Hemorroidas | Entrevista - Portal Drauzio Varella
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Câncer

Hemorroidas | Entrevista

Publicado em 04/08/2011
Revisado em 11/08/2020

Hemorroidas ocorrem quando as veias do canal anal se dilatam, produzindo desconforto, dor ou até sangramento. Saiba como é o tratamento das hemorroidas.

 

Hemorroida é uma inflamação das veias que se localizam na parte final do intestino, as veias hemorroidais. Ela pode ser interna ou externa e provoca alguns sintomas, entre eles, o sangramento, que não é manifestação exclusiva das hemorroidas e que pode ocorrer em algumas patologias graves como o câncer do reto.

Quem sofre de hemorroidas ouve com frequência sugestões de tratamentos bastante empíricos que, na verdade, podem agravar o quadro. Como se trata de um problema considerado constrangedor por muitos de seus portadores e cercado por uma série de mitos, seguir as receitas ditas infalíveis dos vizinhos, amigos e comadres, no mínimo, atrasa o diagnóstico que deve ser feito por um especialista da área.

 

HEMORROIDAS INTERNAS E EXTERNAS

 

Drauzio – Anatomicamente, o que são as hemorroidas?

Desidério Kiss – Hemorroidas são uma dilatação das veias que ficam no canal anal. A figura 1 mostra um corte longitudinal do reto. Na parte inferior, localiza-se a borda anal ou ânus e logo acima aparecem veias que, quando se dilatam, formam as varizes hemorroidárias.

 

Drauzio – Qual a diferença entre hemorroidas internas e externas?

Desidério Kiss – Hemorroidas externas são dilatações das veias que estão fora do ânus. Embora visíveis na borda anal, em geral, não constituem uma doença e não provocam sintomas. As hemorroidas internas surgem cerca de 1,5cm a 2cm debaixo da mucosa que reveste internamente o canal anal e o reto logo acima do ânus.

Vale lembrar que existe a tendência perigosa de rotular como hemorroidas as centenas de patologias que podem ocorrer na região anal, o que pode levar a consequências catastróficas. Classificar como problema hemorroidário qualquer saliência, verruga ou bolinha de sangue que apareçam no ânus pode deixar sem diagnóstico e tratamento um tumor maligno, por exemplo.

Cair no erro da automedicação é outro perigo. O diagnóstico de hemorroidas é pré-requisito básico e deve ser feito por médicos, de preferência por especialistas na área, já que doenças muito mais graves podem instalar-se no ânus e colocar em risco a vida do paciente.

 

Drauzio – Não são raros os casos de câncer no intestino em que a pessoa sangra continuamente e atribui o sangramento a hemorroidas que não existem.

Desidério Kiss – Essa é a mensagem central que gostaria de deixar aqui. A incidência de câncer colorretal está crescendo muito em nosso meio. No estágio inicial, o câncer de intestino pode provocar sangramento parecido com o das hemorroidas. Se o paciente se automedicar, no caso das hemorroidas, que é uma doença benigna, vai camuflar o problema e aumentar seu sofrimento. Em se tratando de câncer, porém, é provável que esteja perdendo a possibilidade de cura.

 

CAUSAS DAS HEMORROIDAS

 

Drauzio – Como se formam as hemorroidas?

Desidério Kiss – Hemorroida é uma patologia vulgar e frequente, mas o homem, que já conquistou a Lua e domina sofisticadas tecnologias, ainda não descobriu o que provoca essa doença. Muito se tem pesquisado e a causa exata continua desconhecida.

Há quem erroneamente atribua seu aparecimento ao tipo de alimentação. Nem mesmo a pimenta, apesar da fama de ser um fator desencadeante, é responsável pela origem do problema. Se não fosse assim, todos os baianos, caribenhos e indianos teriam hemorroidas, porque abusam das comidas apimentadas. No entanto, se o quadro já estiver instalado, comer pimenta irrita as veias hemorroidárias que podem sangrar.

Hemorroidas também nada têm a ver com a posição. No passado, era comum atribuir sua incidência ao fato de a pessoa ficar muito tempo em pé. Depois, apareceram os que se preocupam, porque ficam longos períodos sentados. “Dr., passo sentado o dia inteirinho. Será que por isso vou ter hemorroidas?” é uma pergunta frequente nos consultórios. Permanecer sentado ou em pé não causa hemorroidas.

Discutiu-se, ainda, se a pressão da cabeça do feto durante a gravidez podia causar hemorroidas na mãe, porque sua incidência é comum especialmente no último trimestre da gestação e no puerpério imediato. Todavia, a explicação científica para isso é que a gravidez apenas desencadeia ou piora um problema já instalado. Atualmente se levanta a hipótese de que a fraqueza dos tecidos de sustentação do canal anal permite que as hemorroidas deslizem para fora do ânus.

