A endoscopia digestiva permite a identificação de diversas doenças não apenas no estômago, mas também nos intestinos e no pâncreas.
Como se sabe, doenças do estômago são comuns entre os japoneses. Câncer de estômago, no Japão, é problema de saúde pública. São tantos os casos, que os médicos estão sempre atentos a qualquer possível manifestação da doença. Em 1962, um grupo de médicos desse país inventou a gastrocâmara que, engolida pelo paciente, permitia fotografar o interior do estômago. Apesar de rudimentar, essa técnica representou um avanço importante para o diagnóstico das doenças do estômago. Nos anos que se seguiram, a evolução dos aparelhos de endoscopia e o treinamento dos médicos que os utilizam, foram fantásticos. Atualmente, já se fala em endoscopia virtual e aparelhos, segundo esse conceito, estão sendo desenvolvidos nos Estados Unidos.
HISTÓRICO DA ENDOSCOPIA
Drauzio – Você chegou a conhecer essas gastrocâmaras antigas?
Kiyoshi Hashiba – Tive uma gastrocâmara no final de 1967. Durou pouco, porque logo em seguida apareceu outra à qual foi acoplada fibra de vidro e passamos a olhar diretamente os órgãos do aparelho digestivo. Antes, fotografava-se com filme de 5 mm a 7 mm e era difícil encontrar laboratórios, em São Paulo, capazes de revelá-los. De qualquer forma, esses aparelhos permitiam examinar melhor o estômago, já que os japoneses preocupavam-se especialmente com esse órgão.
Drauzio –– Você aprendeu a mexer com essas gastrocâmaras no Japão?
Kiyoshi Hashiba – Não, aprendi a mexer com as gastrocâmaras no Brasil, com um médico japonês que veio demonstrar os equipamentos. É curioso que, apesar do interesse dos japoneses, a endoscopia digestiva propriamente dita começou em 1870, com um médico alemão chamado Kusmaul que pagou um engolidor de espadas de circo para ajudá-lo nas experiências. Servindo-se de uma lâmpada de fogo, conseguiu examinar o esôfago desse homem. Era uma lâmpada com terebentina e ele conseguia olhar por meio de espelhos. A endoscopia permaneceu assim durante muito tempo. Não houve progresso técnico. Até aproximadamente 1940, os aparelhos eram rígidos e deixavam ver apenas o estômago por dentro. Mesmo assim eram muito úteis para retirar corpos estranhos e foram bastante utilizados no Brasil.
Mais tarde, os alemães lançaram o aparelho semiflexível, que fletia um pouquinho só, mas esse pouquinho fazia enorme diferença quando se queria examinar o estômago. Em 1966, um novo aparelho semiflexível foi lançado pelos alemães. Seu sucesso teria sido enorme, se os japoneses não tivessem criado uma gastrocâmara com maior poder de alcance, uma vez que com o semiflexível não se enxergavam todas as paredes do estômago. Embora não fosse suficientemente maleável, o semiflexível oferecia uma imagem nítida. Trabalhei com ele nessa época. No entanto, grande número das lesões de estômago estava numa região que esse aparelho não alcançava. Felizmente, logo se tornou possível examinar o paciente olhando pelo monitor e, hoje, já se fala em endoscopia virtual.
Drauzio – O que seria a endoscopia virtual?
Kiyoshi Hashiba – Teoricamente, a endoscopia virtual dispensa a introdução de qualquer objeto no paciente. Os aparelhos estão sendo desenvolvidos na Califórnia, Estados Unidos, e aplicam técnica semelhante à da tomografia em espiral, um exame que usa raios X e corta o indivíduo em segmentos. Depois, por meio do computador, o órgão é reconstruído e um outro programa permite passear pela imagem recomposta. A ideia é revolucionária, mas demanda tempo de pesquisa e investigação, pois é preciso superar certas dificuldades, uma vez que ainda não se consegue, por esse método, distinguir a lesão de restos alimentares. A endoscopia virtual, no entanto, traz consigo algumas desvantagens, como impossibilitar a coleta de material que é procedimento importantíssimo nos exames endoscópicos.
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CUSTO DOS APARELHOS
Drauzio — Esses aparelhos de endoscopia móvel, que são realmente muito flexíveis, continuam caros ou o preço vem caindo?
