O país conta com apenas metade dos equipamentos necessários para atender a sua demanda. Isso resulta em 5 mil mortes diretas por falta de acesso à radioterapia.
A radioterapia é considerada um dos pilares do tratamento contra o câncer, já que até 70% dos casos se beneficiam desse procedimento. A radiação tem o papel de destruir ou incapacitar a multiplicação das células cancerosas no organismo e brecar a propagação do câncer. Essas radiações não são vistas a olho nu, e o paciente não sente nada durante a aplicação. A partir do tipo de tumor, o radio-oncologista estabelece o período de tratamento e a dosagem que aquele paciente deve receber.
Embora nem todo câncer deva ser tratado com radioterapia (como alguns tumores de próstata, etc.), ela é o tratamento central ou coadjuvante de outros tratamentos, como quimioterapia, cirurgia, imunoterapia, entre tantas outras possibilidades, em inúmeros casos.
A grande questão é que ela ainda não é uma opção de tratamento para uma boa parcela dos brasileiros, segundo o censo de 2018 do Ministério da Saúde, que mostrou que o Brasil conta com apenas metade dos equipamentos necessários para atender a sua demanda. Isso resulta em 5 mil mortes diretas por falta de acesso à radioterapia – embora não seja possível garantir que todos os pacientes sobrevivessem com o método.
Segundo a Sociedade Brasileira de Radioterapia (SBRT), que organizou em parceria com a Fundação Dom Cabral um relatório intitulado Projeto RT 2030, existe um total de 363 aparelhos disponíveis no país, mas 162 dessas máquinas já estão obsoletas e necessitam de troca.
“Normalmente, a vida útil desses aparelhos é de cerca de 15 anos. Só que, pelo nosso levantamento, ao menos 30 das máquinas que estão em operação no país têm mais de 30 anos de uso. Em 2030, mais de 50% das máquinas estarão fora de uso. Ao mesmo tempo, teremos um aumento de casos de câncer no Brasil, o que tornaria necessário adquirir 530 novos equipamentos”, contextualiza o médico radioterapeuta Bruno da Costa Resende, da SBRT.
Apagão radioterápico
Há quase 8 anos, eu já havia escrito sobre a situação da radioterapia no país, com base no relatório do Tribunal de Contas da União de 2011. Segundo o documento, o tempo médio de espera entre o resultado do diagnóstico e o início do tratamento radioterápico chegava a quatro meses.
“Não temos informações atualizadas sobre esse período para o início do tratamento, mas sabemos que na prática pouca coisa mudou, apesar da lei dos 60 dias (lei de 2013 que garante ao paciente com câncer o direito de iniciar o tratamento no SUS em até 60 dias a partir da assinatura do laudo patológico)”, lamenta Bruno Resende.
Na época, os estados de Roraima, Acre e Amapá não tinham uma máquina sequer, e os habitantes precisavam se deslocar mais de mil quilômetros para conseguir acesso radioterápico.
Hoje, 11 anos depois, não existiram mudanças nesse cenário. Ainda segundo o relatório do projeto RT 2030, além do apagão do tratamento oncológico em alguns estados por falta de máquinas, há também uma má distribuição da aparelhagem, que acaba ficando restrita a ilhas de excelência (unidades médicas de referência). Sem contar que há um déficit de recursos humanos na área, com falta de físicos, médicos, técnicos e dosimetristas, principalmente em regiões do país mais distantes dos grandes centros. Tudo isso apenas gera mais gargalo no acesso ao tratamento.
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Desigualdade no acesso
Na região da Av. Paulista, na cidade de São Paulo, por exemplo, há mais máquinas e acesso a tratamentos que o estado do Amazonas, com quatro máquinas e 4 milhões de habitantes. A Organização Mundial da Saúde (OMS) recomenda uma máquina para cada 450 mil habitantes. Basta fazer as contas: enquanto nas regiões Sul e Sudeste o índice fica em torno de 2,3 aparelhos para cada milhão de pessoas, no Norte esse número sequer chega a 1.
A empregada doméstica Noely Miranda, 39 anos, natural de Caxingó, cidade de 5 mil habitantes no interior do Piauí, conta que descobriu um câncer de cabeça e pescoço em fevereiro deste ano. Por conta da demora, pegou a filha mais nova e veio de ônibus para São Paulo em busca de tratamento. Passou numa unidade básica de saúde no extremo leste de São Paulo (precisou ficar de favor na casa da tia que mora em Guaianazes) e, depois de 45 dias, conseguiu encaminhamento e iniciou tratamento no Hospital Santa Marcelina, em Itaquera.
“Foi uma luta, mas deu certo, e ainda bem que não precisou de cirurgia. Tenho que vir fazer as sessões quase todos os dias, então é puxado, mas já está quase no fim. Quando tiver alta, volto pra Caxingó pra trazer minha filha mais velha e ficar aqui de vez”, diz ela.
Qual a perspectiva da radioterapia no Brasil?
O estudo RT 2030 estima 640 mil novos casos de câncer para 2030 (exceto casos de câncer de pele não melanoma), o que significa que 332 mil pacientes necessitarão de radioterapia. É preciso que Ministério da Saúde e gestores façam um planejamento adequado para evitar um colapso no tratamento, já que mais de 70% da população depende do SUS.
“O ministro da Saúde conhece esses dados. Desde a época do [ex-ministro da Saúde Luiz Henrique] Mandetta e agora com o [atual ministro da Saúde Marcelo] Queiroga, estamos realizando audiências para mostrar o apagão de acesso. Não é novidade pra eles, mas é preciso que se mobilizem logo”, finaliza o médico Bruno Resende.
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