Mecanismo diabólico | Artigo

cigarro queimando em cinzeiro. Mundo tem um bilhão de fumantes

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Publicado em: 14 de abril de 2011

Revisado em: 22 de outubro de 2021

A nicotina age em receptores existentes nos neurônios cerebrais. Ao ligar-se a eles, são estimulados circuitos que liberam neurotransmissores: dopamina, serotonina, opióides e noradrenalina. Na falta dela, os receptores ficam vazios, a concentração de neurotransmissores cai e a crise de abstinência vem com tudo.

 

A sabedoria popular diz que o cigarro acalma e dá prazer e que a dependência é psicológica. A sapiência botequinesca se esquece dos fumantes inveterados que têm ódio do cigarro, e que a nicotina provoca alterações fisiológicas insensíveis à força de vontade do cidadão.

Em artigo para a revista “Scientific American”, Josef DiFranza revê os estudos que explicam as raízes bioquímicas da dependência de nicotina e contradizem o dogma de que ela levaria anos para escravizar o usuário.

Trabalhos iniciados por ele em 1997, com centenas de adolescentes fumantes, demonstraram que sintomas de abstinência e dificuldade para largar de fumar são detectáveis logo depois dos primeiros cigarros. Em média, o adolescente ainda fuma apenas dois cigarros por semana quando eles se manifestam.

Agitação, irritabilidade, dificuldade de concentração, ansiedade, queixas características da síndrome de abstinência, surgem em apenas dois dias em 10% dos que fumaram uma única vez. E, em 25% a 35% dos que fumam ocasionalmente durante um mês.

O aparecimento precoce dessa sintomatologia aumenta 200 vezes a probabilidade de virar fumante para sempre.

A nicotina age em receptores existentes nos neurônios cerebrais. Ao ligar-se a eles, são estimulados circuitos que liberam neurotransmissores: dopamina, serotonina, opióides e noradrenalina, entre outros. Na falta dela, os receptores ficam vazios, a concentração de neurotransmissores cai e a crise de abstinência vem com tudo.

 

Veja também: O cigarro e o aparelho respiratório

 

Se medirmos os níveis de atividade metabólica no cérebro de ratos que receberam uma dose diária de nicotina, durante cinco dias, observamos que depois da primeira dose ocorre aumento relativamente limitado da atividade em diversas áreas cerebrais. Após a quinta, a atividade se torna muito mais intensa e espalhada pelo cérebro inteiro. Quer dizer, meia dúzia de doses é suficiente para que o cérebro fique sensibilizado e predisposto à dependência.

Em seres humanos, após o primeiro cigarro, a nicotina ocupará 88% dos receptores existentes. Mas, a repetição do estímulo fará com que os neurônios aumentem a produção de receptores. Enquanto no principiante uma pequena dose preenche por um longo intervalo de tempo praticamente todos os receptores disponíveis, naquele que fuma um maço por dia a síndrome de abstinência se instala depois de minutos.

O intervalo livre de sintomas entre o último cigarro e o ataque de nervos para acender o próximo é chamado de período de latência. Nos noviços, esse período é longo: um único cigarro pode manter a crise sob controle por uma ou duas semanas. O uso repetitivo, entretanto, induz o aparecimento de tolerância, fenômeno que encurta progressivamente a latência.

Enquanto os sintomas de abstinência já são perceptíveis a partir do primeiro cigarro, a tolerância se desenvolve progressivamente no decorrer de meses ou anos. É ela, no entanto, que mantém o fumante nas garras do fornecedor.

Uma vez instalada, a tolerância finca raízes sólidas nos neurônios cerebrais. Depois de anos, quando o ex-usuário julga haver subjugado o vício e decide fumar apenas um cigarrinho, ela ressurge das cinzas: em poucos dias ele estará fumando como antes; senão mais.

Quem já fumou, como eu, tem direito de considerar-se ex-usuário de nicotina, ex-dependente jamais. Em algum canto do cérebro, a serpente da dependência estará à espreita do primeiro deslize.

Aqueles que conseguiram abster-se por apenas três meses ou passaram décadas em abstinência, quando recaem, voltam com a mesma rapidez ao número de cigarros diários anteriormente consumidos. A dependência de nicotina é uma doença crônica, incurável; o cérebro do fumante nunca mais voltará ao estado original.

A farmacologia não conhece droga que cause tamanha dependência química.

A nicotina não vicia por causar sensações inacessíveis aos mortais que enfrentam o cotidiano de cara limpa. Inundar o cérebro com ela não faz você experimentar a alegria do álcool, a onipotência da cocaína, o relaxamento da maconha ou as visões do LSD. Não existe barato nem viagem. Você fuma apenas para aplacar as crises de abstinência que a própria droga provoca a cada trinta minutos.

O único prazer de quem fuma é sentir a paz de volta ao corpo suplicante, até que a próxima crise bata à porta para enlouquecê-lo. Parece invenção de Satanás.

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