O martírio da maratona | Artigo

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Publicado em: 12 de abril de 2011

Revisado em: 16 de agosto de 2021

Correr uma maratona exige condições anatômicas apropriadas, tempo e espaço para treinamentos e, sobretudo, determinação.

 

Vinha pela Rua Direita. Andar pelo centro de São Paulo me dá a sensação de que cresci e virei homem de verdade.

Na minha infância no Brás só os homens iam para a cidade. De terno e gravata, tomavam o ônibus Estações, desciam na Praça da Sé e andavam até a Xavier de Toledo para pagar a conta de luz, depois a da água e a do gás.

Nas proximidades da Praça do Patriarca, um homem corpulento sorriu em minha direção. Tive o bom senso de estender-lhe a mão antes do exasperante “lembra de mim?”. Trinta quilos menos, ele tinha sido meu colega no Liceu Pasteur. Perguntou de minha vida, mais interessado em falar da dele e da aposentadoria que estava para chegar.

 

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Quando lhe disse que aos 49 anos, nem me passava pela cabeça a possibilidade de parar de trabalhar, adquiriu um ar grave:

— Você vai fazer 50 anos, idade em que começa a decadência.

Segui meu caminho. Quando entrei no Largo São Bento estava decidido: se conseguir correr 42 quilômetros não me sentirei decadente.

Dezessete anos mais tarde, acabo de completar a décima maratona.

Não pretendo convencê-lo a fazer o mesmo, leitor, maratonas exigem condições anatômicas apropriadas, tempo e espaço para treinamentos e, sobretudo, determinação. Depois de um mês de treinamento, qualquer jovem que não fume é capaz de completar provas de 15 quilômetros como a São Silvestre; maratonas, não.

Na noite anterior, você acorda às 2:30 com a sensação de que perdeu a hora. Às 3:40, outro susto, que se repete trinta minutos mais tarde.

A largada é um mar de camisetas coloridas. O pelotão de elite dispara na frente; quase todos são negros. Jamais serão alcançados por qualquer adversário: correm a vinte quilômetros por hora. Ganhará a competição o que tiver cara de mais doente.

A ralé larga como uma onda que avança com lentidão até encontrar espaço para correr. A excitação é grande, muitos gritam e pulam para comemorar; os mais experientes não abrem a boca.

É uma prova que exige planejamento. Em qualquer ponto do trajeto, a velocidade precisa levar em conta os quilômetros que faltam, o menor erro de cálculo coloca tudo a perder. Do primeiro ao último colocado, todos testarão o limite das forças.

A torcida nas ruas faz um espetáculo à parte. Grita, bate palmas, carrega cartazes com o nome dos participantes, palavras de incentivo, faixas dizendo que só Jesus salva e que o caminho do céu exige sacrifício semelhante. Em pontos estratégicos, bandas de rua tocam músicas barulhentas.

Nos dois ou três primeiros quilômetros o suor escorre e a respiração fica tão descontrolada que dá vontade de parar. Com esse fôlego ridículo, como ir até o fim?

Pouco a pouco, o ritmo respiratório e as batidas do coração se ajustam às necessidades dos músculos, a falta de ar desaparece e a sudorese diminui. O corpo entra em sintonia com o esforço exigido.

A passagem pelo quilômetro 21 desperta reações contraditórias: o alívio de que metade já foi e o medo do que vem pela frente. Se já custou chegar até aqui!

Ao redor do quilômetro 30, ficou para trás a euforia. Não fossem as manifestações da torcida, o silêncio seria sepulcral. Ninguém mais admira a paisagem, os olhares se concentram no asfalto; o pensamento, na mobilização da energia que resta para sobreviver.

Precisei de algumas maratonas para entender que elas começam no quilômetro 35, de fato, quando as forças abandonam o corpo e a aparência dos companheiros de infortúnio se torna lamentável. A julgar por ela, fica evidente que maratonas não podem fazer bem para o corpo humano.

Os quilômetros finais são dominados por um mantra que toma conta do cérebro: falta pouco, preciso chegar, falta pouco, preciso chegar… Os músculos das pernas parecem elásticos prestes a romper, as solas dos pés estão insensíveis, as costas doem, a cabeça fica oca, o corpo é um fardo insuportável, não há o que justifique um ser humano passar pelo que estou passando, mas não vim até aqui para andar, é preciso correr.

A visão da linha de chegada traz um pequeno alívio. Ao cruzá-la, nenhuma alegria, apenas a felicidade de parar de correr. Segundos depois, a plenitude de uma paz que parece barato de droga.

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