Estudo sugere que a fala teria evoluído diretamente a partir da imitação de sons vocais, mudando o debate sobre a evolução da linguagem.
Passamos os dias atentos ao comportamento alheio. Dedicamos tanta atenção a essa atividade, porque interpretar a intenção, as motivações e as emoções por trás das atitudes dos que nos cercam foi essencial à sobrevivência de nossa espécie.
O reconhecimento de faces, por exemplo, foi tão importante para separar amigos de inimigos que a seleção natural privilegiou os portadores de áreas cerebrais especializadas nessa função. Reconhecer alguém de quem não conseguimos lembrar o nome, evento social tantas vezes constrangedor, é demonstração inequívoca de que os centros cerebrais encarregados de arquivar nomes próprios estão separados daqueles responsáveis pelo reconhecimento de faces; e de que a identificação imediata do rosto de um adversário foi muito mais importante para a preservação da vida de nossos ancestrais do que chamá-lo pelo nome.
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O advento da ressonância funcional, técnica que tornou possível mapear as áreas do cérebro que entram em atividade quando executamos uma função motora ou expressamos qualquer emoção, permitiu investigar de que forma o cérebro lida com situações cotidianas, como tentarmos entender o que se passa na cabeça dos circunstantes ou controlarmos explosões emocionais ao nos relacionarmos com eles.
Num congresso recente da Sociedade de Neurociências Cognitivas, o grupo do holandês Cristian Keysers, da Universidade de Groningen, apresentou um trabalho sobre as bases neurais da empatia. Entendemos como empatia, a capacidade de nos identificarmos com outra pessoa, de sentirmos o que ela sente, de desejarmos que ela deseja.
A respeito da empatia, experiências recentes demonstraram que os neurônios de nosso cérebro refletem como “espelho” a experiência vivida pelos que estão em nossa volta. Por exemplo, quando submetemos à ressonância magnética funcional tanto a pessoa que pega uma fruta colocada sobre a mesa como o observador sentado diante dela, verificamos que as áreas cerebrais ativadas naquele que executa o movimento são idênticas às que entram em ação no cérebro de quem o observa.
Os exames mostraram que os sons emitidos pelos movimentos das bocas ou das mãos ativam em quem os ouve os mesmos circuitos de neurônios ativados naqueles que os executam.
Da mesma forma, ao assistirmos a um filme ou a uma peça de teatro, a empatia estabelecida com a personagem que chora ocorre pela ativação das mesmas áreas de nosso cérebro envolvidas no drama emocional vivido por ela.
A partir dessas observações, os neurocientistas aventaram a hipótese de que essa “atividade-espelho” seja parte fundamental do mecanismo neurobiológico criador da empatia entre seres humanos, outros primatas e até nos camundongos.
Mas, voltemos ao trabalho do grupo holandês. Nele, os autores procuraram verificar se semelhante “atividade-espelho” também ocorreria ao escutarmos os sons de uma ação que não presenciamos.
Com esse objetivo, submeteram à ressonância funcional 16 voluntários enquanto escutavam sons executados por movimentos de boca, como gargarejar ou cuspir; por movimentos das mãos, como bater palmas ou encher um copo de água; e por sons neutros, como o gotejar de uma torneira.
Os exames mostraram que os sons emitidos pelos movimentos das bocas ou das mãos ativam em quem os ouve os mesmos circuitos de neurônios ativados naqueles que os executam. Que esses circuitos estão localizados numa região conhecida como córtex pré-motor, jamais ativada pela audição do gotejar não humano da torneira. E, que, os sons relacionados com movimentos de boca ou de mãos percorrem circuitos diferentes na intimidade do córtex pré-motor. Em outras palavras: está documentada a “atividade espelho” mesmo para sons provocados por ações humanas invisíveis.
Ficou também demonstrado que a “atividade-espelho” evocada por estímulos auditivos é mais pronunciada do lado esquerdo do cérebro, justamente na vizinhança da circuitaria que se concentra nas áreas envolvidas na linguagem.
Esse achado joga lenha no debate sobre a evolução da linguagem, a mais original das habilidades humanas. Alguns estudiosos haviam proposto que a “atividade-espelho” teria oferecido ao homem primitivo a oportunidade de se comunicar por imitação dos gestos alheios. Segundo essa visão, a comunicação por meio de gestos haveria precedido a vocal.
Os resultados dos holandeses sugerem que a evolução da linguagem pode ter seguido caminho alternativo: a fala teria evoluído diretamente a partir da imitação de sons vocais auxiliada pelo fato de a “atividade-espelho” estar concentrada justamente nas proximidades das áreas que controlam a linguagem.