O especialista comenta sobre a lei que determina a proibição do uso de aparelhos eletrônicos nas escolas e os impactos positivos para as crianças e adolescentes.
O uso excessivo de telas por crianças e adolescentes tem sido frequentemente apontado por especialistas como algo nocivo para o seu desenvolvimento. O Portal Drauzio conversou com o dr. Daniel Becker, pediatra, sanitarista e ativista pela infância, sobre esse assunto. Você pode ler a primeira parte da entrevista aqui.
Nesta segunda parte, repercutimos a lei que prevê a restrição do uso de aparelhos eletrônicos em todas as escolas públicas e privadas da educação básica, sancionada em janeiro de 2025. Os aparelhos não podem ser utilizados durante as aulas, recreios e intervalos, havendo exceção apenas em casos de necessidade ou força maior. A vedação não se aplica ao uso pedagógico dos dispositivos.
Segundo informações do Ministério da Educação, “a medida visa salvaguardar a saúde mental, física e psíquica de crianças e adolescentes, promovendo um ambiente escolar mais saudável e equilibrado”.
O especialista fala sobre os benefícios, os desafios para os educadores e familiares e de que forma a decisão pode ser implementada. Leia:
Criação da lei que restringe o uso de celulares nas escolas
Portal Drauzio: Recentemente, foi sancionada a lei que restringe o uso de celulares nas escolas públicas e privadas da educação básica. O que você pensa sobre ela? A medida pode ser útil no sentido de reduzir a dependência que algumas crianças e adolescentes têm em relação aos aparelhos eletrônicos?
Daniel Becker: Eu sou uma das pessoas responsáveis por essa lei e tenho muito orgulho disso. Eu fiz todo esse trabalho com a Secretaria Municipal de Educação do Rio, eles foram muito receptivos e muito sensíveis em relação a isso. Primeiro, proibiram na sala de aula, depois, em 2024, na escola como um todo, inclusive no recreio. A experiência foi excelente, houve mudanças de melhorias de aprendizado em matemática documentadas, teve mudança de disposição no recreio, atenção na sala de aula, alegria dos professores, menos bullying. Tudo isso está registrado.
E o que essa lei proporciona? Por um lado, o que eu acho mais importante: durante essas horas que a criança está na escola, ela vai ter uma pausa do mundo digital, porque do lado de fora é muito difícil. Ela sai do portão já de cabeça baixa, olhando para o celular, entra no ônibus olhando no celular, vai até em casa olhando no celular, chega em casa e almoça olhando no celular, de tarde fica no celular, no videogame ou no YouTube, enfim, ela não sai do celular. O celular é a coisa mais importante da vida dela. E no período que ela está na escola – de um período de 16 horas que ela fica acordada, alguma coisa assim –, vai ter quatro horas de pausa. As outras 12, a gente não tem como intervir, e a família tem muita dificuldade de intervir, porque não está o tempo todo com a criança, e porque quando está é difícil também.
E a coisa extraordinária que está acontecendo é que as crianças, com essa pausa, estão voltando a encontrar o mundo real e estão gostando. E aí, o que acontece? É que elas chegam em casa e têm menos interesse no celular. Elas pedem para voltar para uma aula de futebol, pedem para ir na casa dos amigos brincar, tem vários depoimentos de pais dizendo isso. Elas se interessam menos pelo celular. As pessoas achavam que ia ter um rebote, que a criança ia chegar em casa e ficar desesperada, que não ia querer largar o celular, porque ficou quatro horas sem… Não, o encontro com o mundo real pode fazer o efeito contrário, fazer eles lembrarem que é bom também estar no mundo real.
Portal Drauzio: Que efeitos a lei pode causar no ensino e na vida escolar dos alunos como um todo?
Daniel Becker: Eles vão voltar a aprender, a prestar atenção, a interagir com o professor. Vão voltar a conseguir estudar. E também nos recreios, vão voltar a brincar, interagir, correr, se movimentar, jogar bola, ganhar, perder, brigar, se reconciliar, abraçar, empurrar, resolver conflitos, criar soluções, criar ideias, discutir, debater. Tudo que o mundo hoje oferece, que a vida oferece, e que a criança precisa desesperadamente.