Kiyoshi Hashiba — A faixa de preço de um aparelho desses, no Brasil, varia de 15 mil a 20 mil dólares. O preço continua alto porque, embora tenham evoluído pouco no campo das possibilidades técnicas, esses aparelhos evoluíram muito eletronicamente. Durante anos, fiz endoscopia olhando no próprio aparelho, e hoje faço o exame olhando num monitor. Para o paciente, isso não faz a menor diferença, mas para o médico representa um auxílio inestimável.
Drauzio – Qual o tempo de vida útil desses aparelhos?
Kiyoshi Hashiba – Com um aparelho, se for bem cuidado, pode-se fazer seguramente mais de dez mil exames. Depois disso, passando por uma revisão geral, ele estará pronto para realizar outros dez mil. Logo, seu custo benefício é bastante satisfatório.
ENDOSCOPIA NO SERVIÇO PÚBLICO
Drauzio – Sei como vocês trabalham atendendo muita gente. A pessoa entra na sala de exames, deita na maca, toma uma injeção na veia, o médico introduz o tubo, examina e, pronto, levada para a sala ao lado, ela espera o efeito da anestesia passar. Acordou, pode ir embora. Atendimento semelhante não poderia ser montado pelo Serviço Público para atender a população em geral?
Kiyoshi Hashiba – Existem vários problemas dentro do Serviço Público. Talvez o mais importante diga respeito à manutenção do equipamento. No Serviço Público, os aparelhos duram menos, porque são várias as pessoas que lidam com eles, muitas ainda na fase de aprendizagem profissional e ninguém se sente responsável por seu bom funcionamento. Além disso, parece não haver interesse em comprometer verba pública com contratos para mantê-los em ordem. Há, ainda, o problema dos acessórios que se desenvolveram muito. Logicamente, isso tem um custo com o qual o Estado não quer arcar. Muitos colegas levam consigo o próprio equipamento para realizar os exames nos estabelecimentos públicos em que trabalham.
DIAGNÓSTICO
Drauzio – Numa endoscopia, quando se introduz o aparelho no esôfago de um paciente, o que se procura ver?
Kiyoshi Hashiba – Existe um padrão de normalidade que admite pequenas variações. A primeira coisa que se faz é examinar o órgão como um todo, verificar se está bem posicionado, se não apresenta desvios nem dilatações e simultaneamente ver se há alguma alteração em seu revestimento. O câncer, por exemplo, começa por aí. Ele quase nunca se inicia no fundo da parede. Começa na superfície, por isso é uma lesão que pode ser facilmente encontrada. O movimento de entrada do aparelho só é interrompido se existir uma lesão grande que exija investigação minuciosa. Caso contrário, vamos diretamente para o ponto mais distal que se pode alcançar no aparelho digestivo alto: o duodeno.
Na volta, todo o percurso é examinado com mais detalhes. Se for necessário, colhe-se material ou faz-se uma coloração especial para evidenciar possíveis lesões. A endoscopia, como um todo, evoluiu muito nas últimas décadas. Pode-se introduzir o aparelho por todo o intestino grosso e entrar um pouco no delgado. Pode-se, também, examinar a via biliar, uma parte dos canais que ladeiam a vesícula, a própria vesícula e o pâncreas. Para realizar esses exames, no entanto, há meios menos invasivos do que a endoscopia que também oferecem avaliações esclarecedoras.
Drauzio – Atualmente, existe a possibilidade de acoplar um ultrassom ao aparelho endoscópico para examinar bem de perto o que se deseja. Quais as vantagens desse procedimento?
Kiyoshi Hashiba – Como já disse, os aparelhos endoscópicos têm-se modificado pouco ultimamente, mas a ideia de acoplar algo ao endoscópio para facilitar o diagnóstico criou força. O ultrassom já é realidade e está sendo construído um protótipo para acoplar neles um aparelho de ressonância magnética. Nos Estados Unidos e no Japão, como terapêutica, aplica-se laser e Argon Beam (feixe de argônio), um raio mais barato, para destruir as lesões localizadas na parede interna das vísceras.
GRUPOS DE RISCO
Drauzio — Em que casos deve ser recomendada a endoscopia?
Kiyoshi Hashiba – Existem algumas pessoas que devem fazer endoscopia. É óbvio que, se a indicação partiu de um médico, não se discute se o exame precisa ser feito, pois a endoscopia é provavelmente o melhor meio para atingir certos segmentos do aparelho digestivo, recolher material, coisa que outros exames não fazem, e diagnosticar lesões, como as do câncer. Fora isso, quem pertence aos grupos de risco deve fazer exames periodicamente. Eu, por exemplo, faço um exame por ano, porque sou paciente de risco. Descendo de japoneses que, ao lado dos chilenos, constituem as duas comunidades mundiais com incidência mais alta de câncer de estômago e, para piorar, meu pai teve câncer no estômago. Pacientes que sofreram qualquer espécie de cirurgia no estômago e as pessoas com casos de câncer gástrico na família constituem os outros grupos de risco que demandam acompanhamento contínuo.
