Dr. Walter | Artigo

grade de prisão. Carandiru

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Publicado em: 24 de julho de 2017

Revisado em: 11 de agosto de 2020

Dr. Walter trabalhou anos na Casa de Detenção de SP até ser diretor do Carandiru. Era respeitado por todos. 

 

Há uma semana, perdi um amigo: Walter Hoffgen. Nós nos conhecemos em 1996, quando ele assumiu a diretoria-geral da Casa de Detenção – o Carandiru.

Dr. Walter iniciou a carreira no Carandiru, como guarda de presídio, nos anos 1970, época em que deixar os cabelos crescer até a altura dos ombros era moda entre os jovens.

Em plena ditadura militar, no ambiente machista e autoritário do presídio, a chegada de um novato com calça boca de sino e cabelo comprido não foi vista com olhos amigáveis. Por maldade, foi escalado para o pavilhão Oito que albergava os reincidentes e os condenados a penas seculares.

 

Veja também: Artigo do dr. Drauzio sobre superpopulação carcerária

 

Sem nenhum treinamento prévio (como era usual naquele tempo), na tarde do primeiro dia de trabalho, ele se apresentou ao diretor do Oito: Mané Caixa, homem de poucas palavras, duro com os funcionários e os presos indisciplinados.

— Dei meu nome e estiquei a mão para cumprimentá-lo. Seu Mané me mediu de alto a baixo duas vezes, me deixou com a mão no ar, virou as costas, abriu o armário e me entregou um molho de chaves.

Recebeu a incumbência de trancar as celas do terceiro andar, justamente as que abrigavam os mais insubordinados.
Assim que saiu, um dos funcionários comentou:

— Que maldade, chefe, mandar um menino inexperiente para o terceiro andar, logo no primeiro dia?

— Esse hippie cabeludo precisa aprender a ser homem.

Quando o hippie cabeludo desceu para a sala da diretoria, nenhum dos funcionários que saíram com ele para trancar os outros andares havia concluído a tarefa. O diretor sorriu:

— Veio pedir ajuda, playboy? Os meninos não te obedeceram?

— Não tive problema, senhor, está todo mundo recolhido. É pra eu ajudar algum dos colegas?

Fiquei impressionado com as manifestações de tristeza que seu falecimento provocou entre os funcionários que trabalharam sob seu comando, dos mais humildes aos mais graduados.

O chefe considerou insolente a resposta e a façanha tão improvável, que subiu para certificar-se.

Enquanto o trabalho dos mais velhos andava pela metade, nas galerias do terceiro andar não havia um preso solto.

O que o veterano Mané Caixa não sabia é que o recém-contratado era o afamado Mazzola, centroavante do glorioso Relâmpago, time da Vila Califórnia. O apelido tinha origem na semelhança física com o artilheiro do Palmeiras e da Seleção Brasileira.

Com a popularidade desfrutada na zona leste, Mazzola fora acolhido com simpatia pelos ex-companheiros dos campos de várzea que cumpriam pena naquele andar.

Em 1988, com o diploma de advogado, assumiu o cargo de diretor-geral da Penitenciária do Estado, situada no Complexo do Carandiru.

Oito anos mais tarde, retornava como diretor-geral da Casa de Detenção.

Já o conhecia de nome, quando o procurei na sala da diretoria para me apresentar e explicar a natureza do trabalho voluntário educativo-assistencial que eu realizava no presídio, desde 1989. Foi a primeira das inúmeras conversas que mantivemos nos últimos 20 anos.

Ele conhecia a vida carcerária como poucos. Contava histórias de rebeliões, tentativas de fugas e esfaqueamentos covardes com a naturalidade de quem descreve os fatos do dia a dia. Dirigia a cadeia com a paciência e perseverança de quem monta um quebra-cabeça.

Quando o Dr. Lourival Gomes assumiu a Secretaria da Administração Penitenciária, convidou-o para ser seu secretário-adjunto. Não podia ter feito escolha melhor.

Numa noite, encontrei-os na Secretaria depois do expediente. A conversa que era para durar 15 minutos, terminou à meia-noite. Ouvi histórias cinematográficas, relatos de heroísmo de funcionários anônimos, de revoltas sangrentas, de corrupção miúda paga com maços de cigarro, de como uma facção criminosa se impôs na esteira do massacre do Carandiru e das providências para controlá-la dentro e fora do sistema, num jogo de gato e rato em que o menor deslize pode ser fatal.

Lamento não termos gravado. Teríamos um testemunho histórico de dois homens experientes, que acompanharam de perto a evolução do sistema penitenciário nos últimos 40 anos.

Fiquei impressionado com as manifestações de tristeza que seu falecimento provocou entre os funcionários que trabalharam sob seu comando, dos mais humildes aos mais graduados.

Dr. Walter se retira aos 73 anos, da forma discreta como viveu e serviu à sociedade.

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