Nicotina | Entrevista

Apenas quem fuma sabe como os sintomas da abstinência podem ser insuportáveis. Entenda como se dá a ação da nicotina no organismo.

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Publicado em: 11 de outubro de 2011

Revisado em: 22 de outubro de 2021

A dependência de nicotina é maior que a de drogas como a cocaína e heroína, comprometendo seriamente a saúde do fumante.

 

Nicotina é um alcaloide (substância orgânica nitrogenada existente nas plantas e em alguns fungos), encontrado nas folhas do tabaco (Nicotiana tabacum), planta originária das Américas. Absorvida por via oral ou pulmonar, chega ao cérebro em segundos e depois, dissolvida no sangue, vai sendo excretada rapidamente. Quando os neurônios percebem que ela está escapando dos receptores, provocam um grau de ansiedade que só quem foi fumante sabe o que representa. É a crise de abstinência.

 

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Entre as mais de 4.700 substâncias nocivas presentes no cigarro, a nicotina é a responsável pela dependência, que é maior do que a de drogas como a cocaína e a heroína. As primeiras tragadas que o indivíduo dá na vida, em geral, são acompanhadas de tontura, enjoo, mal-estar. Depois, trazem sensação de prazer fugidio e, a seguir, alterações de humor causadas pela privação da droga. Assim, cigarro após cigarro, o organismo do fumante e também o do não fumante que convive no mesmo ambiente vai sendo minado e a saúde dos dois acaba seriamente comprometida.

 

NICOTINA ALCALINA E NICOTINA ÁCIDA

 

Drauzio – Professor, gostaria que o senhor explicasse o mecanismo de que se vale a nicotina para chegar ao cérebro.

José Rosemberg – A nicotina pode ser alcalina ou ácida. A ácida é ionizada, não atravessa as mucosas da boca. Precisa percorrer a árvore brônquica até alcançar os alvéolos, onde o ambiente alcalino favorece sua alcalinização. Através dos pulmões, ela se difunde por todos os vasos e chega no cérebro.

A absorção da nicotina alcalina, que não é ionizada, ocorre na boca e a droga é levada pelo sangue diretamente para o cérebro. Por isso, enganam-se os fumantes de charuto e cachimbo que não tragam. Não faz diferença tragar ou não, uma vez que a nicotina atravessa as células da boca, vai para o sangue e chega ao cérebro do mesmo jeito.

O grande segredo, portanto, para estimular o consumo da droga é utilizar nicotina alcalina, porque essa tem maior capacidade de penetração e gera maior dependência. Quem descobriu isso foi a Phillip Morris que adicionou amônia ao tabaco e produziu o cigarro Marlboro. O sucesso de vendas desse cigarro rico em amônia, que liberava rapidamente a nicotina, foi tão grande que essa empresa desbancou a British America Tobacco, da qual a Souza Cruz era a subsidiária brasileira, e assumiu a liderança mundial de vendas. Hoje, não há mais novidade. Todos os fabricantes adicionam elementos alcalinos à nicotina.

 

Drauzio – Por que as pessoas fumam mais quando tomam álcool?

José Rosemberg – A razão é simples. O álcool acidifica a urina. Essa acidificação faz com que a nicotina seja eliminada mais rapidamente, porque ela não é absorvida pelos túbulos renais. Sem a droga, o fumante fica ansioso e acende outro cigarro. Por isso, quem fuma e toma álcool acaba fumando muito mais.

 

AÇÃO NOS CENTROS NERVOSOS

 

Drauzio – Como a nicotina age nos centros nervosos?

José Rosemberg – Quem fuma um cigarro dá seguramente dez tragadas em média. Se fumar um maço por dia, serão 200  tragadas em 24  horas e 73 mil num ano, o que resula em 73 mil impactos no cérebro por ano. O conceito de que a cada tragada corresponde um impacto cerebral não é verdadeiro. Aliás, nenhuma droga age dessa forma no cérebro.

O que acontece? A ação da nicotina é permanente no cérebro. Quando está presente, todos os centros nervosos – o dopamínico, o mesolimbo, o núcleo acumbens – a reconhecem e uma série de centros e neurônios nicotínicos, com várias subunidades, atuam se revezando: quando uns caem, outros começam a funcionar. Portanto, a nicotina continua agindo no cérebro, mesmo à noite, enquanto a pessoa dorme e não está fumando.

