Doenças tropicais | Entrevista

Dr. Stefan Cunha Ujvari é médico infectologista e autor do livro “A história e suas epidemias” (Editora Senac). postou em Entrevistas

Imagem macro de um mosquito Aedes aegypti, que transmite a forma urbana da febre amarela, picando uma pessoa.

Compartilhar

Publicado em: 11 de janeiro de 2012

Revisado em: 11 de agosto de 2020

Não há vacina para a maioria das doenças tropicais, mas há tratamento e medidas preventivas que devem ser adotadas para evitá-las.

 

Tradicionalmente, as doenças tropicais eram consideradas uma espécie de tributo obrigatório que os habitantes dos trópicos pagavam por viver numa região de clima privilegiado. Essas doenças adquiriam características epidêmicas e acometiam milhões de pessoas que viviam em determinadas áreas.

Malária, doença de Chagas, febre amarela, leishmaniose, dengue estão entre as enfermidades que costumam ser rotuladas como doenças tropicais. Na maior parte das vezes, o micro-organismo é transmitido por insetos que encontram nos trópicos seu habitat ideal.

Exceção feita à febre amarela, não existem vacinas para essas doenças, mas há tratamento que será tão mais eficaz quanto mais precocemente for instituído.

 

DOENÇAS TROPICAIS: PROBLEMA DE SAÚDE PÚBLICA

 

Drauzio – O que são doenças tropicais? Essa designação ainda é empregada atualmente?

Stefan Cunha Ujvari – Na época em que os ingleses estiveram empenhados em colonizar regiões nos trópicos, principalmente na África, Sudeste Asiático e Índia, entraram em contato com uma série de doenças desconhecidas no continente europeu e que receberam o nome de doenças tropicais ou doenças dos trópicos. Essa denominação ainda é pertinente porque, nos trópicos, fatores climáticos e de umidade favorecem a proliferação de insetos, os principais transmissores dessas doenças.

 

Veja também: Mosquitos infectados

 

Atualmente, elas estão bastante correlacionadas com fatores socioeconômicos, pois se manifestam mais nos países pobres que, em sua maioria, se localizam nas regiões tropicais e não têm condições de implantar medidas efetivas de controle, prevenção e tratamento. Por isso, as doenças tropicais continuam sendo um problema grave de saúde pública, especialmente se considerarmos o alto índice de mortalidade associado a elas.

 

MALÁRIA

 

Drauzio – Particularmente no Brasil, qual é a situação da malária atualmente?

Stefan Cunha Ujvari – A situação da malária é estável, mas essa estabilidade não é animadora, porque na década de 1990, em média, foram notificados 500 mil novos casos por ano. Acredito, porém, que esse número seja muito maior, se computarmos os casos que não são notificados, quando o tratamento não é administrado em serviços públicos.

A malária estava relativamente bem controlada nas décadas de 1950/1960, mas reapareceu nas décadas de 1970/1980 com a ocupação populacional desordenada que ocorreu na periferia da Amazônia Legal. Estradas foram abertas, sistemas de irrigação instalados e houve a corrida do ouro em Rondônia, no noroeste amazônico. Tudo isso fez com que o número de casos aumentasse consideravelmente e atingisse o pico de 500 mil novos casos notificados por ano.

Não se consegue controlar a malária no habitat do mosquito transmissor da doença, que vive na floresta tropical. O que se pode fazer é implementar medidas de controle especialmente na contorno da floresta amazônica. Certos cuidados como drenar áreas alagadas para impedir a formação de criadores de mosquitos, colocar telas nas janelas para que eles não entrem nas casas, estão voltados para combater o mosquito nas regiões peridomiciliares.

Além disso, pessoas que viajam para esses lugares e adentram a floresta – hoje o ecoturismo tornou-se uma opção importante de lazer – deveriam entrar em contato com um órgão especializado em doenças tropicais para obter informações a respeito do que fazer antes de viajar. Em São Paulo, no Hospital das Clínicas, existe o Ambulatório do Viajante que, de acordo com a região a ser visitada, orienta sobre a necessidade de tomar vacina contra a febre amarela ou remédios profiláticos para a malária, por exemplo.

É interessante perceber que a história da humanidade caminha junto com a dos micro-organismos. Estudos a respeito do material genético do vírus da dengue demonstraram que a população viral aumentou muito na natureza nos últimos 200 anos, coincidentemente com a pós-revolução industrial e a urbanização do homem.

Drauzio – Não existe vacina contra a malária, mas há remédios que podem ser tomados como profilaxia. Em que casos eles devem ser utilizados por uma pessoa que vá viajar para o Amazonas?

