O Brasil corre o risco de ter de volta uma doença erradicada que castigou gerações: a poliomielite. Leia no artigo do dr. Drauzio Varella.
Às vezes parece que o mundo anda para trás. Do nada, surge uma pandemia que nos faz reviver os dias mais duros da gripe espanhola, de cem anos atrás. Doenças infecciosas novas não param de emergir, enquanto as que caminhavam para a extinção, ressurgem até nos países desenvolvidos.
A Organização Mundial da Saúde (OMS) considerou o sarampo erradicado do Brasil em 2016, época em que o Programa Nacional de Imunizações (PNI) conseguiu vacinar cerca de 95% das crianças. O problema é que outros países não fizeram o mesmo, e o vírus permaneceu à espreita; bastou caírem os índices de vacinação entre nós, para contra-atacar. Foram mais de 8 mil diagnósticos apenas no ano de 2020.
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Em 1989, uma criança teve poliomielite na Paraíba. Foi o último caso. Em 1994, a OMS conferiu ao Brasil o certificado de erradicação da doença.
A pretensão de erradicar a paralisia infantil do mundo, como fizemos com a varíola, no entanto, foi frustrada pela persistência do vírus na Nigéria e na conflagrada fronteira entre Afeganistão e Paquistão.
Como insistem os epidemiologistas, enquanto uma doença transmissível existir em algum canto do mundo, nenhum país estará seguro. Assim aconteceu: quando menos esperávamos, surgiu um caso em Israel, outro nos Estados Unidos, além do isolamento do vírus no esgoto de Londres e de Nova York. Com os índices de vacinação em queda livre entre nós, voltamos a correr o perigo.
A poliomielite é causada por um vírus (poliovírus) que se instala no sistema nervoso. É uma doença altamente contagiosa, que costuma incidir em crianças com menos de 5 anos, 70% das quais não desenvolverão qualquer sintoma. Dois a cinco dias depois de adquirir o vírus, apenas 25% apresentarão febre, cefaleia, dores no corpo, dor de garganta, náuseas, vômitos e diarreia. Em 1% a 5%, surgirá nessa fase um quadro de meningite viral, de evolução variável.
Tipicamente uma a três semanas depois de contrair o vírus, cerca de cinco em cada mil infectados apresentarão fraqueza muscular e paralisia que poderá acometer os músculos dos membros, da respiração, da deglutição e da fala. Esse quadro inicial, eventualmente, evolui com sequelas motoras irreversíveis, insuficiência respiratória aguda ou morte.
O vírus é transmitido com facilidade através do contato interpessoal. A porta de entrada é a boca. Ele permanece na garganta por uma a duas semanas. Depois de se multiplicar nos intestinos, é expelido nas fezes durante três a seis semanas, mesmo que o portador não apresente sintomas.
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Embora esteja presente na saliva e nas gotículas eliminadas ao falar, tossir e espirrar, a principal forma de transmissão é por meio do contato direto com as fezes, alimentos, ou água contaminada por elas.
Correm risco de contrair o vírus aqueles que não foram vacinados e os que não completaram o esquema vacinal, especialmente quando vivem ou viajam para áreas com saneamento precário.
O diagnóstico de certeza é feito pelo isolamento do vírus nas fezes. Testes genéticos permitem identificar o tipo de poliovírus e de que região geográfica é originário. Não existe tratamento específico.
Nos últimos anos, foi descrita a síndrome pós-pólio. Trata-se de uma condição não infecciosa que se instala 15 a 40 anos depois da infecção inicial. É caracterizada por fraqueza nos músculos comprometidos pelas sequelas, dores articulares, fadiga física e mental. Quantas mulheres e homens com sintomas desse tipo, instalados décadas depois da paralisia, padeceram sem que a medicina fosse capaz de identificar a causa?
Em minha infância, convivi com crianças que apresentavam sequelas de poliomielite. Andavam com próteses rígidas, que emitiam sons metálicos a cada passo na sala de aula. Para jogar bola na calçada com a gente, só eram escalados como goleiros, ainda assim por condescendência. As meninas entravam em crise ao chegar à puberdade.
No curso médico, tínhamos aula na enfermaria dos pulmões de aço, aparelhos em forma de tubo, no interior dos quais a criança permanecia deitada, só com a cabeça de fora, enquanto um tipo de fole movido a eletricidade, aumentava a pressão no interior do tubo para expulsar o ar dos pulmões, para em seguida diminui-la e expandir a caixa torácica. Muitos passavam o resto dos dias enclausurados nessas máquinas.
Vamos deixar que essas tragédias se repitam?