Memória e linguagem são determinadas por uma série de fatores que afetam a cognição, a nossa capacidade de processar informações.
DECLÍNIO DA MEMÓRIA
Drauzio –– Muitas vezes, ouvimos pessoas de 40 ou 50 anos reclamarem de que a memória não funciona mais como antes. A memória declina com o decorrer dos anos?
Cláudio Guimarães dos Santos — Eu diria que, mesmo nos consultórios de clínica geral, depois da dor de cabeça, a queixa mais frequente refere-se à falta de memória. Do ponto de vista neuropsicológico, nem sempre ela reflete uma perda real de memória. Uma série de fatores pode contribuir para a percepção de que o lado cognitivo e mental já não funciona do mesmo jeito ou está passando por um processo de deterioração. Às vezes, a causa disso pode ser algo que tenha afetado a memória numa determinada fase da vida e não uma alteração definitiva.
Drauzio –– Se lhe digo: “Cláudio, fui ligar para minha filha, como faço todos os dias, e esqueci o número do telefone. Isso não me acontecia antes”, como você avalia se esse esquecimento resulta do acúmulo de informações a que estamos submetidos atualmente, do excesso de trabalho ou se é um esquecimento patológico que merece ser investigado?
Cláudio Guimarães dos Santos — Além da coleta criteriosa da história clínica, do exame físico cuidadoso e de um contato mais profundo com o paciente, a avaliação neuropsicológica é o instrumento básico para verificar o funcionamento cognitivo e mental de uma pessoa. Embora não se resuma a isso, ela consiste num conjunto de testes que tem por objetivo avaliar a qualidade do desempenho do indivíduo numa série de esferas da cognição.
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Desse modo, em relação às queixas de perda de memória, além do levantamento da história clínica e da avaliação neuropsicológica, pode-se recorrer, se for o caso, a exames subsidiários, alguns mais sofisticados (cintilografia, ressonância magnética), outros laboratoriais mais simples, que tornam possível diferenciar vários transtornos da memória. Acho importante assinalar que, em geral, não se trata de transtornos graves cujo tratamento ou consequências representem risco à vida do indivíduo. São coisas que o afetam naquele momento, mas que podem ser corrigidas. Apenas pequena parcela desses transtornos denota processos mais complicados e requer atenção maior.
É importante lembrar, ainda, o que representam o estresse do dia a dia e a enorme quantidade de informações que recebemos e temos de processar sem termos sido preparados para isso. A maioria das escolas prepara os alunos para memorizar informações como se constituíssem um repertório fixo e imutável, o que é incompatível com a evolução rápida do conhecimento moderno. O projeto educacional e pedagógico, portanto, deveria voltar-se para o desenvolvimento de uma poderosa capacidade crítica e seletiva, pois para processar informações é fundamental filtrá-las. Em geral, as pessoas não conseguem fazer isso e caem numa espécie de tempestade informacional provocada por uma avalanche de informações e compromissos que surge de todos os lados e gera um engarrafamento mental responsável pelos problemas de funcionamento da memória que, evidentemente, os indivíduos acabam apresentando. No entanto, isso pode ser equacionado e há recursos, como a psicoterapia e, em alguns casos específicos, os agentes farmacológicos, com os quais é possível contar. É fundamental, porém, fazer uma triagem prévia para separar os casos mais complicados, e a avaliação neuropsicológica é o instrumento que mais se presta para isso.
CONCEITO DE COGNIÇÃO
Drauzio — Qual o significado dos termos cognição e cognitivo?
Cláudio Guimarães dos Santos — A tendência atual é considerar que os termos cognição e inteligência têm o mesmo significado e identificá-los com o funcionamento mental. Cognição é a capacidade de processar informações.
Em se tratando do homem, é a capacidade de adaptação a situações absolutamente diferentes em curto espaço de tempo.
No entanto, vale explicar que a adaptação humana, em seus aspectos cognitivos, difere da adaptação biológica. Dizer que determinada espécie está adaptada a um nicho significa que sobrevive bem nesse ambiente. Afastada dele, entretanto, enfrentará sérias dificuldades de sobrevivência. É importante ressaltar que os homens não só desenvolveram, ao longo da evolução, a capacidade de adaptar-se a determinadas condições: dentro de certos limites, são capazes de modificá-las. Por exemplo, são capazes de desenvolver meios de sobrevivência no espaço, onde não há oxigênio, e teriam condições de viver debaixo d’água, se isso fosse absolutamente necessário. É a essa imensa capacidade de adaptação que se dá o nome de cognição, de inteligência humana.