Drauzio – Como se explica que algumas pessoas consigam manter-se como fumantes moderados e fumem no máximo dez cigarros por dia, enquanto outras fumam três ou quatro maços?

José Rosemberg – Essa pergunta é fundamental, porque até mesmo parte dos médicos desconhece a resposta que é importante para o tratamento do fumante. O grau de dependência varia de acordo com as características genéticas, coisa que não se sabia até alguns anos atrás.

A metabolização da nicotina ocorre no fígado, num sistema chamado citocromo 450. Normalmente, 80% dela são metabolizados em 15 minutos. Entretanto, até bem pouco tempo não se sabia que a metabolização cai quando no DNA um dos 20 alelos, isto é, das 20 variedades do gene CYP2A6, é heterozigótico ou nulo. Há indivíduos que têm dez desses alelos geneticamente heterozigóticos e, embora metabolizem menos nicotina e tenham menos propensão para criar dependência, fumam mais. Já se descobriu, também, que o gene DRD2, quando heterozigótico, confere ao portador enorme compulsão para o consumo de tabaco e de qualquer outra droga.

Indivíduos que têm o gene CYP2A6 consomem grande quantidade de tabaco e têm no sangue grande quantidade de cotinina, o primeiro metabólito da composição da nicotina. Quando metabolizam pouca nicotina, têm muita nicotina no sangue e pouca cotinina, porque, apesar de circular pelo sangue, a nicotina não alcança os outros órgãos.

Se a ação da nicotina for muito forte, há uma pausa negativa na resposta dos centros cerebrais, principalmente do núcleo acumbens e dos centros dopamínicos (a dopamina é responsável pela sensação de prazer maior). Como isso aumenta a vontade de fumar e a ansiedade, a pessoa precisa fumar de novo para compensar as unidades que foram sideradas.

Há mais de cem anos, o grande poeta e escritor Oscar Wilde definiu o cigarro como objeto do prazer requintado, mas que deixa descontente. Hoje, conhecemos a explicação genética desses efeitos: a queda da dopamina provocada pela fase negativa dos centros nervosos faz com que o fumante se sinta mal e precise fumar outra vez.

 

Drauzio – Existe como medir o grau de dependência da nicotina?

José Rosemberg – Não existe um método para medir a dependência. Existe o questionário de Fagerström do qual constam várias perguntas. Por exemplo, quanto tempo o indivíduo leva para fumar o primeiro cigarro pela manhã, quantos cigarros fuma por dia, se acorda à noite para fumar, etc. Quanto mais pontos fizer, maior será o grau de dependência.

Já se sabe, porém, que 30% dos fumantes não se tornam nicotino-dependentes ou apresentam grau baixo de dependência. Nesses casos, simples aconselhamento será suficiente para convencê-los a parar de fumar. Nos outros 70%, o número de recaídas costuma ser muito alto.

 

DEPENDÊNCIA NA MULHER

 

Drauzio – É mesmo mais difícil para a mulher largar de fumar?

José Rosemberg – A diversidade genética é maior nas mulheres do que nos homens. Com mais frequência, o gene integral CPY2A6 está presente nelas. Consequentemente, mesmo quando decidem parar de fumar, a capacidade maior de decompor a nicotina faz com que sejam mais frequentes as recaídas.

Além disso, pesam fatores psicológicos. A nicotina consome calorias e, geralmente, o indivíduo ganha um ou dois quilos quando pára de fumar, mas depois seu peso equilibra. Se tiver um problema genético hormonal, acabará engordando mais. Ora, mulheres têm pavor de engordar e muitas continuam fumando por medo de ganhar peso. Elas não sabem que fumante magro morre mais por doenças do que não fumante gordo.

 

FUMANTES PASSIVOS

 

Drauzio Em quanto tempo a nicotina de cada cigarro é excretada?

José Rosemberg A nicotina se decompõe em duas horas. No entanto, a cotinina leva de 30 a 40 horas para ser decomposta. Se a dosarmos no sangue, saberemos se o indivíduo fumou ou teve contato com fumantes no dia anterior.

Está provado que, mesmo não fumando, a pessoa será um fumante passivo, se trabalhar em ambiente onde as outras pessoas fumam. Experiência com aeromoças não fumantes, dosando a nicotina e a cotinina antes de embarcarem em Nova York e, depois, quando desembarcavam em Tóquio, demonstrou que aquelas que trabalhavam com o serviço de bordo na área dos fumantes tinham quantidade dessas drogas no sangue igual à das pessoas que fumaram cinco cigarros.

