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Cicatrizes | Entrevista

Publicado em 28/09/2012
Revisado em 11/08/2020

A cicatrização é um processo natural do corpo humano, mas pode complicar a vida do paciente ao deixar vestígios que nem sempre são estéticos.

 

A cicatrização é um processo fundamental para manter a integridade do corpo humano. Toda vez que ocorre um corte na pele, uma escoriação, ou uma área foi queimada, uma série de processos orgânicos se instalam no local para tentar recuperar o tecido que foi lesado.

Algumas cicatrizes formadas por esses traumas quase não deixam vestígios. Outras, mais exuberantes e de coloração avermelhada, são chamadas de cicatrizes hipertróficas. Há casos específicos, como o das cicatrizes provocadas por queimaduras que, às vezes, são muito extensas e causam problemas sérios para a vida do paciente.

Atualmente, existem tratamentos clínicos e cirúrgicos que apresentam bons resultados estéticos e no controle dos sintomas dos ferimentos.

 

CICATRIZES HIPERTRÓFICAS

 

Drauzio – Há cicatrizes que praticamente desaparecem, enquanto outras ficam hipertróficas. Por que essa diferença?

Maria Thereza Piccolo – São vários os fatores a considerar: a localização da cicatriz, o tipo de trauma que produziu a ruptura da pele e a evolução do processo de cicatrização, que passará sempre pelas mesmas fases, qualquer que tenha sido a causa determinante da lesão.

O prolongamento de uma dessas fases, em geral da fase inflamatória proliferativa, pode deixar uma sequela no final, embora a tendência seja o equilíbrio que o indivíduo exerce sobre esse processo para que tudo ocorra no devido tempo. Por isso, abreviá-lo aumenta a chance de obter uma cicatriz mais bonita e menos visível.

 

Drauzio – Existe algum tipo de pele que favorece o aparecimento de cicatrizes maiores?

Maria Thereza Piccolo – Pessoas negras têm tendência a cicatrizar pior. Entretanto não é só o tipo de pele que pesa. A idade, o tipo de trauma e a fase hormonal também influem. Por exemplo, a incidência de cicatrizes importantes é evidente na puberdade ou na gravidez. A queimadura numa mulher grávida produz cicatriz pior do que numa não grávida.

 

Drauzio – No caso de cicatrizes por incisão cirúrgica, como se pode diferenciar uma cicatriz hipertrófica de um queloide?

Maria Thereza Piccolo – Lido com cicatrizes há mais de 20 anos e acredito que sempre existiu a dificuldade de distinguir histologicamente uma cicatriz hipertrófica de um queloide. Na verdade, o queloide é uma cicatriz hipertrófica que não respondeu ao tratamento ao longo de um ano.

 

TRATAMENTO DAS CICATRIZES

 

Drauzio – Que tratamento é esse?

Maria Thereza Piccolo – Há tratamentos clínicos não invasivos baseados na aplicação de malhas não compressivas, gel de silicone e massagens, às vezes associada a cremes com corticoides ou hidratantes, e há os mais invasivos com injeções de triancinolona e corticoides tópicos. Em se tratando de cicatrizes pequenas, como as da acne, por exemplo, pode estar indicada a crioterapia. Como se vê, dependendo da cicatriz e da fase evolutiva em que se encontra, o tratamento clínico pode variar muito.

Nos casos de cicatrizes hipertróficas, rosadas, que coçam e dão fisgadas, o tratamento tem a finalidade de controlar os sintomas. Existem diferenças histológicas entre uma cicatriz que já está madura e aquela em fase inicial de evolução, que serão importantes na escolha do tratamento.

 

Drauzio – Quando deve começar o tratamento depois de uma cirurgia?

Maria Thereza Piccolo – Assim que o cirurgião retirar os pontos, a cicatriz passa a requerer cuidados. É sempre importante fazer uma anamnese para avaliar a qualidade de cicatrização do indivíduo. Se for detectada a tendência para formar más cicatrizes, é fundamental o início precoce do tratamento.

 

Drauzio – Que cuidados uma pessoa deve tomar logo que a cicatriz se estabelece?

Maria Thereza Piccolo – É preciso hidratar a pele com creme por causa do prurido provocado pela cicatrização dos tecidos. Se a coceira for muito intensa, prescrevem-se anti-histamínicos noturnos por via oral, porque durante o dia a pessoa consegue se policiar e não se coça, mas à noite a coisa complica. Se os sintomas forem intensos, acrescenta-se um corticoide de baixa potência por 10 ou 15 dias no máximo. A superfície recém-cicatrizada não tolera arranhaduras que podem inclusive romper os pontos da sutura.

A massagem feita durante a hidratação favorece a ruptura das traves cicatriciais que poderiam favorecer o surgimento de aderências num plano irregular na superfície da cicatriz.