Stefan Cunha Ujvari – Há muito se tenta desenvolver uma vacina contra a malária, mas sem sucesso, e os remédios que existem precisam ser usados com muito critério porque induzem tolerância. Da mesma forma que os insetos, principalmente os mosquitos, desenvolveram resistência aos inseticidas criados na primeira metade do século 20 e as bactérias, resistência a certos medicamentos, o agente da malária também se torna resistente. Por isso, o remédio não é vendido em farmácias. Só os órgãos do governo podem fornecê-lo depois de analisar as condições da região à qual a pessoa se dirige. Se ela vai fazer turismo numa embarcação, saindo de Manaus, navegando pelos rios e volta, não há tanto risco e não se recomenda o uso do medicamento. Para viajar tranquila, porém, deve entrar em contato com os órgãos capazes de orientá-la. Repito, em São Paulo, o centro de referência é o Ambulatório dos Viajantes no Hospital das Clínicas. As orientações podem ser obtidas pessoalmente ou por telefone e levam em conta o itinerário programado. Se for necessário tomar o remédio, basta um comprimido uma vez por semana para prevenir a doença.

 

Drauzio – Quais são os principais sintomas da malária?

Stefan Cunha Ujvari – A febre provocada pela malária é uma das mais altas que existem. Quando a pessoa é picada pelo mosquito, o agente entra na corrente sanguínea e passa por um período relativamente curto de incubação em que amadurece no fígado. Depois, entra nas hemácias, nos glóbulos vermelhos, onde se multiplica até que elas se rompem. Nesse momento, ocorre liberação de grande número de parasitas na corrente sanguínea, o que provoca febre de 40º C ou mais, de início abrupto, acompanhada por tremor e dores musculares intensas.

Interessante notar que algumas enfermidades das hemácias, alvo principal do agente da malária, o Plasmodium, funcionam como proteção contra a malária. A anemia falciforme, por exemplo, muito comum na África onde surgiu a doença, é uma delas.  Por quê? Porque quando o parasita penetra na hemácia já doente, ela se rompe. Essa reação impede que ele prolifere. Como consequência, na África, o número de casos de anemia falciforme cresceu muito, pois houve uma espécie de seleção natural.

Voltando aos sintomas da malária, as pessoas que moram na periferia da floresta amazônica, os garimpeiros de Rondônia, por exemplo, quando procuram um órgão especializado para tratamento, já sabem que estão com a doença, porque reconhecem os sintomas dada a alta frequência em que ela ocorre naquelas regiões.

 

Drauzio – Entre as febres das doenças tropicais, a febre da malária tem um ritmo bastante característico. Você poderia descrevê-lo?

Stefan Cunha Ujvari – A febre pode ocorrer a cada três dias (febre terçã) ou a cada quatro dias (febre quartã), porque o ritmo depende do ciclo dos agentes, o Plasmodium vivax e o Plasmodium falciparum. O que amadurece e prolifera mais rápido provoca o rompimento das hemácias a cada três dias, e o outro, de ciclo mais lento, a cada quatro dias.

A malária é uma doença grave com índice de mortalidade importante se o tratamento não for adequado e precoce, especialmente se o agente for o Plasmodium falciparum. É uma doença endêmica no Brasil, já que 500 mil novos casos por ano não representam um número desprezível.

 

DENGUE E FEBRE AMARELA

 

Drauzio – Vamos falar da dengue, uma das doenças tropicais que inferniza a vida do homem na cidade grande.

Stefan Cunha Ujvari – É interessante perceber que a história da humanidade caminha junto com a dos micro-organismos. Estudos a respeito do material genético do vírus da dengue demonstraram que a população viral aumentou muito na natureza nos últimos 200 anos, coincidentemente com a pós-revolução industrial e a urbanização do homem. O lixo orgânico que passou a ser acumulado em volta das casas nas cidades funcionou como recipiente para a água da chuva e favoreceu a proliferação do mosquito transmissor do vírus, o Aedes aegypti.

 No entanto, na década de 1960, ele havia sido erradicado na América do Sul. No Brasil, foi extinto graças às medidas adotadas por Osvaldo Cruz no começo do século 20 para acabar com a febre amarela, que também é transmitida por esse mosquito. Sem ele por perto, o vírus da dengue e o da febre amarela urbana desapareceram.

Acontece que, na década de 1970, o controle foi relaxado e o Aedes aegypti  entrou novamente no País e de casa em casa, de cidade em cidade, se espalhou pelo Brasil inteiro. Seu retorno foi facilitado pelo acúmulo de lixo, desta vez do lixo industrial, que coletava água da chuva. O habitat estava preparado e o vírus, que veio nas embarcações procedentes do Sudeste Asiático e da Oceania, voltou a ameaçar a população urbana.

