A melhora do dr. Sérgio dependia do amor, o qual ele encontrou não encontrou em seu casamento, mas na sala de espera de uma consulta.
Em seu livro Por Um Fio, o dr. Drauzio conta a história de um ex-paciente chamado Sérgio. Tímido e reservado, ele era casado há anos com dona Margarete, ouvindo calado o desprezo dos sogros que contaminara também a esposa e os filhos. Aos 60 anos, descobriu um tumor no reto e, depois da cirurgia, descobriu que teria que viver o resto da vida com o intestino exteriorizado.
A notícia fez com que ficasse deprimido e se isolasse. Nas consultas de rotina, dona Margarete falava por ele, sempre carregada de pessimismo sobre a saúde do marido. Certo dia, porém, ele foi sozinho e o brilho em seu olhar era como o de um adolescente apaixonado. Ouça neste episódio de Outras Histórias.
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Eu vou ler pra vocês uma história que no meu livro Por um Fio que eu chamei de Dr. Sérgio.
Dr. Sérgio vinha pras consultas de gravata, terno cinza, semblante carregado e trazia um livro de engenharia pra ler na sala de espera. Era de poucas palavras. Dona Margareth falava pelos dois.
Um dia ele me contou que a havia conhecido quando eram jovens num clube tradicional, fundado pelos bisavós dela, no qual ele havia sido admitido como sócio militante do departamento de voleibol. Descendentes de cafeicultores paulistas, os pais dela, nessa época com menos posses do que relações sociais, sonhavam com um rapaz de família ilustre para a filha única e não viram com bons olhos o namoro com aquele estudante de engenharia, tímido e pobretão. Só se conformaram com o casamento diante da insistência voluntariosa da moça.
A resistência dos sogros foi insensível às virtudes do rapaz. Mesmo depois que uma sucessão de negócios mal planejados os tornou dependentes do genro, competente e trabalhador, eles ainda o olhavam com superioridade. Quando o sogro morreu, a sogra se instalou na residência do casal. A dependência financeira, a obesidade e a artrite reumatoide não abalaram a soberba da velha senhora. De bengala pela casa, era ela a rainha do lar. O Dr. Sérgio, o súdito encarregado de prover as necessidades familiares.
Com o tempo, o desprezo calado dos pais contaminou o espírito da filha. Não que dona Margareth desrespeitasse o marido. Educada para o casamento como aspiração máxima da condição feminina, ela nem sequer imaginava a vida diferente, mas mantinha com ele a cordialidade apática das mulheres resignadas ao destino adverso.
O casal teve dois filhos, que, aos 30 anos, não ganhavam para seu próprio sustento. Influenciados pela delicadeza hostil da mãe e pela postura depreciativa dos avós, os rapazes cresceram indiferentes à figura paterna. O pai era um engenheiro honesto, mantenedor. Fora disso, nada que fizesse ou dissesse parecia interessar-lhes.
Na manhã de domingo em que completou 60 anos, Dr. Sérgio percebeu, ao puxar a descarga, que havia sangue no vaso. Trinta dias depois foi operado de um tumor no reto. Quando voltou da anestesia, soube que a cirurgiã tinha feito a amputação do reto e uma colostomia definitiva. Passaria o resto da vida com o intestino exteriorizado num orifício aberto na parede abdominal. Recebeu a notícia em silêncio absoluto. Pediu apenas que proibissem visitas. Recatado, cuidadoso com o corpo desde criança, no primeiro instante, pensou seriamente em dar cabo de tudo. Mas não o fez. A profissão o havia acostumado à racionalidade.
Na primeira consulta, apertou minha mão com timidez. Seu rosto era a imagem da depressão. Nem bem começou a contar a história da enfermidade, transferiu de bom grado a incumbência à esposa, que o havia interrompido por um pormenor irrelevante. Dona Margareth não se fez de rogada, assumindo a responsabilidade do relato em seus mínimos detalhes. Enquanto falava, o olhar do marido fugia seguidamente na direção da janela.
Seis meses depois, numa consulta marcada em nome dele, a esposa veio sozinha. Esperava de mim alguma providência urgente, a família não aguentava mais seu estado depressivo. Com medo de um desatino, tinham até escondido as facas grandes da cozinha. Contou que, logo após a operação, Dr. Sérgio havia pedido pra dormir sozinho no quarto em cima da garagem, não queria incomodar ninguém nas noites de insônia. Em seguida, solicitou a aposentadoria como livre docente na universidade e transferiu as atividades profissionais do escritório para o mesmo quarto dos fundos, onde passava os dias debruçado sobre livros técnicos e projetos de grandes estruturas, sua especialidade. Não saía nem recebia visitas, parou até de descer para as refeições com a família.
Acompanhei durante anos a evolução de Dr. Sérgio, chegando ao consultório de terno cinza, com a esposa de cabelo armado, pronta para interrompê-lo e discordar de qualquer observação mais otimista que ele ousasse fazer a respeito da própria saúde. “Diz que está bem aqui pro senhor. Em casa, é o dia inteiro mudo, entre quatro paredes. Alguém consegue sarar assim?”
Quando as revisões médicas já eram mais espaçadas, foi a vez de ele vir sozinho à consulta. Não usava terno cinza nem gravata, vestia camisa azul clara e malha amarela. Sua expressão estava descontraída e os olhos tinham um frescor juvenil. Não parecia a mesma pessoa. No final do exame, disse-lhe que nunca o vira tão bem e perguntei a que se devia aquela mudança. Sorriu envergonhado como um adolescente. “Ao amor.” Tinha se separado de dona Margareth e estava vivendo com outra pessoa.
Seis meses antes, ele voltara à cirurgiã para uma revisão. Na sala de espera havia uma mulher de 50 anos, que sorriu quando os dois estenderam a mão simultaneamente para alcançar a mesma revista. Dr. Sérgio disse que foi o sorriso feminino mais encantador já dirigido a ele. Uma alegria instantânea ressuscitou em seu espírito. Na conversa que se seguiu, soube que ela era advogada, viúva e que ambos haviam sido operados na mesma semana pela mesma médica. “E o mais inacreditável”, disse ele, “a mesma cirurgia, doutor”.
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