 

Drauzio – Antigamente se dizia que não valia a pena operar os queloides porque se formariam outros no mesmo local. Hoje, há mais recursos de tratamento para eles?

Maria Thereza Piccolo – Quando se chega à conclusão de que realmente é um queloide, ou seja, uma cicatriz com aspecto tumoral, muito protuberante em relação ao trauma sofrido e, se a pessoa apresenta predisposição relativamente não controlável para formá-los, a conduta é mais conservadora. Primeiro, porque não se devem gerar expectativas falsas no paciente. A experiência mostra que mesmo com infiltração de corticoides e radiações, a cicatriz queloidiana pode voltar de forma mais exuberante ainda.

O queloide verdadeiro, esse que não responde ao tratamento, é um assunto mal resolvido no campo das cicatrizes, o que não acontece com a cicatriz hipertrófica que pode chegar ao ponto de ser completamente retirada, restando apenas o sinal da linha da sutura.

 

PRIMEIROS CUIDADOS COM A QUEIMADURA

 

Drauzio – No caso das queimaduras, pouca coisa em medicina há em que o conhecimento popular indique tantas condutas erradas. Se uma pessoa se queima, logo aparece alguém aconselhando a passar manteiga, pomadas, pasta de dente ou esfregar a lesão nos cabelos. Qual o primeiro cuidado que a pessoa deve tomar numa situação dessas?

Maria Thereza Piccolo – O fundamental é que se resfrie a área queimada e a maneira mais fácil, simples, econômica e eficaz de fazê-lo é abrir uma torneira e colocar a zona afetada pela queimadura embaixo da água corrente. Em 5 ou 10 minutos, a sensação de ardor e queimação vai diminuir. Ao sentir que isso aconteceu, a pessoa deve enxugar o mais delicadamente possível a área e embrulhá-la com um pano para protegê-la. Como a pele foi destruída, é preciso refazer a barreira natural, porque o contato com o ar estimula as terminações nervosas e provoca mais dor. Soprar ou abanar a região comprometida é totalmente contraindicado porque, além de aumentar a dor, pode contaminar a lesão.

Infelizmente, algumas coisas que as pessoas dizem que funcionam nesses casos, funcionam mesmo, mas devem ser evitadas. Passar pasta de dente garante certo alívio porque a pasta é úmida, resfria o local e em contato com o ar forma uma crosta que isola o ferimento. A grande desvantagem está no fato de que a lesão pode aumentar de tamanho quando a pasta tiver de ser retirada.

 

Drauzio – Então, o conselho é pôr água e mais nada.

Maria Thereza Piccolo – Pôr água e embrulhar e região. Outra recomendação importante é manter a calma, porque o estado psicológico pode interferir negativamente nessa situação.

 

Veja também: Prevenção de queimaduras

 

O alívio da dor vai depender muito do agente que causou a queimadura. Se for um agente térmico, o alívio é mais rápido, em 15 ou 20 minutos a dor diminui. Se for químico, levará uns 30 minutos. Já as bases causam lesões mais profundas e, às vezes, é preciso ficar por uma ou duas horas debaixo da água corrente para neutralizar sua ação.

O grande parâmetro é o alívio da dor. Quando ela tiver acalmado, chegou o momento de secar e ocluir a lesão.

 

CUIDADOS COM AS BOLHAS

 

Drauzio – Há quem diga que por a mão na água quando se queima ajuda a formar bolhas. Isso é verdade?

Maria Thereza Piccolo – Não é. A formação de bolhas (Imagem 2) depende da profundidade da lesão, ou seja, em que nível a derme foi atingida. Uma queimadura de espessura parcial, vulgarmente conhecida como queimadura de segundo grau, provoca a formação de bolhas, enquanto as de espessura total (queimaduras de terceiro grau), mais profundas e mais graves, não formam bolhas, porque houve morte dos tecidos superficiais.

 

Drauzio – É importante lembrar que as bolhas nunca devem ser rompidas.

Maria Thereza Piccolo – No ambiente doméstico, as bolhas jamais devem ser rompidas. Embora a literatura registre que a pele sobre a bolha não mais constitui uma barreira e que teoricamente poderia ocorrer contaminação, acredito ser melhor não romper a bolha e usar essa pele como curativo biológico.

Faço parte de um serviço que considera a queimadura um abscesso plano que deve ser limpo num ambiente cirúrgico controlado, com equipamento estéril e a pessoa devidamente anestesiada, se necessário, para suportar a dor.

 

CICATRIZES EM QUEIMADOS

 

Drauzio – Quais os cuidados básicos para impedir que se formem cicatrizes deformantes em pessoas com queimaduras extensas que requerem internação hospitalar? 