No passado, enfatizava-se muito a divisão tripartite do funcionamento mental humano em cognição, motivação e afeto. A cognição englobava linguagem, memória e, sobretudo, raciocínio lógico. O afeto estava ligado à valoração do que é prazer ou desprazer, ao conteúdo emocional da vida. Por último, a motivação correlacionava-se com nossas necessidades mais básicas: sono, sexo, fome, sede, etc.
Atualmente, essa classificação estanque está ultrapassada. Há razões neurobiológicas, psicológicas e filosóficas que justificam superar tal segmentação. Sabemos, por exemplo, que estruturas do encéfalo ligadas à memória estão diretamente associadas a fenômenos afetivos e da motivação. Do ponto de vista psicológico, não se pode falar em memória sem falar em emoção. Por isso, o conceito de cognição abrange toda a capacidade de processar informações, de reagir ao que percebemos no mundo e em nós mesmos.
Enquanto interagimos com os outros, uma série de informações emocionais, não verbais, são processadas e encaminhadas para a memória. Por isso, determinado perfume pode evocar uma experiência antiga, porque faz parte da imensa malha de informações que constitui a memória.
AVALIAÇÃO NEUROPSICOLÓGICA E PSICOMETRIA
Drauzio — Como se faz para avaliar se a pessoa está realmente perdendo a memória?
Cláudio Guimarães dos Santos — Como já mencionei, além de uma interação maior com o paciente e do conhecimento de sua história pessoal, a avaliação neuropsicológica é o instrumento que mais auxilia nesse diagnóstico. Todavia, é importante distinguir avaliação neuropsicológica de psicometria. A psicometria antiga visava a medir, em termos quantitativos, a qualidade do funcionamento mental dos indivíduos, por exemplo, aplicando o teste de QI. O enfoque da avaliação neuropsicológica é diferente. Em primeiro lugar, é uma avaliação qualitativa.
Embora empregue instrumentos que possam originar pontuações, esses números são avaliados de maneira diversa. Não importa saber se a pessoa alcança ou não uma certa “nota de corte”. Interessa averiguar como erra, de que maneira realiza as atividades, que ligações estabelece para resolver as questões propostas.
Drauzio — Dê um exemplo desses dois métodos usando um teste de QI.
Cláudio Guimarães dos Santos — Vamos partir de um exemplo simples. Peço para a pessoa memorizar uma série de itens na ordem em que forem mencionados. Em geral, os povos ocidentais contemporâneos conseguem armazenar na memória de cinco a nove itens, obtendo sete como o número médio de respostas certas. Acontece que o desempenho dos indivíduos em tarefas desse tipo frequentemente é afetado pela estratégia utilizada para elaborar as respostas. Diante disso, o que diferencia a psicometria clássica da avaliação neuropsicológica é a percepção de que os indivíduos podem realizar tarefas iguais por caminhos diferentes e atingir os mesmos resultados, a mesma pontuação. Em vez da nota no teste, à avaliação neuropsicológica interessa inventariar a maneira que a pessoa escolheu para realizar o teste, quais foram suas dificuldades para tentar traduzir, depois, alterações na memória e no funcionamento mental que possam fornecer pistas para o tratamento. O objetivo dessa avaliação, portanto, não é rotular os indivíduos com base no diagnóstico, mas elaborar um levantamento do déficit e das maneiras de proceder que sirva como ponto de partida para a estratégia de reabilitação a ser implementada, respeitando a individualidade de cada um.
PARTICULARIDADES PESSOAIS
Drauzio — Por que essa preocupação maior com as características individuais?
Cláudio Guimarães dos Santos — O funcionamento mental é extremamente idiossincrásico, isto é, extremamente individual e único. É claro que somos todos seres humanos, com uma série de características em comum.
Desde que nascemos, porém, processamos todas as informações que recebemos de maneira muito peculiar, fruto do que nos aconteceu na vida.
