O uso do cinto de segurança não está indicado apenas para quem anda no banco da frente. Ele é necessário, também, para os passageiros do banco de trás.
Na quinta-feira, acordei às 4h30 para escrever esta coluna. Às 8h, passou o carro da rádio Bandeirantes para me levar até a emissora. Naquele dia, terminava uma campanha destinada a ajudar os ouvintes a largar o cigarro, na qual acompanhei diretamente cinco participantes durante um mês, além de quase 3 mil inscritos pela internet.
Na direção, estava o motorista Luiz Ramos e, ao lado, o repórter André Russo, alto e forte. Por disponibilidade de espaço, sentei-me no assento atrás do motorista, e fomos pelo trânsito pesado a caminho do Morumbi. Conversamos pouco porque eu vinha com a cabeça no artigo que havia começado a escrever – e que não é este, como ficará evidente.
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Quando chegamos ao destino, o carro embicou na portaria da emissora e parou diante da cancela para a identificação de rotina. Nós três, em silêncio, esperando. De repente, tomei um tranco que me jogou de cabeça contra a porta oposta. O trauma inesperado me deixou meio tonto, mas completamente lúcido, consciente de que algum automóvel havia se chocado contra o nosso.
Imediatamente, Luiz desceu para reclamar da distração da moça que provocara a colisão, e André se apressou em abrir a porta traseira para saber se eu estava bem. Passei a mão na cabeça, não havia sangue nem doía muito; a batida tinha sido fraca.
De fato, quando saí do carro notei apenas um pequeno amassado na parte da lataria que fica entre a roda traseira e o para-choque, do lado em que eu me encontrava.
André e eu cruzamos o pátio e subimos dois lances de escada até a Redação, onde já nos esperavam três dos participantes. Cumprimentei-os com familiaridade, afinal era a terceira ocasião em que nos encontrávamos pessoalmente, além de tê-los entrevistado por telefone duas vezes por semana na programação da rádio, durante a campanha. Estavam visivelmente alegres, comemorando um mês sem fumar, com as fisionomias tão mais saudáveis que fiquei feliz de participar daquele momento.
Poderia ter perdido a capacidade de entender o mundo à minha volta por mera estupidez: não usar cinto de segurança só por estar no banco de trás.
Nesse clima de descontração, pretendi elogiar o desaparecimento quase completo da cor azulada que um deles exibia na face por ocasião de nosso primeiro encontro, mas não consegui lembrar o nome do rapaz, apesar do esforço. Mais grave: não era caso isolado, não me vinha à cabeça o nome de nenhum deles. Logicamente, sabia quem eram e o que faziam naquele lugar, só não me lembrava dos nomes.
O choque aparentemente leve contra a porta tinha interferido no centro cerebral responsável pela memorização de nomes, estrutura localizada anatomicamente em região distante das áreas responsáveis pelo reconhecimento de rostos e expressões faciais. Para disfarçar a preocupação, pedi licença e fui telefonar para o consultório.
Parei surpreso com o telefone na mão: não lembrava o número de jeito nenhum! O traumatismo também afetara o centro onde estão arquivados os números.
Peguei o jornal na mesa ao lado e li duas notícias da primeira página. Depois, procurei repetir para mim mesmo o que havia lido! Perfeito, nenhum problema! No estúdio, o radialista José Nelo Marques me passou a ficha técnica do programa, que continha, entre outros dados, o nome completo dos participantes. Bastou uma vista de olhos e os cinco nomes vieram instantaneamente à memória. Fiquei aliviado, a concussão cerebral havia sido mínima, transitória, integralmente reversível em alguns minutos.
Terminado o programa, fui ver os doentes internados no hospital e, de lá, para o consultório, onde o resto da manhã transcorreu sem sobressaltos. Na hora do almoço, aproveitei para falar com minhas filhas, como geralmente faço. Fiquei feito bobo diante do telefone outra vez, tentando inutilmente encontrar em que pasta do arquivo da memória estariam armazenados os números.
Depois de alguns minutos, um dos números apareceu claro em minha mente. Atendeu uma voz desconhecida. Veio outro com igual nitidez, liguei confiante, a gravação disse que ele não existia. Resolvi dar um tempo.
Duas horas depois, finalmente lembrei-me dos números. Desde então, a única sequela do acidente tem sido um pequeno incômodo quando viro o pescoço.
Do episódio guardei uma estranha sensação de ridículo. Se aquela moça tivesse feito a curva numa velocidade um pouco mais alta, o impacto talvez fosse suficiente para deletar sabe lá quantas informações acumuladas ao longo da vida.
Poderia ter perdido a capacidade de entender o mundo à minha volta por mera estupidez: não usar cinto de segurança só por estar no banco de trás. Mesmo sendo médico e estando cansado de saber que o passageiro de trás sem cinto tem muito mais chance de morrer num desastre do que os do banco da frente com o cinto de segurança afivelado. E que, no choque de um automóvel a 60 km por hora contra um obstáculo fixo, o corpo de quem está atrás é arremessado contra o banco da frente com uma energia equivalente à massa de uma tonelada.
O pior não foi o susto da batida nem a preocupação com o esquecimento, eventos felizmente passageiros. Muito pior foi lidar com a autocrítica; passei o resto do dia me xingando de burro velho!