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close de mão de médico segurando cartela de medicamentos. remédios para dormir têm efeitos colaterais que podem ser perigosos
Publicado em 28/04/2011
Revisado em 11/08/2020

Assim como outros medicamentos, remédios para dormir podem aumentar a tolerância do organismo, que se adapta à presença constante da droga na circulação sanguínea.

 

Penso duas vezes antes de receitar um remédio para dormir.

Não que tenha sido contaminado pela filosofia dos que se consideram naturalistas modernos, portanto inimigos de soluções químicas. Nem que tenha preconceito contra os insones ou julgue esses medicamentos ineficientes, perigosos e cheios de efeitos colaterais; pelo contrário, a indústria farmacêutica desenvolveu drogas seguras capazes de induzir sono reparador com o mínimo de ressaca no dia seguinte.

Veja também: Entrevista sobre abuso de medicamentos

É justamente essa eficácia farmacológica a fonte de minhas incertezas. Distúrbios do sono são um dos grandes pesadelos da vida urbana; afligem milhares de mulheres e homens que atravessam a madrugada sem achar posição na cama, com a cabeça ligada nos compromissos a cumprir, em problemas sem solução e nas cicatrizes deixadas pelo passado remoto.

O problema com o uso de qualquer droga psicoativa é o fenômeno da tolerância, estratégia que o cérebro engendrou para adaptar-se à presença constante da droga na circulação sanguínea.

É a tolerância que explica por que, na adolescência, ficávamos embriagados com um quinto da dose de álcool que bebemos hoje sem dar vexame. É ela que arruína as finanças dos usuários de cocaína, faz o maconheiro velho queixar-se da qualidade da maconha atual e torna dependente de pílulas para dormir a legião dos que padecem de insônia.

Faço essas reflexões, leitor, por causa de um fato sucedido com o doutor Fritz, numa noite de verão. Renomado especialista em cálculos de grandes estruturas, doutor Fritz trabalhava como engenheiro-chefe de uma empresa alemã. Bastava uma ponte tremer, um arranha-céu inclinar meio grau ou um estádio de futebol balançar sob o entusiasmo da torcida em qualquer lugar do mundo, para a empresa convocá-lo com o inseparável computador e a mala pequena com duas mudas de roupa para não perder tempo nos aeroportos.

Era casado com uma conterrânea, com quem teve dois filhos. Depois que os rapazes saíram de casa, a esposa se dedicou em tempo integral aos afazeres domésticos: refeições no mesmo horário, objetos nos locais de sempre, panelas impecavelmente areadas e os cuidados com o jardim que todos elogiavam. O menor desvio da rotina diária deixava-a em pânico; não havia nascido para imprevistos, reconhecia.

Formavam um desses casais harmoniosos, em que cada um aceita e se adapta às  idiossincrasias do outro.

A organização rígida do lar servia à profissão do marido, homem de pouco falar, fascinado pelo pensamento abstrato e pela racionalidade, desatento à vida social, sempre entretido com os livros no pequeno escritório ao lado da sala, espaço no qual se refugiava todas as noites, com exceção das quintas-feiras em que a Orquestra Sinfônica se apresentava, e dos sábados às 20 horas, quando assistiam aos filmes que a esposa ia buscar na locadora.

A tranquilidade dele, no entanto, foi abalada quando a empresa disputou uma concorrência internacional para a construção de uma barragem gigantesca, que o obrigou a viajar amiúde para um país distante, trocar inúmeros e-mails, manter conversas telefônicas intermináveis e um sem número de videoconferências.

A pressão foi tão intensa, que começou a perder o sono. Habituado a ir para cama  impreterivelmente às dez e meia, imaginou que se levantasse mais cedo ou se deitasse mais tarde conseguiria dormir melhor, mas as tentativas foram infrutíferas. Seu problema não era o de conciliar o sono, mas acordar duas ou três horas mais tarde, com o pensamento invadido pelos cálculos e os problemas da maldita barragem.

Então, naquela noite fatídica, exausto, decidiu tomar um tranquilizante, pela primeira vez em 57 anos. Foi para a cama, conversou alguns minutos com a mulher sob a luz do abajur e perdeu contato com o mundo.

Acordou surpreso às sete da manhã. A esposa estava a seu lado de olhos abertos,  sorridente e nua:

— Querido, foi a noite mais maravilhosa de nossas vidas.

Doutor Fritz ficou pasmo. Não lembrava de nada.

Pouco mais tarde telefonou para o médico, que lhe explicou tratar-se de um tipo de amnésia transitória induzida por tranquilizantes, acontecimento raro, desprovido de maiores consequências.

Ele não se conformou, entretanto. O que o inquietava não era propriamente o efeito  colateral da medicação:

— Sem me lembrar do que fiz, o senhor já imaginou a decepção dela da próxima vez?

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