Existe uma modelação morfológica do sistema nervoso específica para cada pessoa. Cada ser é incomparável. Para quem trabalha na área das disfunções cognitivas, e sobretudo com reabilitação, conhecer as diferenças e as características peculiares de cada indivíduo é o mais importante. Vale ressaltar isso, porque por muito tempo foi moda importar, principalmente dos Estados Unidos e da Europa, teorias e testes que nenhuma relação estabeleciam com a realidade cultural brasileira. Não se pode pegar um teste elaborado em Boston, por exemplo, e aplicá-lo no Xingu nem na periferia de São Paulo. A forma de reagir a determinadas situações varia de pessoa para pessoa, de cultura para cultura. Por isso, a avaliação neuropsicológica deve ser construída de acordo com a realidade específica da população à qual se destina ou aplica. Só dessa forma será possível traduzir, com toda sua riqueza, determinado funcionamento cognitivo.
MEMÓRIA E EMOÇÃO
Drauzio — Por que nossa memória privilegia fatos carregados de emoção como o primeiro beijo, o nascimento de um filho, o casamento?
Cláudio Guimarães dos Santos — A emoção, positiva ou negativa, pode potencializar ou inibir a recuperação da informação. Sabe-se que vítimas de grandes violências ou agressões costumam apresentar uma amnésia lacunar. Esquecem-se de tudo o que esteja relacionado ao evento.
Todavia, assim como emoção em altas doses parece inibir o processo de rememoração, doses limitadas de tensão emocional facilitam a fixação dos acontecimentos e sua posterior recuperação. Dessa forma, picos de alegria ou de tristeza podem prejudicar a rememoração, daí os famosos “brancos”, as amnésias de curta duração que ocorrem normalmente quando a pessoa é obrigada a realizar algo sob forte tensão.
A vida mental deve permanecer em contínuo processo de enriquecimento. Se a teia da memória não for amplificada, quando as perdas ligadas ao envelhecimento começarem a aparecer, aqueles que possuem uma rede empobrecida se ressentirão mais com o mau desempenho da memória.
CAPACIDADE DE MEMORIZAÇÃO – FAIXA ETÁRIA
Drauzio — Na nossa geração não há quem não se lembre do dia em que Kennedy foi assassinado e aposto que ninguém se esquecerá do dia dos atentados às duas torres de Nova York. Eu me lembro com detalhes do que fazia nas cinco vezes em que o Brasil foi campeão mundial de futebol. Existe um componente coletivo nessas lembranças?
Cláudio Guimarães dos Santos — Primeiro, é preciso considerar que pesam os fatores pessoais, isto é, aquilo que é significativo para cada indivíduo em particular. Por exemplo, alguém interessado em carros pode lembrar-se da data em que foi lançada a primeira Ferrari e de suas características mecânicas e de desempenho, mas não gravará um evento, mesmo que relevante da história mundial, se não o considerar pessoalmente importante.
Depois, é quase impossível deixar de registrar os acontecimentos de determinada época que, reforçados intensiva e diariamente pela exposição na mídia, criam uma espécie de memória de uma geração.
Por último, algo muito interessante, com consequências psicológicas e fundamentos neuropsicológicos, é a diferença que existe na capacidade de fixar informações relacionadas à própria biografia nas diversas faixas etárias. Parece que o ser humano fixa com detalhes informações sobre os acontecimentos que ocorreram no período compreendido entre o início da puberdade e a chegada da idade adulta (dos 15 aos 30 anos). O que acontece antes de começar a falar, ou seja, antes de dominar uma linguagem estruturada, é praticamente irrecuperável, pelo menos verbalmente. O que se passou entre essas duas fases geralmente é de rememoração mais difícil e varia muito de uma pessoa para outra.
Entre os 30 e os 50-60 anos, a memorização é mais ou menos constante. Em geral, as pessoas entram numa espécie de rotina. A vida assume configuração mais monótona, a memória deixa de registrar detalhes e, às vezes, falha. Ao entrevistar pessoas de 65 anos, nota-se que lembram bem o que lhes aconteceu nos últimos 2-3 anos e no início da juventude. Recordam pouco, porém, do que medeia a mocidade e os 65 anos. Parece que existem não só razões culturais e psicológicas mas também biológicas relacionadas com as transformações hormonais que ocorrem na puberdade para que lembremos o primeiro beijo, o primeiro encontro e outros fatos da juventude, porque essa seria a época em que estaríamos mais capacitados para fixar os acontecimentos. Os bons e os maus. Os traumas, nessa idade, também são registrados e relembrados mais vivamente porque, nessa fase, as experiências são mais intensas e marcantes.
PERDA DE MEMÓRIA
Drauzio — A memória faz parte tão intrínseca da condição humana que é difícil até imaginar como seria perdê-la.