Casos de dengue reapareceram no início da década de 1990 e gradativamente foram aumentando até que, em 2002, ano da pior epidemia, 700 mil novos casos foram registrados.

No momento, estamos cercados pela malária que se dissemina na periferia da floresta amazônica e pela dengue, nas regiões urbanas, especialmente nas cidades próximas ao litoral.

A doença de Chagas é silenciosa. Na maioria das vezes, os sintomas iniciais, febre e mal-estar, passam despercebidos. O doente fica com o parasita no sangue durante muito tempo e só se dá conta do problema quando as lesões aparecem, especialmente a insuficiência cardíaca e o comprometimento do trato digestivo.

Drauzio – O problema é que o Aedes aegypti, além de transmissor da dengue, transmite também a febre amarela.

Stefan Cunha Ujvari – Esse mosquito também pode transmitir o vírus da febre amarela, doença que se manifesta principalmente na periferia da floresta amazônica. Nos últimos anos, porém, focos dessa doença surgiram em outros locais e o interesse maior das pessoas pelo ecoturismo pode explicar o fato. É provável que picadas pelo mosquito na floresta, tenham voltado doentes para as cidades e infectaram os Aedes aegypti. Em 1999, houve uma epidemia pequena de febre amarela urbana na Chapada dos Veadeiros e, em 2001, uma no noroeste de Minas Gerais. Isso sugere que a febre amarela urbana, doença extinta no Brasil desde a década de 1940, pode estar voltando.

 

SINTOMAS DA DENGUE E DA FEBRE AMARELA

 

Drauzio – Qual a diferença entre os sintomas da dengue e da febre amarela?

Stefan Cunha Ujvari – Os sintomas iniciais são muito parecidos. A dengue provoca febre elevada e dor intensa no corpo, porque o vírus age sobre a musculatura, especialmente sobre a musculatura responsável pelo movimento dos olhos. Por isso, a dor atrás dos olhos é muito forte. Esses sintomas, porém, são inespecíficos. O sinal de alerta para o diagnóstico é dado pela inexistência de um de foco infeccioso que justifique a febre e pelo fato de o paciente vir de uma área onde existe a doença.

Apesar dos sintomas da febre amarela serem praticamente os mesmos, numa minoria de casos, o paciente caminha para uma piora importante. O vírus acomete o fígado que inflama e o indivíduo adquire coloração amarelada, principalmente no branco dos olhos.  É a icterícia e daí vem o nome da doença.

 

Drauzio – É pequena a porcentagem dos que desenvolvem icterícia?

Stefan Cunha Ujvari – É pequena. A grande maioria dos casos passa como um quadro viral que acaba evoluindo bem. A minoria que desenvolve icterícia apresenta distúrbios de coagulação e sangramentos. A febre amarela é uma doença viral que pode não admite descuidos, porque pode apresentar complicações bastante graves.

 

Drauzio – Não existem remédios específicos para o vírus da dengue e da febre amarela?

Stefan Cunha Ujvari – Não há remédios. O controle dessas doenças é feito nas áreas urbanas. De cinco anos para cá, as medidas estão sendo largamente divulgadas. Por exemplo, praticamente todos sabem do risco que correm, quando deixam recipientes que acumulam a água da chuva nos arredores das casas.

Para a febre amarela, entretanto, existe vacina. Ela é eficaz desde que seja tomada com antecedência, isto é, 30 dias antes da viagem. Muita gente entra em contato com o Ambulatório do Viajante na véspera da partida. Aí, já é tarde para a prevenção da doença.

 

DOENÇA DE CHAGAS

 

Drauzio – Quais as principais características da doença de Chagas?

Stefan Cunha Ujvari – O barbeiro, um besouro pequenininho, é o agente transmissor da doença de Chagas. O protozoário responsável pela doença não é transmitido diretamente pela picada, mas pelas fezes do inseto que entram no ferimento quando a pessoa coça o local picado.

A doença de Chagas é silenciosa. Na maioria das vezes, os sintomas iniciais, febre e mal-estar, passam despercebidos. O doente fica com o parasita no sangue durante muito tempo e só se dá conta do problema quando as lesões aparecem, especialmente a insuficiência cardíaca e o comprometimento do trato digestivo. Neste caso, a musculatura do esôfago que deveria permitir a passagem dos alimentos para o estômago, abre-se com mais dificuldade e eles se acumulam no esôfago que se alarga. É o megaesôfago característico da doença. O mesmo pode acontecer com o cólon. Por causa da dificuldade de relaxamento do esfíncter, os resíduos ficam retidos e forma-se um megacólon, acompanhado de obstipação intestinal importante.

