A vacinação contra a covid no Brasil virou uma confusão, diferentemente de outras políticas públicas bem sucedidas no país, como a do HIV.
A vacinação contra a covid é uma confusão geral. O racionamento de vacinas nos obriga a distribuí-las segundo critérios que precisam levar em conta o risco de contrair o vírus e a probabilidade de desenvolver as formas mais agressivas da doença, tarefa que sempre coube ao Programa Nacional de Imunizações (PNI), reconhecido como um dos mais atuantes e bem organizados do mundo.
A experiência do PNI é vasta. Vai desde a aplicação de vacinas em todas as crianças, àquelas indicadas para grupos selecionados, como é o caso da gripe, do HPV e das pessoas com o sistema imunológico debilitado.
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Pela primeira vez, lançamos um programa de imunização em massa sem vacinas suficientes nem campanhas de conscientização. Ainda assim, não haveria dificuldade para o PNI definir a ordem daqueles que deveriam ser vacinados antes dos outros, segundo critérios que valessem do Oiapoque ao Chuí.
O problema é que o PNI foi desestruturado no governo atual. A entrega da cúpula do Ministério da Saúde a pessoas que entendem tanto de campanhas de vacinação quanto eu de canhões e submetralhadoras, foi um desastre. Na ausência de diretrizes claras do ministério, cada cidade fez o que bem entendeu.
Assim, jovens burocratas que trabalham à distância nos hospitais, personal trainers, nutricionistas, psicólogas e médicos, que nunca chegaram perto de um paciente infectado, foram vacinados antes das faxineiras das UTIs, dos professores, motoristas de ônibus, caixas de supermercado, balconistas de farmácias e padarias e de profissionais da linha de frente, em contato direto com os doentes. Gente que não faz parte do grupo prioritário em sua cidade, tem direito à imunização na cidade vizinha.
Hoje, a prevalência do vírus [HIV] na população sul-africana adulta é de cerca de 12%. Se tivéssemos optado pelo negacionismo como eles, teríamos 17 milhões ou 18 milhões de brasileiros infectados, em vez dos 920 mil atuais.
A decisão de combater uma epidemia é um ato político, responsabilidade inalienável do presidente da República, a autoridade máxima do país. Ele é o responsável maior, seguido pelos governadores e os prefeitos, uma vez que a administração do SUS é tripartite. Aos médicos, aos epidemiologistas e aos cientistas cabe a função de assessorá-los com conhecimentos técnicos baseados nas melhores evidências científicas.
Vamos lembrar da nossa história do combate à aids. Já no início da epidemia, começaram as campanhas do Ministério da Saúde através do rádio e da TV, para explicar as características da doença, as vias de transmissão e insistir na necessidade do uso de camisinha (palavra sequer pronunciada em público, até então).
No governo Sarney, a pressão dos ativistas gays conseguiu aprovar uma lei que dava aos doentes o direito a receber os antivirais, pelo SUS. O efeito prático foi nulo: não havia recursos no orçamento do ministério. Além do que, AZT, ddI e ddC, os medicamentos disponíveis, na época, eram caríssimos e com pouco impacto na evolução da doença.
No final de 1995, aconteceu uma revolução: surgiram os antirretrovirais de alta eficácia que permitiriam o controle da infecção pelo HIV por muitos anos. O ministro da saúde, José Serra – que não era médico -, juntou uma equipe multidisciplinar de especialistas, alguns dos quais militantes de partidos políticos da oposição, para orientá-lo.
O grupo concluiu que o melhor caminho seria adotarmos a política de acesso universal à medicação. Pretensão utópica? Como o SUS conseguiria adquirir em larga escala antirretrovirais, que custavam mais de mil dólares mensais, para tratar de um único doente?
O Ministério jogou o peso do governo numa queda de braço com a indústria farmacêutica, que resultou em descontos de até 90% nos preços. Num dos casos, foi necessário quebrar a patente.
Nessa época, a prevalência do HIV no Brasil era igual à da África do Sul. Nós distribuímos os medicamentos, eles não. Hoje, a prevalência do vírus na população sul-africana adulta é de cerca de 12%. Se tivéssemos optado pelo negacionismo como eles, teríamos 17 milhões ou 18 milhões de brasileiros infectados, em vez dos 920 mil atuais.
A experiência brasileira serviu de exemplo para o mundo. Mostrou que mulheres e homens com carga viral tornada indetectável pelo tratamento, dificilmente, transmitem o vírus nas relações sexuais. A partir dos nossos resultados, os países africanos da região abaixo do deserto do Saara, passaram a receber ajuda das organizações internacionais para tratar os que convivem com o HIV.
Andamos para trás, já fomos bem mais inteligentes do que hoje.