E vão brincar, que é a tarefa essencial da infância, especialmente os menores. Os adolescentes também brincam. A gente tem que lembrar que a brincadeira é uma forma muito importante de ganhar habilidades para o mundo adulto. É a principal maneira, muito mais do que aulas formais. A brincadeira também tem o seu papel, um papel fundamental na infância.
Sem brincadeira, não há infância e, sem infância, não há vida boa. A infância é a semente de uma vida boa, produtiva, feliz, capaz, cidadã. Então, eles vão voltar a ter infância, adolescência, vão voltar a brincar e adquirir todas essas habilidades e vão voltar a aprender também.
Uso do celular para fins pedagógicos
Portal Drauzio: A lei determina que o uso de celulares e outras tecnologias é permitido para fins pedagógicos. Você acredita que nesse contexto o uso de eletrônicos pode beneficiar o aprendizado?
Daniel Becker: Sim, é possível que algum uso de eletrônicos possa trazer benefícios para a aprendizagem. Existem várias formas de fazer isso, de pesquisas, em jogos, em gamificação pedagógica. Eu não sou um especialista, mas existem formas. Os países que tentaram digitalizar completamente o ensino fracassaram e voltaram aos livros. A Suécia fez isso de forma radical, acabou completamente com o ensino digital e entregou apenas aos livros a questão da educação.
Eu acho que a gente pode perfeitamente ter momentos tecnológicos durante as aulas, é só que eles não sejam com o aparelho pessoal dessas crianças, porque o aparelho pessoal vai trazer o YouTube e o TikTok – o TikTok é a mais nociva das redes, talvez, porque é a mais popular. Então, se a criança tem o TikTok, o YouTube e o Instagram no telefone, ela não vai prestar atenção na aula.
O que a gente pode fazer? Aparelhos da escola, aparelhos públicos, de uso compartilhado, com mais de uma criança por computador, por exemplo, tablets escolares ou quadros brancos digitais. Isso é sensacional, coisas mais incríveis podem acontecer, projetores com computador, enfim, tem milhões de possibilidades.
A inteligência artificial pode ser também usada como uma forma de a gente ensinar coisas importantes e, mais do que isso, ensinar as crianças a serem usuários ativos e críticos da tecnologia, e não passivos e imbecilizados pela tecnologia digital, pelas redes sociais. São coisas completamente diferentes. Uma coisa é o consumo passivo de conteúdo ruim que a gente encontra nas redes sociais e outra coisa é o uso ativo para pesquisar, para aprender, o uso crítico que o professor pode ensinar.
Inclusive, uma tarefa fundamental da escola hoje é a educação midiática, isto é, ensinar os meninos a usar de forma adequada a internet, a entender o vício, entender os algoritmos, como eles funcionam, entender a questão do tempo de tela, de como vencer esse vício, de como educar esse algoritmo, entender quando eles estão sendo influenciados por pessoas ruins. Entender a questão das ideologias nocivas que circulam mais na internet, o risco que elas oferecem para a democracia, a questão da hiperpolarização. Tudo isso pode ser ensinado, o consumismo, a futilidade, distinguir fake news de fatos, identificar o que é falso. Tudo isso pode ser aprendido com a ajuda do professor, e para isso nós precisamos de professores formados, inclusive.
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Portal Drauzio: Na sua visão, como essa medida deve ser implementada nas escolas? Que dificuldades os professores podem enfrentar e como os pais podem apoiá-los nesse processo?
