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Endocrinologia

Como o uso de “bomba” altera a voz?

Transformação na laringe provocada por anabolizantes são rápidas, difíceis de reverter e sinalizam riscos à saúde

O uso de anabolizantes com fins estéticos é popular entre praticantes de academia, mas seus efeitos vão além do aumento de massa muscular. Esses hormônios sintéticos podem afetar as estruturas da laringe e causar alterações duradouras na voz.

A mudança no tom da voz, muitas vezes percebida nas primeiras semanas, nem sempre regride após a suspensão da substância. A transformação vocal acontece porque os androgênios estimulam as pregas vocais de forma semelhante ao que ocorre na puberdade masculina.

Esse processo leva ao aumento de volume e espessura dos tecidos, alterando a vibração e produzindo sons mais graves. Em ciclos repetidos, o risco de dano permanente cresce. Para especialistas, essa é uma das complicações mais sensíveis e difíceis de reverter. Além dos impactos diretos na voz, os anabolizantes podem causar hipertrofia generalizada na região cervical, com reflexos no sono e na respiração, além de outros problemas.

Veja também: Não existe mágica: uso de esteroides anabolizantes para fins estéticos é proibido e traz riscos

 

Como os hormônios atuam na laringe

A ação dos anabolizantes começa no nível celular. Segundo André Camara de Oliveira, endocrinologista e diretor da Sociedade Brasileira de Endocrinologia e Metabologia – Regional São Paulo (SBEM-SP), os anabolizantes androgênicos, que são hormônios sintéticos de testosterona, se ligam a receptores presentes nas pregas vocais da laringe. Esse estímulo desencadeia o que ele descreve como um processo semelhante ao da puberdade masculina, causando “aumento de volume de estruturas da laringe, espessamento das pregas vocais e mudança da vibração da mucosa, alterando o som emitido.”

O especialista explica que esses hormônios entram no núcleo das células epiteliais das cordas vocais e aumentam a síntese de proteínas estruturais, o que provoca maior espessura, rigidez e massa no tecido vocal. As pregas vocais passam a vibrar mais lentamente, produzindo som mais grave e reduzindo a capacidade de alcançar notas agudas. Além da hipertrofia, ocorre remodelação do colágeno, que diminui a elasticidade e compromete a onda mucosa essencial para a emissão vocal.

Lorena Lima Amato, endocrinologista pela Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP), acrescenta que o uso dessas substâncias também favorece o desenvolvimento de nódulos, pólipos na corda vocal, que vão levar a disfonia crônica, edema crônico da região da laringe e agravar problemas como refluxo gastroesofágico. Segundo a especialista, o refluxo pode irritar ainda mais as pregas vocais, ampliando o risco de rouquidão persistente e inflamação.

 

Mulheres são mais vulneráveis às mudanças estruturais

A exposição aos androgênios ocorre de maneira muito diferente entre homens e mulheres, o que faz com que a resposta vocal também varie bastante entre esses grupos. A dra. Lorena explica que as mulheres não estão habituadas a níveis elevados desses hormônios, já que convivem ao longo da vida com concentrações muito inferiores às masculinas. Por isso, quando entram em contato com doses suprafisiológicas de anabolizantes, a alteração na voz tende a ser rápida e mais evidente.

Ela afirma que, enquanto homens vivem com 500 a 600 ng/dL de testosterona, mulheres não passam de 100 ng/dL. “Quando elas colocam a testosterona em 500, as alterações nas cordas vocais são mais perceptíveis”, diz. O resultado é uma queda abrupta no tom da voz e maior risco de alterações irreversíveis.

O médico reforça que os efeitos são muito mais visíveis e clinicamente relevantes nesse grupo porque a voz feminina parte de uma frequência mais alta e qualquer espessamento provoca queda mais significativa. Em homens, as mudanças tendem a ser mais sutis como rouquidão, perda de alcance e sensação de esforço ao falar.

 

Quanto tempo de uso é suficiente para causar danos

O risco não está restrito a ciclos longos. O dr. André explica que a literatura descreve casos de virilização vocal persistente com uso de poucas semanas em mulheres. Ainda assim, o risco aumenta com doses mais altas, uso contínuo e ciclos repetidos — prática que, segundo ele, é comum entre usuários que buscam ganhos estéticos.

Já a médica considera “uso crônico” qualquer período que ultrapasse de oito a doze semanas, faixa em que já é possível observar aumento de massa muscular e, simultaneamente, as primeiras alterações vocais. Ela alerta que, mesmo após a suspensão, a repetição de ciclos faz com que essa mulher tenha uma chance maior de ir acumulando essas alterações nas cordas vocais.

Os primeiros sintomas costumam ser discretos. “Sensação de peso na garganta, dificuldade para ter notas mais agudas, rouquidão, instabilidade vocal”, descreve a endocrinologista. Segundo os especialistas, se o uso for interrompido rapidamente, há maior chance de evitar danos permanentes.

Veja também: Por que a voz muda ao longo do tempo?

 

A voz volta ao normal?

A reversão é incerta e depende da dose, tempo de uso e intensidade das alterações. Em muitos casos não é totalmente reversível, principalmente em mulheres. A dra. Lorena afirma que, entre todos os efeitos colaterais dos anabolizantes, a voz é um dos que menos respondem à interrupção da substância. “O cabelo volta a crescer, a acne desaparece, mas a voz não melhora”, explica.

O engrossamento vocal apresenta persistência parcial ou total na maioria das vezes, ainda que alguns casos mostram melhora discreta após anos sem uso. A fonoaudiologia pode auxiliar na adaptação vocal, mas não modifica a estrutura já alterada. Cirurgias podem ser consideradas, porém também não devolvem a voz original.

 

Quando procurar ajuda e quais exames fazer

O primeiro passo, e mais importante, é interromper o uso. Os médicos reforçam que a alteração vocal costuma ser o sinal mais visível de um problema maior. “A alteração da voz é o menor dos problemas”, diz a médica, mencionando riscos como infarto, AVC e cardiopatias.

O recomendado é fazer também uma avaliação com otorrinolaringologista e endocrinologista. Exames como videolaringoscopia e estroboscopia ajudam a detectar edema, espessamento, vermelhidão e alteração da onda mucosa antes que a deformidade se torne irreversível.

O dr. André destaca que cada semana extra de exposição aumenta a chance de alterações estruturais permanentes. Ele ressalta que esteroides anabolizantes não devem ser usados para fins estéticos ou de desempenho, pois oferecem riscos à saúde como um todo.

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