Drauzio – Você poderia enfatizar essa informação, porque infelizmente já encontrei muitos casos de gastrectomizados, operados há 20 ou 30 anos, que nunca foram informados da necessidade de acompanhamento e que desenvolveram um câncer no local da sutura gástrica, o que poderia ter sido evitado com a devida prevenção.
Kiyoshi Hashiba — De fato, quem foi operado do estômago precisa ser acompanhado sistematicamente. A recomendação é que se comece a fazer o exame cinco anos depois da cirurgia. Antes disso não se colhe material para biópsia. Depois de cinco anos, porém, independentemente de haver ou não lesões evidentes, a coleta de material é obrigatória, no máximo a cada dois anos, pelo resto da vida. Por quê? Porque detectar um câncer precoce, na fase em que não invadiu outros órgãos, aumenta muito a probabilidade de cura.
Drauzio – Nesses casos de câncer precoce, as lesões podem ser retiradas pela própria endoscopia?
Kiyoshi Hashiba – Hoje, para pessoas que representem grande risco clínico, recomenda-se retirar a lesão por endoscopia. No Brasil, onde o número de diagnósticos precoces de câncer é pequeno, não temos experiência no assunto. No Japão, porém, onde a investigação é feita em massa e muitos casos são descobertos no estágio inicial, os médicos têm enorme experiência em retirar a lesão sem cirurgia.
Drauzio – Todos os japoneses, homens e mulheres, devem fazer o exame?
Kiyoshi Hashiba — Todo japonês não, mas os que têm história de câncer na família, como eu, por exemplo, que faço parte do grupo de risco e preciso fazer uma endoscopia por ano.
Drauzio — Quem mais deve fazer endoscopia?
Kiyoshi Hashiba — Além dos já citados, precisam fazer o exame periodicamente todos os membros de uma família com histórico de pólipos (adenomas) no intestino grosso, uma vez que eles podem dar origem a tumores. Está provado que a incidência dessa patologia é maior em pessoas da mesma família.
Drauzio — Muitos autores recomendam que, após os 55 anos, todos deveriam fazer a primeira colonoscopia (endoscopia do intestino grosso) para retirar os pólipos e evitar que se degenerem em câncer. Como prevenção, a colonoscopia deveria ser repetida a cada cinco anos na população como um todo. Você concorda com isso?
Kiyoshi Hashiba – Tenho a impressão de que a colonoscopia é uma forma eficaz de prevenção. Eu mesmo procuro submeter-me à endoscopia alta e à de cólon a um só tempo. Não é a maneira mais indicada, pois para fazer a colonoscopia é necessário beber muito líquido. No entanto, em geral os endoscopistas aceitam esse método, na medida em que expõem o paciente a um único exame. De fato, a colonoscopia é importante, pois permite que os pólipos sejam detectados e retirados numa fase bastante inicial, prevenindo possíveis complicações posteriores.
Drauzio – Há alguma coisa que gostaria de destacar a respeito da endoscopia?
Kiyoshi Hashiba – A endoscopia diagnóstica tornou-se um exame corriqueiro. Os médicos preferem pedir endoscopia a raios X de estômago, exame que poderia ser indicado em diversos casos. Todavia, o que mais chama a atenção, atualmente, são os aspectos terapêuticos dos tratamentos por endoscopia. Por exemplo, um paciente com hemorragia estomacal, vomitando, pode ser tratado por via endoscópica, evitando os inconvenientes de uma cirurgia.
Drauzio – Diante da indicação de uma endoscopia, às vezes, as pessoas se incomodam com a ideia de que o aparelho possa não estar em condições higiênicas adequadas. Como explicar-lhes que isso não acontece?
Kiyoshi Hashiba – Algumas pessoas têm a impressão de que a endoscopia é um exame doloroso. Estão enganadas. O paciente está sob sedação e nada sente antes, durante nem depois do exame. Quanto ao risco de contaminação, a probabilidade é nenhuma. Antes de cada exame, os aparelhos passam por preparo minucioso que representa um custo financeiro, mas garante as condições de higiene e desinfecção. Por isso, é preciso escolher com cuidado onde se faz a endoscopia.