Cláudio Guimarães dos Santos — Existem diversos tipos de perda, porque há diversos tipos de memória. Não há dúvida de que nossa identidade, ao longo da vida, é garantida pela memória. Ela estabelece a ligação entre o que fomos aos cinco anos e o que somos hoje. Se a perdermos, perderemos a identidade, como acontece com os indivíduos que apresentam transtornos mais graves. Esquecer um compromisso ou a data do casamento, apesar das possíveis consequências pessoais desastrosas, pode não representar um problema sério de memória.
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EFEITO MADALENA
Drauzio — Muitas vezes afloram recordações inesperadamente sem que tenhamos tomado nenhuma iniciativa para evocá-las. Por exemplo, você anda pela rua pensando nos compromissos daquele dia e sente um perfume que lhe lembra um fato da adolescência. Ou está dirigindo por uma estrada pela qual nunca passou, tem o chamado “déjà vu” e fala: já passei por aqui antes. O que explica esse tipo de fenômeno?
Cláudio Guimarães dos Santos — Costumo chamar isso de efeito madalena. Na verdade, não é madalena, é madeleine. No livro “Em Busca do Tempo Perdido”, Marcel Proust dá início ao processo de rememoração de sua vida, quando mergulha um bolinho francês chamado madeleine numa xícara de chá. O gosto daquele bolinho despertou um turbilhão de memórias e ele diz textualmente: “E toda a minha vida passada saiu naquele momento daquela xícara de chá”. Na verdade, as informações não estão arquivadas na memória humana como estariam num computador digital. Todos os registros estão altamente conectados, interligados. A força de cada um depende do número e da riqueza de interconexões estabelecidas com outras informações.
O respeito à individualidade, à especificidade de cada caso, nessa área, é fundamental. Quando se trabalha com neuropsiquiatria especialmente, o aforisma – não existem doenças, existem doentes – é um pressuposto básico.
Drauzio — Dê um exemplo para ficar mais claro.
Cláudio Guimarães dos Santos — Imaginemos que eu tenha de estudar um texto para uma prova. Se me ativer unicamente à sua leitura, terei uma determinada qualidade de desempenho. Ao contrário, se buscar enriquecer o assunto com outras informações advindas de fontes diferentes, estarei tecendo uma teia de significações extremamente eficiente para fazer com que eu rememore o núcleo, a essência do que terei que responder na prova. Esse processo de amplificação das informações é fundamental para que os registros sejam fixados. Para isso o contexto é muito importante. Quando estou interagindo com alguém, a compreensão do que me diz não resulta apenas de suas palavras, mas também de seus gestos, seu olhar, do lugar em que nos encontramos, etc.
Sabemos que, no processamento dentro do sistema nervoso, existe uma certa divisão entre aquilo que se diz e o como aquilo é dito. São informações diferentes que se processam de maneira diferente. Talvez, por isso, desconfiemos de certas pessoas sem que tenhamos motivos claros para fazê-lo.
Enquanto interagimos com os outros, uma série de informações emocionais, não verbais, são processadas e encaminhadas para a memória. Por isso, determinado perfume pode evocar uma experiência antiga, porque faz parte da imensa malha de informações que constitui a memória.
Em vista disso, é importante substituir a imagem da memória como uma série de compartimentos ou gavetas pela de uma teia em que cada evento está associado aos seguintes e aos anteriores. É evidente que existem pontos dessa teia que são mais requisitados, pontos que nossa atividade mental visita mais; fundamentalmente, porém, a capacidade de associação é a principal característica da memória.
DIALÉTICA: ASSOCIAÇÃO E SELETIVIDADE
Drauzio — De associação em associação a memória não fica congestionada?
Cláudio Guimarães dos Santos — Vivemos numa dialética constante entre associação e seletividade. De vez em quando, como fazem as aranhas, devemos fazer uma limpeza nessa teia, mantendo as associações mais ricas e cortando as desnecessárias. Nosso sistema nervoso já faz isso com frequência. O padrão das conexões entre os neurônios, que garante a riqueza da capacidade cognitiva, é constantemente refeito em seus detalhes. É costume as pessoas associarem memorizar com fazer novas conexões. Memorizar também pode significar desfazer conexões desinteressantes. Essa dialética entre seletividade e associação torna a vida mental mais rica.
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ESTÍMULO AO FUNCIONAMENTO DA MEMÓRIA
Drauzio — Como, apesar da idade, podemos estimular o funcionamento da memória?
