Manhã inútil | Artigo

close de mão de homem segurando celular e computador no colo, exposto ao excesso de telas

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Publicado em: 11 de agosto de 2021

Revisado em: 11 de agosto de 2021

O excesso de telas, ainda mais frequente durante a pandemia, nos faz ter a eterna sensação de nunca dar conta de cumprir todas as tarefas do dia.

 

Acordei às 5 da manhã. Finalmente, um dia sem compromissos, nenhuma palestra para fazer, nenhuma reunião pelo zoom, ninguém acordado àquela hora, sem telefonemas urgentes para dar. Sozinho, em casa, o dia inteiro para me dedicar ao livro que não consigo terminar de escrever.

     Veja também: Como não exagerar no uso de telas durante a pandemia

A caminho da cozinha, peguei os jornais da véspera intactos sobre a mesa da sala. No café da manhã, li os editoriais e me entretive com as notícias sobre a CPI, os números da epidemia, as roubalheiras das vacinas e as mentiras de autoridades que nos julgam idiotas.

Quando dei por mim, já eram 6:30. Lavei, enxuguei e guardei a louça. Estava saindo da cozinha, quando vi o chão manchado. Umedeci um pano, enrolei no rodo e esfreguei com força.

Arrumei a cama e abri a porta do quarto que dá para a sacada. Voltei à cozinha para buscar a banana que coloco para os sanhaços todos os dias. São lindos, azulados, ariscos, voam para longe à menor aproximação. Estão mal acostumados: a banana não pode estar muito madura nem ser servida depois das 10 da manhã.

Começava a clarear. Uma franja de luz alaranjada circundava a zona norte, por trás da serra da Cantareira. Madrugadores como eu acendiam as primeiras luzes nos prédios do centro de São Paulo. No silêncio das ruas vazias, parado na janela, a cidade em que nasci e eu éramos capítulos inseparáveis da mesma história.

Sinto-me Sísifo condenado pelos deuses a carregar uma pedra até o topo da montanha, que cairá de volta para ser carregada para cima, outra vez. Essa era a imagem mais contundente do trabalho inútil e repetitivo, antes da criação do e-mail e do WhatsApp.

Antes de me sentar diante do computador, achei melhor colocar em ordem os papéis e devolver à estante as revistas científicas e os livros espalhados sobre a mesa. Sobrou um tratado de medicina que não encontrou espaço entre os congêneres.

Retirei os livros daquela prateleira e fiz uma pilha sobre a mesa. Antes de devolvê-los ao lugar, voltei à cozinha atrás de um pano para tirar o pó acumulado entre eles. Olhei para a lata de lixo, estava pela metade, mas achei bom esvaziá-la, a cozinha estava tão limpa. Levei o saco plástico para a área de serviço. Quando voltei para o escritório, vi que a implicância com a ordem me fizera esquecer do pano para o pó da estante. Retornei à cozinha.

Já passava das 8, quando abri o computador. Nenhuma nuvem no céu, o sol batia forte na janela. Dias, assim, não são bons para escrever, convidam o escritor a sair de casa, deixam a sensação de que estamos perdendo parte da vida que pulsa intensa lá fora. Manhãs cinzentas, chuvosas, induzem estados reflexivos mais próprios à escrita.

Antes de abrir o computador, tive a má ideia de olhar para a tela do celular. Cinco WhatsApps já me atormentavam àquela hora. Achei melhor respondê-los logo, para ficar livre da preocupação. Caí na armadilha, porque os cinco se somavam às dezenas que eu não tivera tempo de ver na véspera. Você, leitora, não faz ideia do inferno que virou a vida dos médicos, depois do WhatsApp. Qualquer sombra de dúvida que passe pela cabeça de um paciente, de um familiar, de um amigo ou dos amigos de qualquer amigo, vira uma mensagem que somos obrigados responder.

Um dos WhatsApps daquela manhã começava assim: “Doutor, a cunhada do marido da prima da minha mulher teve um tumor de mama de 2cm; é grave?”. Outro perguntava se o cansaço que a sogra estava sentindo podia ser sintoma de covid. Uma amiga se queixava de que tomara a vacina na véspera, e tinha acordado sem sentir nada. Queria saber se ficaria imunizada.

Depois de duas horas ou mais, saí do aplicativo, com a sensação de culpa de haver deixado tantas mensagens para trás. Fui fazer um café. Já que tinha perdido tanto tempo atualizando o WhatsApp, talvez fosse melhor dar uma olhada nos e-mails. Foi a segunda armadilha. As mensagens rolam pela minha caixa postal como a água nas cachoeiras. Sinto-me Sísifo condenado pelos deuses a carregar uma pedra até o topo da montanha, que cairá de volta para ser carregada para cima, outra vez. Essa era a imagem mais contundente do trabalho inútil e repetitivo, antes da criação do e-mail e do WhatsApp.

Parei, quando o telefone interno tocou para avisar que o entregador do supermercado me aguardava na garagem do prédio.

Guardei as compras na dispensa e na geladeira. Olhei para o relógio, a manhã tinha ido embora.

Nas manhãs de antes da pandemia, eu cruzava o país para fazer uma palestra em Recife ou Fortaleza, examinava doentes, passava visita no hospital, atendia dezenas de presas na penitenciária, gravava para a televisão. E nesta manhã, o que eu fiz?

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