Maria Thereza Piccolo – O processo de atendimento tem de ocorrer no menor tempo possível. Quando se avalia o grande queimado, deve-se levar em consideração a síndrome da resposta inflamatória sistêmica. Essa resposta é uma defesa natural do organismo, mas se houver um desgoverno, ou seja, se o estímulo for maior do que o organismo consegue controlar, o que era bom passa a lesar os tecidos que deveriam permanecer íntegros e perde-se o controle da condução do caso.

Por isso, hoje a conduta é retirar a área queimada que seria o foco do estímulo inflamatório e cobrir rapidamente a região. Há uma gama enorme de produtos que se presta para isso. A pele de porco, há muito disponível no mercado, por questões econômicas nem sempre é viável, pois os queimados necessitam de longos tratamentos. Assim, na década de 1980, desenvolvemos em nosso serviço um curativo biológico muito eficaz com pele de rã que não era usada pelo ranário. Hoje, ela é vendida ao Pronto-Socorro para Queimaduras para ser preparada como curativo biológico para cobrir as lesões. Em relação à pele do porco e considerando o benefício que traz, o custo da pele de rã é baixo e justifica plenamente o gasto e o esforço despendidos na sua preparação.

 

CURATIVOS COM PELE DE RÃ

 

Drauzio – Como são preparados esses curativos biológicos com pele da rã? 

Maria Thereza Piccolo – Existe na literatura menção a um peptídeo com características cicatrizantes presentes na pele da rã. Levando em conta essa informação e conversando com o filho do dono de um ranário, soubemos que a pele da rã não era aproveitada e ele concordou em fornecê-la durante três anos para estudos em animais.

Constatada sua eficácia, começamos a usar esse tipo de curativo biológico para cobrir as lesões.

 

Drauzio – Como a pele de rã é preparada?

Maria Thereza Piccolo – Para preparar adequadamente a pele de rã, contamos com a assessoria de um microbiologista. A pele é lavada exaustivamente e realizada uma cultura em cada etapa do processo. Depois é recortada, enrolada e posta numa solução de antibiótico onde é estocada por muito pouco tempo, porque logo é utilizada. Nunca  enfrentamos complicações infecciosas com esse tipo de material.

 

Drauzio – Como funciona a pele de rã nas queimaduras?

Maria Thereza Piccolo – Colocada diretamente sobre a área queimada, funciona como se fosse a própria pele do paciente. Como os queimados são imunodeprimidos, demoram para perceber que aquela pele não é a sua, e a rejeição é mais tardia.

A pele de rã adere completamente e dá ao paciente enorme conforto. Um dos grandes problemas das queimaduras é a intensidade da dor. A pele de rã alivia a dor e ajuda no tratamento fisioterápico e na movimentação. Se porventura aparece debaixo dela algo que exija o uso tópico de um antibiótico mais agressivo, o paciente pede, pelo amor de Deus, que a pele seja colocada novamente.

 

Drauzio – A pele da rã é tão pequenininha. Existe material suficiente para atender todos os casos?

Maria Thereza Piccolo – A rã que dá a pele é relativamente grande. Nós conseguimos lâminas de pele com mais ou menos 15cm/18cm por 8cm/10cm. Um braço usa muita pele, sem dúvida, mas contamos com fornecedores de um produto que não era aproveitado nos ranários.

 

IMPORTÂNCIA DO TRATAMENTO PRECOCE

 

Drauzio – O cuidado com pessoas que sofreram queimaduras mais extensas é bastante prolongado e envolve a minimização das sequelas cicatriciais. Que cuidados são esses a médio e longo prazo?

Maria Thereza Piccolo – Conviver com cicatrizes é difícil e estigmatizante. A sociedade cobra dos portadores um preço muito alto. Por isso, as pessoas precisam ser tratadas logo, porque a formação da cicatriz hipertrófica é previsível antes mesmo da regeneração total do tecidos.

A área queimada não se regenera toda por igual nem ao mesmo tempo. Por isso, o tratamento deve começar pelas partes que já cicatrizaram. Em geral, é um tratamento clínico não invasivo que se baseia no uso da malha compressiva, na massagem e no gel de silicone.

 

Drauzio – Em que consiste cada um desses elementos?

Maria Thereza Piccolo – A área da cicatriz deve ser bem lavada antes de ser hidratada, pois a hidratação é fundamental para aliviar a coceira. Em seguida, coloca-se a malha compressiva que deve ser usada as 24 horas do dia e retirada apenas para limpeza e higienização.