Cláudio Guimarães dos Santos — A principal recomendação é manter o sistema ativo. Na cultura ocidental, a aposentadoria representa uma interrupção brusca das atividades para a qual o indivíduo se programa esperando deixar de cumprir as tarefas normais do cotidiano. Disso resultam duas fases distintas para a vida adulta.
A primeira, em que devemos assumir uma quantidade enorme de tarefas maçantes para garantir a sobrevivência e a segunda em que não fazemos mais nada. Essa oposição é prejudicial, porque o sistema nervoso, à semelhança de qualquer outro órgão, para ser útil precisa estar em constante funcionamento. A vida mental deve permanecer em contínuo processo de enriquecimento. Se a teia da memória não for amplificada, quando as perdas ligadas ao envelhecimento começarem a aparecer, aqueles que possuem uma rede empobrecida se ressentirão mais com o mau desempenho da memória.
Está demonstrado que para determinadas situações graves, como a síndrome de Alzheimer, por exemplo, a alta escolarização parece ser um fator de proteção, assim como a baixa escolarização será um fator de risco. Isso não significa que seja necessário ser PhD em Harvard. É imprescindível, porém, ter uma vida mental rica, livre de interrupções bruscas, independentemente do tipo de atividade escolhida. Em memória, como na área da cognição de maneira geral, não existe uma receita que sirva para todos. Existe o que é bom para cada tipo de memória. Há, porém, uma espécie de regra básica: é preciso enriquecer a memória e mantê-la em funcionamento de modo significativo permanentemente.
Para tanto, não adiantam atividades como a memorização de placas de automóveis, nomes, fazer palavras cruzadas ou outras sugestões que ouvimos por aí. O que realmente conta para a melhora do funcionamento mental é estabelecer conexões significativas.
Muitas vezes, o indivíduo mantém a língua materna, mas perde a segunda língua, a língua do país para o qual imigrou. Certa ocasião, atendi um português que morava em Macau e falava várias línguas. Depois de ter sofrido um derrame cerebral, perdeu a capacidade de falar chinês.
REAÇÃO FAMILIAR E POSSIBILIDADES DE TRATAMENTO
Drauzio — E quando a perda de memória é irreversível? Atualmente, todos temos parentes bastante idosos que começam a apresentar problemas de memória. Lembram-se muito bem de acontecimentos ocorridos na juventude, mas esquecem o que comeram no almoço. Como a família deve portar-se em relação a uma pessoa que apresente esses sintomas?
Cláudio Guimarães dos Santos — Essas perdas graves de memória podem ser desencadeadas tanto em pessoas mais idosas quanto nas mais jovens por uma série de diferentes fatores. Nos mais jovens, traumatismos craniencefálicos constituem a causa mais frequente. Nas pessoas mais idosas, as demências, como a doença de Alzheimer, ou as demências vasculares representam situações que progressivamente fazem o indivíduo perder a qualidade do funcionamento mental. Quer para as perdas mais abruptas, como as que ocorrem nos traumatismos ou nos derrames cerebrais, quer para as demenciais, existem estratégias e instrumentos terapêuticos que ajudam na reabilitação, fazendo com que os distúrbios se mantenham estáveis, regridam ou sejam compensados pelo desenvolvimento de outras conexões e habilidades.
A única coisa que não se deve fazer com uma pessoa com problemas sérios de memória é ignorá-la. Ela precisa ser estimulada a interagir com quem está por perto. Além disso, deve ser encaminhada para um serviço profissional de reabilitação neuropsicológica, que somado à utilização de agentes farmacológicos, pode ser decisivo para a melhora de sua qualidade de vida.
Antigamente e ainda hoje, infelizmente, lesões no sistema nervoso central eram consideradas irreversíveis, uma vez que os neurônios não se renovam. No entanto, já foi comprovada a possibilidade de diferenciar novas células nervosas e de desenvolver a reorganização funcional, ou seja, de adaptar outras áreas do cérebro para realizar a função comprometida pelas lesões. Há um ponto, porém, que precisa ser retomado: o tratamento não pode ser genérico. Ele tem de basear-se nas características únicas e específicas de cada indivíduo.
INDIVIDUALIDADE NO ATENDIMENTO
Drauzio — Você insiste bastante nisso, não é mesmo?
