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Artigo do Drauzio Varella

Seu Araújo, um carcereiro experiente

close em mãos de detento do Carandiru segurando as grades
Publicado em 31/03/2025
Revisado em 31/03/2025

Seu Araújo era carcereiro experiente no Carandiru, quando o dr. Drauzio começou seu trabalho no local. Leia neste artigo.

 

Seu Araújo já era carcereiro experiente quando o conheci no Carandiru, em 1989. Tinha o ritmo da fala e a sabedoria de preto velho dos terreiros de candomblé. Foi amizade à primeira vista.

No início, fiquei em dúvida se o ar simplório lhe era espontâneo ou cultivado com requinte profissional, para esconder a sagacidade com que observava o ambiente e o interlocutor.

Veja também: Massacre do Carandiru: o que aconteceu horas antes da rebelião

Morava no Tatuapé, num terreno dividido com as casinhas dos irmãos. A dele ficava nos fundos, acessível por uma escada ao lado de um canteiro com avencas, antúrios e folhagens coloridas. Na parede, vasos de samambaias e costelas-de-adão cuidadas com o carinho de quem começara a vida como jardineiro.

Todos os anos, seu Araújo convidava os colegas de trabalho para uma festa junina em casa. Incrível caber tanta gente em espaço tão exíguo. Num dos anos, não pude ir. Na segunda-feira, encontrei-o no pátio da cadeia. Com brilho nos olhos, descreveu a reunião que havia terminado às duas da madrugada. Perguntei se tinha ficado feliz:

— Doutor, sabendo levar, a vida é uma festa.

Provações não lhe haviam faltado, entretanto. Aos 35 anos, dois de seus meninos mais novos morreram de pneumonia, quase ao mesmo tempo; um tinha seis anos e o outro, três. Um mês depois, o filho mais velho, que acabara de completar 12 anos, brincava com uma bola no quintal quando caiu desacordado. Faleceu naquela madrugada.

No dia 2 de outubro de 1992, chegou à cadeia às 7h50 para assumir a chefia do Pavilhão Oito, que recebia os condenados reincidentes. Ao passar pela portaria, o colega recomendou que ficasse esperto: havia um “probleminha” no Nove.

O probleminha deu origem à maior tragédia da história dos presídios brasileiros. Uma briga entre duas quadrilhas provocou uma rebelião que incendiou colchões e levantou barricadas.

Nunca imaginei ver sangue puxado com rodo.

No Oito, seu Araújo reuniu os 12 funcionários que vigiavam desarmados os 1.756 presos. Decidiram ser mais prudente recolher os homens dispersos pelo campo de futebol. Caso os reincidentes aderissem, o motim se espalharia pelo presídio inteiro, como havia acontecido em outra ocasião.

Com calma, foram explicando nas rodinhas que seria mais sensato irem para o pátio interno, porque a Tropa de Choque já entrara no presídio. Quando ouviram os primeiros estampidos, pediram que todos subissem para as galerias.

Soltos nos andares, os presos desentocaram as facas, não para operação suicida de agredir os policiais que invadem com cães e metralhadoras, mas para fazer frente a ataques de inimigos que porventura se aproveitassem da confusão.

Seu Araújo concluiu que a única alternativa seria trancar os homens, para deixar claro que não tinham aderido à rebelião.

Coube a ele subir para o quinto andar, o mais problemático da Detenção. Lá, encontrou centenas de presos encapuzados com facas nas mãos. Não foi fácil convencê-los de que seria melhor irem para a tranca, enquanto ele e os colegas montariam guarda junto ao portão que separava o Oito do Nove, para impedir que a PM invadisse o Oito para acertar contas com os marginais que tantos dissabores lhes causavam nas ruas:

— Vocês vão fugir e abandonar nós aqui dentro. Vamos morrer feito frango no poleiro.

Cercado pelas facas quase encostadas em seu corpo, ele insistia que podiam confiar, que os funcionários também correriam risco de morte se a PM entrasse. Todos falavam ao mesmo tempo, não havia lideranças com quem discutir.

Foi quando Cidão, bandido de longa folha corrida, subiu num banquinho:

— Vamos fazer como ele diz. Sou piolho de cadeia, nunca vi esse homem faltar com a palavra.

Trancaram todos e deixaram as chaves com o pessoal da Faxina de cada andar, os líderes do pavilhão. A cada hora, os carcereiros avisavam de cela em cela que, apesar do tiroteio ao lado, reinava a calma no Oito.

Por volta das 20h, as balas silenciaram. Quando deu 23h, ele e o colega Osmar foram até a rua:

— Era uma confusão de PM e viatura levando os corpos para o IML. Falei pro Osmar: “Já imaginou se tivessem invadido o Oito?”.

Tomaram duas cachaças no bar em frente. Na manhã seguinte, voltaram para ajudar na limpeza. Era dia de eleição.

— Nunca imaginei ver sangue puxado com rodo.

Sábado passado recebi um telefonema do filho de seu Araújo: o pai tinha acabado de falecer, aos 82 anos. Hemorragia cerebral, a mesma morte súbita que levara o filho de 12 anos enquanto jogava bola no quintal.

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