No Brasil, a incidência da doença de Chagas é grande na região centro-oeste e em parte da região nordeste. O tipo de moradia que predomina nesses lugares – casas de pau a pique, cheias de frestas onde o barbeiro se aloja – constitui seu habitat ideal. As campanhas de combate ao inseto pressupõem a aplicação sistemática de inseticidas e orientar os moradores na conservação dos domicílios, especialmente quanto aos cuidados em tapar as rachaduras que se formam as paredes.

Infelizmente, há bem pouco tempo se descobriu que na floresta amazônica existe um inseto parecido com o barbeiro que também transmite a doença de Chagas. Esse agente se aloja nas palmeiras, nicho ecológico de extrema riqueza. O desmatamento provocado pela colonização de terras na periferia da mata favoreceu o aparecimento da doença nessa região. O barbeiro amazônico, inseto de hábitos noturnos, sai das palmeiras e, atraído pela luz doméstica, entra nas casas, pica as pessoas, transmite o vírus e retorna para as árvores.

Nas formas mais graves [de leishamaniose], a pessoa tem febre, mal-estar, emagrece e o baço aumenta de tamanho. Não se trata de uma doença que evolua rapidamente, é um pouco mais crônica.

Drauzio – Qual é a prevalência da doença de Chagas no Brasil?

Stefan Cunha Ujvari – A incidência da doença de Chagas, no Brasil, esteve alta na década de 1970, em torno de 100 mil novos casos por ano. Hoje em dia, após terem sido implantadas medidas de controle, a incidência é bem pequena. A maioria das pessoas que procuram assistência vem do interior, onde não existe rede confiável de notificação. Além disso, a doença é crônica e durante aproximadamente dez anos os sintomas não se manifestam. Quando o caso complica, reflete uma situação que ocorreu muitos anos antes.

 

Drauzio – A profilaxia da doença é complicada porque implica o controle permanente dos fatores de risco.

Stefan Cunha Ujvari – Além do combate contínuo aos barbeiros que transmitem a doença de Chagas, é preciso que as casas não tenham frestas onde eles possam alojar-se, o que não é fácil se considerarmos o nível socioeconômico dos habitantes dessas regiões.

 

LEISHMANIOSE

 

Drauzio – Vamos falar um pouco sobre a leishmaniose. Quais as características gerais da doença?

Stefan Cunha Ujvari – O agente transmissor do protozoário que provoca a leishmaniose é o flebótomo chamado Lutzomyia spp que se distribui pelas regiões centro-oeste e nordeste e alcança o sul, principalmente o Paraná.

Há duas formas de leishmaniose. A tegumentar, causada pela Leishmania braziliensis, L. amazonensis e L. guyanensis (as duas últimas restritas à região amazônica) acomete só a pele. A pessoa tem uma ferida que não cicatriza e descobre que está com a doença quando vai ao médico e faz uma biópsia. A outra é a leishmaniose visceral, causada pela Leishmania chagasi, em que há comprometimento do fígado e do baço.

Em 1997, houve um surto dessa doença em São Luís do Maranhão, Teresina e Fortaleza que coincidiu com o fenômeno El Niño e uma seca terrível que obrigou a população do interior a migrar para a periferia dessas cidades, levando consigo os cachorros, animais que funcionam como reservatório do parasita. O mosquito pica o cachorro e infecta o homem.

 

Drauzio – Existe tratamento para a leishmaniose?

Stefan Cunha Ujvari – Existe um remédio específico para a leishmaniose, sob a forma de injeção que o paciente deve tomar durante 21 dias. É importante destacar que, nas regiões de risco, lesão na pele que não cicatriza merece atenção especial, porque a forma mais leve da enfermidade não dá febre, mal-estar, nem o doente fica acamado. Em alguns casos, pode aparecer comprometimento da região do septo nasal. O nariz sangra e descasca; às vezes, há colabamento e o odor é fétido. O otorrinolaringologista é o médico indicado para diagnosticar o problema e conduzir o tratamento.

Nas formas mais graves, a pessoa tem febre, mal-estar, emagrece e o baço aumenta de tamanho. Não se trata de uma doença que evolua rapidamente, é um pouco mais crônica. Por isso, se a febre custa a passar, as pessoas precisam investigar a causa do problema, porque uma das características da leishmaniose é provocar febre de duração bastante prolongada.

Veja mais