Vários estudos chegaram à mesma conclusão: passar o dia inteiro num ambiente ao lado de fumantes é o mesmo que fumar de cinco a dez cigarros, porque as substâncias cancerígenas do tabaco evolam-se e homogeneízam-se na atmosfera. Depois de duas horas, não faz diferença estar sentado longe ou perto do fumante. Por isso, separar fumantes dos não fumantes em bares e restaurantes, embora tenha valor psicológico, não tem nenhum valor científico, porque todos os frequentadores serão intoxicados pela nicotina.

Drauzio – O senhor poderia explicar o que acontece com os não fumantes expostos a ambientes onde se fuma?

José Rosemberg – Está provado que o fumante passivo corre risco maior de infarto e de câncer de pulmão. Estudo realizado em 22 países sobre essas doenças mostrou que sua incidência está acima de 50% nos não fumantes que frequentam lugares onde se fuma.

Câncer de pulmão é tido como fator A na poluição tabágica ambiental por causa da capacidade de angiogênese da nicotina, ou seja, de sua capacidade para criar novos vasos sanguíneos. Assim, onde houver uma célula cancerosa, esses novos vasos a nutrirão melhor e ela se reproduzirá mais depressa.

Por outro lado, o gene CYP2A6 tem a propriedade de ativar nitrosamina da qual derivam quatro substâncias tóxicas cancerígenas específicas do tabaco e que não existem em nenhuma outra planta. Uma delas é tão cancerígena que basta uma pincelada no dorso de um hamster para provocar tumor cancerígeno. Como essas substâncias se difundem na atmosfera dos lugares onde se fuma, um dos pontos fundamentais da Convenção-Quadro aprovada por 192 países, em 2003, refere-se à poluição tabágica ambiental como fator de morte. Por essa razão, fumar deve ser proibido em todos os lugares públicos, uma vez que o homem moderno passa a maior parte do tempo em ambientes fechados, nos quais 80% da poluição resultam do consumo de tabaco.

 

Drauzio – E ao ar livre, existe perigo?

José Rosemberg – A poluição nicotínica pode ser forte mesmo ao ar livre. Exame de sangue feito nos guardas da Trafalgar Square, em Londres, revelou presença de nicotina e de monóxido de carbono, este por causa dos automóveis, e a nicotina porque as pessoas fumavam na rua, a céu aberto.

Outro exemplo é o da Praça Vermelha em Moscou, que tem a sua volta o Kremlin, a Igreja de São Pedro, shoppings e museus. Essas construções impedem que o ar circule facilmente. Antes de a União Soviética ser desfeita, formavam-se filas de 20 mil a 30 mil pessoas que fumavam enquanto aguardavam a vez de aproximar-se do túmulo de Lênin. Estudo realizado na época mostrou que a quantidade de nicotina ali represada era tão grande que, nos últimos anos do governo comunista, foi proibido fumar nessa praça.

 

CRISE DE ABSTINÊNCIA

 

Drauzio – O senhor e eu já fomos fumantes e experimentamos a crise de abstinência de nicotina na pele. Como o senhor venceu esse problema?

José Rosemberg – Fui fumante na mocidade. Estudei na França durante dez anos. Apesar de já estar formado em medicina, levava vida de estudante, com pouco dinheiro. Por isso, fumava Gauloise ,um cigarro barato, sem filtro, um verdadeiro quebra-peito e um charuto muito vagabundo. Quando só restava um pedacinho e não era possível mais segurá-lo entre os dedos, colocava-o na panela de um cachimbo para fumá-lo até o fim. Um dia, Etienne Bernard, meu professor de tisiologia, me disse: ”Rosemberg, você é médico, vai ser tisiólogo, e fuma. É uma vergonha!”. E eu lhe prometi, como costumam fazer os fumantes: “Tal dia, à meia-noite, paro de fumar”.

Ítalo Svevo, escritor italiano precursor da ficção moderna nascido no século 19, também marcava datas para largar de fumar. Dizia que, quando houvesse dois 9 no dia do mês ou no número do ano, pararia de fumar. É obvio que nunca parou, mas eu cumpri o que havia prometido. Passei muito mal durante um mês inteiro. Nervoso, não conseguia me concentrar. Tenho a impressão, porém, que não possuo esse gene homozigótico integral e a vontade foi diminuindo aos poucos. No entanto, veja o que é a dependência de nicotina. Na época, eu tinha 25, 26 anos, mas ainda hoje, quase 70 anos depois, sonho que estou fumando e a sensação é muito gostosa.

