Valdemar Gonçalves | Artigo

lateral de prédio interno do Carandiru, onde Valdemar trabalhou anos

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Publicado em: 12 de fevereiro de 2021

Revisado em: 12 de fevereiro de 2021

Valdemar trabalhou anos  como carcereiro no Carandiru, o maior presídio de São Paulo.

 

— Muito prazer, sou o Valdemar, chefe do departamento de Esportes, aqui da Casa de Detenção. Eu posso te ajudar na organização dessas palestras.

Estávamos em 1989, o ano em que iniciei um trabalho voluntário no Carandiru, presídio com mais de 7 mil homens, situado na avenida Cruzeiro do Sul, a 20 minutos de metrô do centro de São Paulo.

Veja também: Artigo do dr. Drauzio sobre superpopulação carcerária

Ele se referia às palestras educativas que eu começara a fazer num salão do segundo andar do Pavilhão Seis, sobre a transmissão do HIV e as características da aids, pandemia que assolava o país e se espalhava pela periferia de São Paulo no rastro de outra epidemia: a do uso de cocaína na veia.

Tínhamos conseguido um telão e o equipamento de som emprestados da Unip, para exibir vídeos sobre HIV e aids, antes de eu subir ao palco para dar explicações e responder perguntas da plateia, sentada no chão.

Começava ali uma amizade encerrada em 11 de fevereiro de 2021, 32 anos mais tarde, dia em que ele nos abandonou, abatido por um outro vírus, o coronavírus causador da covid-19.

Realizadas semanalmente para 300 a 400 pessoas reunidas no salão do Pavilhão Seis, por mais de dez anos, essas palestras só deram certo graças a uma ideia dele, que resolveu o problema de acordar os presos para chegar no salão às 8 horas, único horário possível, para não atrapalhar a rotina da cadeia.

— Doutor, tirar vagabundo da cama é problemático. Por que você não deixa passar um vídeo erótico no fim da programação, depois que você sai da sala? No esgano que a rapaziada vive, vai lotar o salão.

Foi um sucesso de público. No final da exposição, eu saía da sala e começava o vídeo de sexo explícito. Mas, para assisti-lo, a porta era fechada antes de começar a palestra. A programação era um pacote, ninguém podia chegar só para ver o vídeo erótico.

Valdemar tinha 39 anos quando foi designado para a função de carcereiro do Pavilhão Oito, o dos reincidentes. Três anos mais tarde, quando entrei na Detenção, em 1989, ele chefiava o departamento de Esportes, válvula de escape necessária para aliviar a pressão naquele caldeirão.

A liderança que ele tinha entre os presos, vinha da participação no dia a dia da cadeia. Uma vez, ouviu que Messias, um ladrão de carga estava prestes a matar um desafeto recém-chegado no pavilhão vizinho.

Valdemar subiu para o xadrez de Messias:

— É verdade o que me contaram?

— É, seu Valdemar. Esse pilantra saiu com a minha mulher, sabendo que eu tô na cadeia.

— Quanto tempo falta pra cantar a tua liberdade?

— Menos de um ano.

— Então, faz o seguinte, vai lá, mete a faca, e depois passa na minha sala pra dizer se valeu a pena.

No fim do dia, Messias apareceu:

— Vim agradecer o senhor. Eu ia atrasar a minha vida.

Uma tarde, depois de muita discussão com os presos encarregados de elaborar a tabela do campeonato interno de futebol, entre os pavilhões, um deles, um rapaz muito magro, voltou para dizer:

— O senhor é firmeza, seu Valdemar. Age sempre certo com nós. Se eu tivesse conhecido um homem justo como o senhor quando eu era criança, talvez não tinha entrado pro crime.

Era ele que marcava os encontros periódicos mantidos a cada três ou quatro semanas até o início da pandemia, nos bares da zona norte e nos botequins do centro, para tomar cerveja, cachaça, dar risada e contar histórias de cadeia, tema que nenhum de nós leva para a família, mas que domina as conversas quando estamos juntos.

O pai de Valdemar trabalhava como lixeiro no entreposto da prefeitura em frente ao Mercado Municipal. Era negro, casado com uma branca, com quem teve seis filhos. Valdemar e o irmão mais velho, Eurico, foram os únicos que ficaram solteiros, morando juntos até a morte de Eurico, ocorrida há oito anos.

Desde a perda do irmão, vivia sozinho na casa herdada dos pais, no Chora Menino, na zona norte, com o quintal cheio de galinhas, galos garnisés, patos, coelhos e um papagaio que gritava “vai se fuder”, quando o dono falava ao telefone.

Depois da implosão do Carandiru, ele e eu fomos para a Penitenciária do Estado, situada atrás da Detenção. Ficamos lá três anos, até a transferência dos presos para que pudesse ser transformada em presídio feminino.

De lá, fomos para o Centro de Detenção Provisória Vila Independência, no caminho de São Bernardo, de onde voltamos para a Penitenciária, em 2006, agora com mais de 2 mil mulheres presas. Esse trabalho de atendimento médico durou até fevereiro do ano passado, quando a pandemia nos obrigou a interrompê-lo, em virtude das nossas idades.

A figura de Valdemar não passava despercebida. A barba branca chegava até o peito, em meio a três correntes grossas que pendiam por fora da camisa, com um crucifixo de prata pendurado junto com a imagem de um guru metálico, barbudo como o dono, e uma fileira de patuás.

Sua vida era a cadeia. Dizia que tinha vindo ao mundo para estar no meio de mulheres e homens privados de liberdade. Foi meu grande professor. Com ele aprendi as leis do crime, os cuidados com as palavras e o comportamento que a massa carcerária esperava do médico. Por ele fui apresentado aos líderes do mundo do crime e aos funcionários encarregados de vigiá-los, em homenagem aos quais escrevi o livro “Carcereiros”, que virou série de televisão.

Foi Valdemar que se encarregou de impedir que o nosso grupo de dispersasse com a implosão do Carandiru. Era ele que marcava os encontros periódicos mantidos a cada três ou quatro semanas até o início da pandemia, nos bares da zona norte e nos botequins do centro, para tomar cerveja, cachaça, dar risada e contar histórias de cadeia, tema que nenhum de nós leva para a família, mas que domina as conversas quando estamos juntos.

A imagem dele cercada de nossos companheiros do antigo Carandiru rindo numa mesa de bar, entre garrafas de cerveja, torresmos e mandioca frita ficará para sempre em nossa memória. São homens a quem a sociedade deve muito, que a despeito da falta de reconhecimento dedicaram a vida à função de tomar conta das mulheres e homens que são despejados todos os dias nas prisões superlotadas do país.

Que vida bem vivida, meu parceiro inesquecível. Com você vai uma parte da minha história e da história dos nossos companheiros de jornada.

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