a cientista.

Em 2018, a cantora norte-americana Taylor Muhl compartilhou o diagnóstico de quimerismo com o público. A diferença genética é nítida desde a infância: a barriga é marcada ao meio por duas tonalidades diferentes. “Senti liberdade após o diagnóstico, pois, pela primeira vez na vida, entendi o motivo da aparência da minha barriga. Antes disso, todos os médicos diziam ser apenas uma marca de nascença”, informou a artista em entrevista à revista “People” após descobrir a fusão de zigotos no início da gestação.

Veja também: Incompatibilidade sanguínea | Entrevista

 

Sobre o autor: Jhonatan Dias é jornalista independente e colabora com o Portal Drauzio Varella. Escreve principalmente sobre pesquisas em saúde, tecnologias e bem-estar.

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