 

Drauzio – Um professor da faculdade dizia que a pior coisa para hemorroidas era o jornal de domingo lido no banheiro. Até onde isso é mito ou realidade?

Desidério Kiss – Ler o jornal ou qualquer outra publicação no banheiro não é prejudicial. O que prejudica mesmo é o esforço para evacuar. Provavelmente, quem fica muito tempo sentado no vaso sanitário é constipado, ou seja, tem fezes endurecidas, ressecadas, faz força para evacuar e isso agrava o quadro hemorroidário.

Durante muitos anos, participei de um programa de check-up, que previa a realização de um exame chamado anuscopia, e detectamos que, aos 30 anos, de 30% a 40% das pessoas têm hemorroidas visíveis. Levantou-se, então, a pergunta se hemorroidas não seriam um componente normal do organismo e apenas os sintomas refletiriam um estado patológico desencadeado por fatores ainda não determinados.

 

IMPORTÂNCIA DO DIAGNÓSTICO

 

Drauzio — Ao examinar uma pessoa, até que ponto você considera as veias existentes no ânus um achado ocasional sem nenhuma relevância ou hemorroidas que precisam ser acompanhadas?

Desidério Kiss – Há a tendência popular de considerar hemorroidas todas as anomalias que possam ocorrer no ânus. A pessoa tem prurido anal, um sintoma bastante comum, provocado às vezes por vermes, e acha que está com hemorroidas. Se o diagnóstico for feito por alguém que não teve formação proctológica adequada e forem encontradas hemorroidas assintomáticas, a coceira será atribuída a elas e o profissional terá cometido um erro de nexo e causa. Muitas vezes, o paciente chega a ser operado, a coceira não desaparece, o que é um desprestígio para a cirurgia e a medicina de modo geral.

O diagnóstico depende basicamente dos sintomas. Medicina é a arte de interpretar o que a pessoa conta e suas queixas. O médico que não conversa bastante com o paciente seguramente vai errar, você não acha?

 

Drauzio – Mesmo prestando muita atenção no paciente, a gente ainda pode errar.

 

GRAUS DA DOENÇA

 

Drauzio — Qual é a aparência das hemorroidas que exigem cuidado?

Desidério Kiss – São as hemorroidas grandes e internas. As externas não são consideradas doença, a não ser quando inflamam, uma eventualidade pouco comum, no entanto.

Sob o ponto de vista clínico, as hemorroidas internas estão divididas em graus de gravidade. As de primeiro grau só apresentam sangramento. As de segundo grau se exteriorizam quando a pessoa faz esforço para evacuar, mas se recolhem espontaneamente quando o esforço cessa. As de terceiro grau surgem com o esforço para evacuação, não se recolhem sozinhas e têm de ser colocadas de volta no lugar por meio de manobras digitais. Às vezes, por causa de qualquer esforço físico moderado, como uma caminhada, uma pequena corrida ou um passo em falso, elas se exteriorizam e precisam ser empurradas para dentro do canal anal. Não é difícil imaginar o inconveniente social que isso representa.

As de quarto grau estão permanentemente expostas. Essas eliminam secreção, sujam a roupa, irritam a pele, sangram. Por fim, uma complicação aguda do quadro – a trombose hemorroidal – caracteriza-se por ser um evento extremamente doloroso provocado pelo entupimento de um vaso e que acomete gestantes com alguma frequência.

 

Drauzio – Ninguém tem o hábito de olhar o próprio ânus. Muitas mulheres passam a vida sem ter visto a própria vagina. Esses orifícios fazem parte do nosso corpo e precisamos examiná-los de vez em quando. Como uma pessoa pode identificar as hemorroidas?

Desidério Kiss – A não ser no pós-operatório, raramente as pessoas vão ao médico e dizem que viram alguma coisa estranha no ânus. Normalmente, relatam que sentiram uma protuberância, um nódulo ou uma bolinha quando apalparam a região durante o banho. O mais importante, porém, em caso de suspeita de que alguma coisa estranha esteja ocorrendo na região anal, é procurar serviço médico para diagnóstico e tratamento.

 

DIETA E HIGIENE LOCAL RECOMENDADAS

 

Drauzio – Você diz que comer pimenta e ficar muito tempo sentado ou em pé não provocam hemorroidas e que o esforço para evacuar agrava o quadro, embora provavelmente não seja a causa primeira do problema. Para uma pessoa que tenha hemorroidas de primeiro grau, que dieta você recomenda para não piorar a doença?