O gel de silicone, que não é melado e parece uma borrachinha, deve ser aplicado sobre a cicatriz no mínimo durante doze horas. Ele é muito eficaz para estabilizá-la. Como em todas as cicatrizes surge inchaço que retém as substâncias liberadas, o gel de silicone ajuda a eliminar água e controlar o inchaço. Associado à malha compressiva, contribui para diminuir significativamente o prurido.

A massagem é feita sempre antes do uso da malha que deve ser retirada para higiene pela manhã e à noite. Geralmente se recomenda que o gel seja usado à noite para evitar que a sudorese provocada pelo calor ou pela atividade do dia a dia provoque um tipo de brotoeja que pode ser confundida com alergia ao silicone.

 

RESPOSTA AO TRATAMENTO

 

Drauzio – Vamos mostrar um exemplo do tratamento clínico que deve ser contínuo e diário. (imagem 3)

Maria Thereza Piccolo – Além disso, deve ser mantido pelo tempo que for necessário. As pessoas sempre ficam ansiosas para saber qual a duração do tratamento. Isso é muito difícil de responder, porque depende de um processo evolutivo. Na maioria dos casos, leva de oito meses a um ano, mas em crianças pode estender-se por até três anos.

Para exemplificar, vamos observar imagens sequenciais de uma cicatriz. Provavelmente, a criança se queimou com líquido aquecido, porque há lesões no couro cabeludo, na face e no ombro. Esse é um acidente típico na infância, e 70% dos casos ocorrem nos quatro primeiros anos de vida das crianças. Por isso, fica aqui um alerta. Crianças não devem entrar na cozinha durante o preparo das refeições. É melhor deixá-la chorando do lado fora do que chorando do lado de dentro por ter sido vítima de um acidente que sem querer provocou.
A imagem 3 mostra o estágio inicial da cicatrização. Está se formando uma cicatriz hipertrófica avermelhada e alta que provoca intenso desconforto. A imagem 4 deixa ver que a parte superior ficou menos evidente com o uso da malha e do silicone, com a massagem e a hidratação. Já na imagem 5, pode-se notar que houve normalização da cor, textura e altura dessa cicatriz. Com isso, a criança passou a levar vida relativamente normal, sem o incômodo de chamar muita atenção por onde andava.

 

Drauzio – É impressionante como são estigmatizadas essas crianças pelos colegas na escola, porque criança quando quer ser cruel, sempre consegue.

Maria Thereza Piccolo– A medicina evolui muito nesse aspecto e chegamos a um ponto que é possível retirar as cicatrizes. Sempre digo a meus pacientes que eles devem ser tratados enquanto se sentirem incomodados. A sociedade realmente estigmatiza essas pessoas que contam hoje com a possibilidade da retirada completa da cicatriz pela expansão dos tecidos.

 

EXPANSÃO DOS TECIDOS

 

Drauzio – Como é feita a expansão de tecidos?

Maria Thereza Piccolo – A expansão de tecidos é feita por meio de uma bolha de silicone que é implantada numa área de pele sã ao lado da cicatriz indesejada. Conectada a uma válvula, a bolha vai sendo expandida, em geral, durante três a seis meses. Quando a capacidade do expansor é atingida, ele é retirado e o retalho de pele que se formou pode ser usado para substituir uma parte da cicatriz. Depois de três meses a operação pode ser repetida e no fim sobra apenas o sinal da linha de sutura. É algo semelhante ao que acontece durante a gravidez. A pele da barriga se expande e depois do parto volta ao normal. No caso das cicatrizes, essa pele é aproveitada para recompor o que foi lesado pela queimadura.

 

PRURIDO E EXPOSIÇÃO SOLAR

 

Drauzio – Como lidar com os sintomas de cicatrizes que coçam?

Maria Thereza Piccolo – A coceira, o fisgado, o desconforto que não deixa esquecer que a cicatriz está presente são sintomas temporários, porque com tratamento ou sem tratamento ela vai se estabilizar e os sintomas desaparecerão. O importante é que a pessoa não coce, não agrida a cicatriz com arranhaduras. Aqui cabe aquela velha frase – “Comer e coçar é só começar”. Passar a mão sobre a área cicatrizada é estímulo suficiente para ampliar a sensação de prurido.

 

Drauzio – Cicatriz pode tomar sol?

Maria Thereza Piccolo – Grandes queimaduras provocam grandes cicatrizes. Essas áreas perdem a capacidade de eliminar o calor através do suor e o controle da temperatura corporal fica comprometido especialmente em ambientes aquecidos. Por isso, o paciente precisa saber que não deve se expor ao sol e deve usar filtro solar para proteger a cicatriz como faria com a pele de qualquer outra parte do corpo.
Pequenas cicatrizes não representam grande problema. Depois de uma cirurgia, por exemplo, a pessoa não deve tomar sol no local enquanto a cor da cicatriz não tiver adquirido a tonalidade normal da pele.

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