Cláudio Guimarães dos Santos — O respeito à individualidade, à especificidade de cada caso, nessa área, é fundamental. Quando se trabalha com neuropsiquiatria especialmente, o aforisma – não existem doenças, existem doentes – é um pressuposto básico. Recentemente, atendemos um indivíduo que, entre outros sintomas e alterações, apresentava um transtorno de memória desencadeado por traumatismo craniencefálico. Tratava-se de uma amnésia lacunar. Não se lembrava do que lhe acontecera entre os 30 e os 40 anos. Do resto, lembrava-se mais ou menos bem.
Durante a anamnese, descobrimos que ele gostava de música popular brasileira de determinada época e usamos esses registros musicais como uma espécie de sonda para potencializar a recuperação das informações o que tornou possível obter a melhora dos sintomas.
Outro paciente cujo caso evoluiu para um quadro de doença de Alzheimer, quando nos procurou pela primeira vez, tinha apenas a seguinte queixa: “Faço poemas, mas não estou conseguindo contar direito as sílabas, nem rimar os versos”. É claro que ele apresentava outros pequenos distúrbios, mas foi por aquele sintoma sutil que se acabou identificando todo o processo patológico.
Drauzio — Há muitos anos atendi um senhor japonês, de 70 e poucos anos, vindo do Paraná. A família relatou que ele havia adormecido depois do almoço e, quando despertou, não sabia mais falar português. Falava apenas japonês, a primeira língua que aprendeu. Pedi-lhe que fizesse uma tomografia computadorizada, àquela altura exame recém-lançado no Brasil. Ele tinha um coágulo no cérebro que foi retirado cirurgicamente. No dia seguinte à operação, encontrei-o falando português normalmente. Se não falasse duas línguas, talvez esse coágulo tivesse passado despercebido, não é mesmo?
Cláudio Guimarães dos Santos — É muito comum esse tipo de situação. Muitas vezes, o indivíduo mantém a língua materna, mas perde a segunda língua, a língua do país para o qual imigrou. Certa ocasião, atendi um português que morava em Macau e falava várias línguas. Depois de ter sofrido um derrame cerebral, perdeu a capacidade de falar chinês.
Essa área neurológica está associada a esses sintomas peculiares e a situações estranhas. Se não estivermos atentos, não conseguimos fazer o diagnóstico nem encaminhar o tratamento. Dizer que tem uma afasia, isto é, uma dificuldade de linguagem, seja de compreensão ou de produção, importa menos que descrever as dificuldades que o doente manifesta. Atribuir um rótulo vale menos que elaborar um inventário detalhado do déficit instalado.
RESULTADO DO TRATAMENTO
Drauzio — Com esse tipo de procedimento você consegue avaliar melhor a recuperação dos doentes?
Cláudio Guimarães dos Santos — Sem dúvida. Há vários casos a respeito do assunto documentados no Brasil e no exterior. Hoje, a questão da eficiência da reabilitação neuropsicológica não suscita discussões. O que ainda se discute é porque ela faz efeito e quais seriam os procedimentos mais eficientes. Na minha visão particular, o grau de eficiência depende de quanto maior for a aproximação do tratamento com a especificidade do caso de cada paciente.
Drauzio –– O que você quer dizer exatamente com isso?
Cláudio Guimarães dos Santos — Quanto mais conhecermos o paciente, quanto melhor tivermos identificado o conjunto de características pré-mórbidas (anteriores à doença) e mórbidas (depois do aparecimento da doença), mais recursos existirão para o diagnóstico e o tratamento.
Nas atividades didáticas que exerço, sempre me perguntam porque não publico os testes que elaboramos. Eu lhes respondo que, nessa área, não adianta vender o peixe porque ele estraga logo. É preciso ensinar a pescar, pois pacientes de comunidades culturais e socioeconômicas diversas exigem instrumentos de avaliação e terapêuticos específicos. Depois, temos de lembrar que em neuropsiquiatria, diferentemente de outras áreas, estamos lidando com a cognição e o funcionamento mental que, por sua vez, englobam um conjunto de estruturas. É ele que nos permite escrever sinfonias, romances, fazer filmes, resolver cálculos matemáticos complicados, exterminar povos, assassinar pessoas, destruir cidades, etc.
Infelizmente as escolas de medicina, psicologia e fonoaudiologia ainda não preparam profissionais com o estofo filosófico necessário nem com conhecimentos mais amplos sobre uma série de assuntos que fazem falta quando vamos tratar de um paciente com disfunções neuropsicológicas.