Desidério Kiss — A dieta básica deve ser rica em fibras, em resíduos que promovam o bom funcionamento do intestino. Em geral, ingerir cereais, frutas e verduras é suficiente para os casos leves e iniciais, pois as hemorroidas de primeiro grau estão associadas à constipação intestinal e fazer força para evacuar fezes endurecidas acaba traumatizando as veias do ânus. Evitar substâncias irritantes, como pimenta e álcool em excesso, também é recomendável.

 

Drauzio – Quais os cuidados em relação à higiene local, ao uso de papel higiênico e banhos de assento você costuma indicar para as pessoas que têm hemorroidas?

Desidério Kiss Não existe uma correlação de causa entre o papel higiênico e as hemorroidas. Se forem internas, seu uso não é contraindicado. Se são externas, as de quarto grau principalmente, ele não deve ser usado para não traumatizar mais ainda a área. Nesse caso, deve ser substituído pelos banhos de assento.

Entretanto, o cuidado fundamental diante de algum sintoma que possa ser atribuído a essa doença é procurar um médico para fazer o diagnóstico correto e não se automedicar.

 

LIGADURA ELÁSTICA

 

Drauzio – Quais os tipos de tratamento que existem para as hemorroidas?

Desidério Kiss – Para as hemorroidas de primeiro grau, o tratamento é clínico. Atualmente, existe um método que se chama ligadura elástica que pode ser utilizado nas de primeiro e segundo grau. É um método geralmente indolor ou com pouca dor, que não demanda internação hospitalar nem anestesia.

 

Drauzio – Em que consiste esse método?

Desidério Kiss – Por meio de um dispositivo semelhante a um pequeno revólver é disparado um anelzinho de borracha para estrangular a hemorroida que, em 24 ou 48 horas, necrosa e cai. Em geral, o paciente não sente dor ou sente pouca dor. Nunca podemos afiançar, porém, que o procedimento será completamente indolor porque em alguns casos a dor é intensa, às vezes comparável com a do método cirúrgico, necessitando de medicamentos para controlá-la. Sabe como é, em Medicina não existe “nunca” nem “sempre”. Entretanto, se a intervenção for feita de maneira correta, a tendência é não haver dor.

Para as hemorroidas de terceiro e quarto grau, o tratamento é fundamentalmente cirúrgico. Vale lembrar que, no Brasil, há aproximadamente três anos, estamos adotando o método do grampeamento, uma técnica cirúrgica introduzida na Itália, em 1998. Fazemos parte de um grupo que realiza um estudo a respeito dessa experiência em toda a América Latina e os resultados têm-se mostrando realmente bons. Na média, o grampeamento provoca menos dor do que a cirurgia convencional.

 

GRAMPEAMENTO

 

Drauzio – Como é feito esse grampeamento?

Desidério Kiss – O grampeamento é um método cirúrgico. Um aparelho é introduzido no ânus do paciente e retira-se uma faixa da mucosa. Na verdade, não se mexe nas hemorroidas. Elas são puxadas para cima, recolocadas no seu devido lugar e, com o tempo, acabam regredindo.

Para fazer o grampeamento, o paciente precisa ser internado e tomar anestesia. Trata-se de uma técnica interessante, porque não há incisão na pele, geralmente, o que costuma provocar dor.

 

Drauzio – Que complicações costumam ocorrer?

Desidério Kiss  – Como qualquer método, esse também está sujeito a algumas complicações, mas elas não são superponíveis às de outras técnicas cirúrgicas. Na verdade, trata-se de um método já consagrado. Só na Europa existem de 100 a 150 mil casos de pacientes operados por essa técnica e a experiência latino-americana inclui entre 1500 e 2000 cirurgias.

 

Drauzio – É um método que requer profissionais habilitados e experientes, não é?

Desidério Kiss – Isso é fundamental. É um método que tem curva de aprendizado e precisa ser bem treinado. A operação é aparentemente simples, mas o cirurgião precisa acompanhar um colega que já esteja habilitado em pelo menos uma dúzia de casos antes de operar sozinho. Embora seja um recurso terapêutico atraente, não serve para todos os tipos de hemorroidas.

 

Drauzio — Quais são suas indicações mais precisas?

Desidério Kiss – O grampeamento é indicado para hemorroidas externas e grandes de segundo e terceiro grau. Não pode haver plicomas, isto é, dobras da pele que se formam junto ao ânus e que, em 99% dos casos, são confundidos com hemorroidas. Esses plicomas não são doença e se formam com certa frequência nas mulheres depois da gravidez.

 

CIRURGIA CLÁSSICA

 

Drauzio – Como é feita a cirurgia clássica da hemorroidas?

Desidério Kiss – Existem muitas técnicas. Uma das mais empregadas em nosso meio foi descrita por dois médicos ingleses por volta de 1930 e consiste em retirar as hemorroidas e deixar a ferida resultante aberta para cicatrizar.