Daniel Becker: Vai depender de como essa lei vai ser implementada em cada escola, nós temos uma diversidade enorme de contextos. Primeiro, entender que vai haver uma síndrome de abstinência de duas a três semanas, em que vai haver tentativas de burla, conflitos, reclamações, mas isso deve melhorar ao longo de duas, três semanas, porque eles voltam a encontrar o mundo real, a brincadeira, o aprendizado, eles percebem que aquilo é bom e acabam esquecendo um pouco do aparelho, acabam gostando do que está acontecendo, ficam felizes. Os professores, claro, mais felizes ainda, os pais também.
A segunda questão é que vai depender muito de como o aparelho vai ser armazenado. O ideal é que na entrada das escolas eles entreguem, que seja armazenado em um local seguro e que só seja entregue na saída. Essa é a melhor maneira, isso é mais do que discutido como melhor maneira.
Existem outras maneiras mais custosas que algumas escolas privadas podem implementar, como armários pessoais que fiquem inacessíveis ou bolsinhas magnéticas como as bolsas Yondr americanas, que você tem uma pochetezinha que você coloca o celular, a escola tranca com fecho magnético e o aluno não consegue abrir. Então, ninguém fica sem o seu aparelho, não fica só a responsabilidade da escola, que é um alívio para a escola, mas ele também não consegue acessar, ele tem que abrir a pochete na saída.
Outra opção é colocar em uma caixa com divisórias que fique dentro da sala, por exemplo. Mas não pode permitir que eles peguem nos intervalos. Esse celular tem que ficar desligado para que não haja notificações, fora do alcance do olhar dos alunos. Se não, ele fica ali olhando para aquilo, querendo pegar de novo.
A melhor solução realmente é entregar para a diretoria, para a secretaria da escola. E a pior é a mochila do aluno, porque vai distrair. Não tem a menor chance de ele não pegar e olhar debaixo da carteira, levar para o banheiro, etc.
A terceira coisa, vai ter que ter apoio psicológico para alguns adolescentes, especialmente, que estejam muito viciados, e que vão ter essa síndrome de abstinência mais forte. Eles precisam de apoio emocional. E no caso de escolas que esse fardo acabe no ombro do professor ou do inspetor, também tem que ter apoio emocional para o professor e apoio especialmente de educação midiática, para que esses professores possam trabalhar a educação mediática com os alunos, uma vez capacitados para isso.
Como explicar a proibição para crianças e adolescentes?
Portal Drauzio: Imagino que muitos alunos serão relutantes em relação à proibição. Como conversar com as crianças e principalmente com os adolescentes – já que a maioria deles possui um celular – a respeito dessa nova restrição?
Daniel Becker: A conversa tem que passar por participação, acho que eles têm que se confrontar com o fato de que é uma lei, de que são os adultos querendo protegê-los. A gente tem que explicar para eles que a lei, que a guerra, digamos assim, não é dos professores, das escolas contra os alunos, ou das famílias contra os filhos.
A guerra é de famílias, escolas, professores e alunos (crianças e adolescentes) contra as big techs, contra essas empresas que estão nos viciando, capturando os nossos dados, nos fazendo mal para o lucro próprio, unicamente para o lucro próprio, sem trazer nenhum benefício para a gente.
Pode trazer diversão, pode trazer a sensação de que aquilo faz bem, mas na verdade está [nos] viciando com dopamina exatamente da mesma forma que uma droga. Então, somos nós contra os algoritmos, é isso que as crianças têm que entender. E acho que a gente conversando com eles, eles podem entender isso.
E [é importante] eles serem representantes, ajudantes na implementação dessa lei.
[É importante ter a] participação, especialmente do adolescente, [saber] como ele está se sentindo, colocar isso coletivamente. Que a gente faça debate, que a gente discuta como implementar essa lei nas escolas, que a gente peça para eles trabalharem com as suas famílias nesse sentido, que a gente ofereça para eles oportunidades de expressão, de trabalhar a arte, o corpo, a expressão corporal, o teatro, aulas também de habilidades emocionais, de habilidades interpessoais.
Tudo isso são formas de trazer os adolescentes para perto e ajudá-los a superar a sua falta do celular, a superar o vício, e por outro lado também ajudar as escolas a implementar a lei.
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