 

Drauzio O senhor largou de fumar há quase 70 anos e ainda sonha que está fumando?

José Rosemberg – Nesses anos todos, tive uma ou outra recaída, que consegui superar, mas até hoje guardo uma coleção de cachimbos, cara e bonita, que mostro de vez em quando.

Cito esse exemplo de que parar de fumar não é uma decisão determinada só pela vontade do fumante. Ele é um dependente de nicotina e pode ter um problema genético que necessita de tratamento.

 

Drauzio – Algumas pessoas não conseguem deixar de fumar nunca.

José Rosemberg – Não há tratamento para os 5% de fumantes com dependência muito forte da nicotina. Esses estão fadados a morrer fumando.

 

TRATAMENTO

 

Drauzio – Em que consiste o tratamento para os fumantes?

José Rosemberg – Podemos contar com a reposição de nicotina e com os antidepressivos. Além disso, descobriu-se uma substância chamada metoxalem, que tem a propriedade de decompor o gene CYP2A6 e, quando ele não é codificado, a tendência para fumar é menor. Estudos clínicos e em ratos de laboratório já provaram a eficácia dessa substância e espera-se de daqui a quatro ou cinco anos esteja à disposição no mercado. Além dessa há outra, a nortriptilina, com ação semelhante, porém, menos intensa.

A grande esperança, porém, está na vacina contra a nicotina, que já tem nome – Nicvacs – e está na fase dois de pesquisa clínica. O processo de obtenção é mais ou menos o seguinte: liga-se a nicotina, que tem peso molecular muito baixo, a uma proteína de peso molecular alto. Fundem-se as duas. Prepara-se um anticorpo que reconhece essa junção e não atravessa a membrana cerebral. O indivíduo pode tragar que a nicotina não chega ao cérebro, porque foi anulada pelos anticorpos.

 

Drauzio – Mas não fica a vontade permanente de fumar?

José Rosemberg – A vontade de fumar vai caindo aos poucos e, mesmo que não desapareça, a pessoa não sentirá prazer, porque a nicotina não chegará ao cérebro. Espera-se que daqui a dez anos ou um pouco antes, talvez, essa vacina esteja à disposição para ser comercializada.

 

Drauzio Será uma grande conquista

José Rosemberg – Especialmente para os jovens, porque as campanhas educativas são absolutamente inócuas para eles. Não adianta chegar para um menino de 14 anos e dizer que terá um câncer aos 40, se continuar fumando. Ele se julga eterno e tem certeza de que essas coisas só acontecem com os outros. No entanto, se tomar a vacina contra o tabaco, a vontade de fumar irá diminuindo.

Na verdade, os pediatras têm importância fundamental nesse trabalho, porque crianças e adolescentes estão começando a fumar cada vez mais cedo. Os pediatras sabem que filhos de pais fumantes têm maior incidência de pneumonia, broncopneumonia, bronquiolite, amidalite, sinusite e de até surdez. Aconselhando os pais a não fumarem, eles estarão desempenhando papel importante na luta contra a epidemia tabágica pediátrica que estamos vivendo.

 

MENSAGEM PARA OS FUMANTES

 

Drauzio – Que mensagem o senhor pode deixar para os fumantes?

José Rosemberg – Se você fuma e tem filhos, lembre-se de que está prejudicando tremendamente a saúde de suas crianças. Muitas doenças que elas adquirem na infância, porque são fumantes passivas, irão repercutir na idade adulta.

Se você não consegue deixar de fumar, pelo menos tenha força de vontade para não fumar em casa. Não adianta acender o cigarro na sala de jantar enquanto a criança dorme no quarto. Se dosarmos a nicotina na urina de seu filho, veremos que ele respirou o ar poluído pelo cigarro que você fumou.

Não é novidade que a expectativa de vida do fumante é, em média, de 20 a 25 anos menor do que a do não fumante. Você não acha um absurdo concordar em viver menos? Procure um centro de tratamento. Há muitos e são gratuitos.O Incor e a Escola Paulista de Medicina, por exemplo, oferecem esse tipo de assistência. Além da dependência física, existe um componente psicológico muito forte provocado pelo hábito de fumar que precisa de atenção especial. Eu e muitos outros vencemos essa batalha. Você vencerá!

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