O objetivo da cirurgia para o médico é tirar as hemorroidas. Para o paciente é livrar-se delas e não sentir dor. Suturar a ferida foi a proposta para enfrentar esse duplo desafio e desenvolveu-se o método fechado. Acreditava-se que, suturando a ferida, a dor seria menor. Não é verdade. Se considerarmos as dezenas de técnicas operatórias existentes e fizermos uma curva estatística, a conclusão será a seguinte: 10% dos pacientes não sentem dor nenhuma quer a ferida seja mantida aberta ou fechada; 10% sentem muita dor e precisam de medicamentos potentes. Os 80% restantes ficam na faixa intermediária em que a dor é igual à de qualquer outro pós-operatório e pode ser contornada com antiinflamatórios e analgésicos.

Na verdade, tudo na vida tem um preço. No caso das hemorroidas, é sentir um pouco de dor para livrar-se delas. Se a operação for bem indicada e bem feita, o paciente se sentirá extremamente gratificado com a cirurgia. Imagine uma pessoa com hemorroidas de terceiro ou quarto grau que tem medo de ir a casa de um amigo porque pode sangrar e sujar a roupa. Transponha isso para um restaurante, um cinema ou para o ambiente de trabalho e veja como problema acaba afetando toda a vida do indivíduo.

 

Drauzio – Uma coisa difícil de entender é por que se deixa a ferida aberta num lugar que infecta com tanta facilidade. Você poderia explicar por que se adota essa conduta?

Desidério Kiss – Realmente é um paradoxo. Em Medicina, muita coisa não se consegue explicar. Durante décadas, pensou-se que suturar a ferida poderia causar infecção e que com ela aberta isso não aconteceria. Eu prefiro o método aberto, mas há grandes especialistas, como a Dra. Angelita Gama, que usam o método fechado. Uma coisa é certa. Já se sabe que os índices de infecção são comparáveis nos dois métodos.

O mais importante, porém, é o médico eleger uma determinada técnica, aprimorar-se nela e estar apto para fazer variações quando o caso assim o exigir. Uma intervenção indolor é ainda uma promessa utópica. A maioria dos pacientes vai sentir um pouco de dor absolutamente contornável com os analgésicos e anti-inflamatórios.

 

ORIENTAÇÃO IMPORTANTE

 

Drauzio – Que conselhos você daria para as pessoas que têm hemorroidas?

Desidério Kiss – A orientação mais importante é buscar um diagnóstico correto. Estou sendo repetitivo ao insistir nisso, mas é fundamental descartar a hipótese de que uma doença mais grave esteja sendo camuflada sob o rótulo de hemorroidas.

Feito o diagnóstico de hemorroidas, o ideal é adotar uma dieta saudável, rica em resíduos (verduras, frutas, cereais e líquidos) e evitar alimentos  irritantes. Em relação ao banho de assento, preconiza-se que deva ser feito com água morna. O papel higiênico apenas não deve ser usado se as hemorroidas estão exteriorizadas.

 

Drauzio – E as pomadas são úteis?

Desidério Kiss — São úteis nos casos iniciais. Trazem alívio temporário dos sintomas, mas representam um paliativo. Numa comparação grosseira, hemorroidas são como varizes e as pomadas não fazem a dilatação das veias regredir. Via de regra, elas seguem seu curso natural, vão aumentando, dilatando até que só um tratamento mais agressivo resolve o problema.

 

TROMBOSE HEMORROIDÁRIA

 

Drauzio – O que é trombose hemorroidária e como deve ser tratada?

Desidério Kiss – A trombose hemorroidária é o entupimento de um vaso que se exterioriza, não se recolhe mais, incha, fica entumecido e edemaciado e provoca dor violenta. Diante desse quadro, é fundamental não tentar reintroduzir as hemorroidas no ânus. Esse tipo de manobra agrava o problema. Infelizmente, muitas vezes esses casos agudos não caem nas mãos de especialistas.

Como tudo na vida, em medicina as verdades são transitórias. Antigamente se acreditava que trombose hemorroidária não deveria ser operada na fase aguda. O paciente era posto em repouso, usava pomadas, analgésicos, antiinflamatórios e esperava três ou quatro dias, pois o quadro podia regredir. Depois, veio a corrente da qual fiz parte e que pregava a indicação da cirurgia imediata. Hoje, a experiência mostra que cada caso deve ser analisado isolada e individualmente. Há aqueles em que o melhor é optar pela intervenção sem perda de tempo, aqueles em que é melhor esperar 24 ou 48 horas e aqueles em que o paciente fica de repouso por três dias e, se a crise não regredir, recorre-se à cirurgia.

Os médicos precisam ter humildade para reconhecer suas limitações. Precisam entender o paciente e saber individualizar o tratamento, porque não somos donos da verdade.

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