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Alimentação

DrauzioCast #65 | Intolerância à lactose

Thumbnail do DrauzioCast 65 sobre intolerância à lactose.
Publicado em 30/07/2019
Revisado em 23/03/2021

Você já sentiu algum desconforto ao ingerir leite? Ouça o podcast sobre intolerância à lactose.

 

 

 

A conversa de hoje é com o Dr. Paulo José Pereira de Campos Carvalho. O doutor Paulo é o médico-chefe do Serviço de Fisiologia Gastrointestinal do Hospital Albert Einstein, e nós vamos conversar com ele sobre um tema que é muito popular — e bem mal compreendido também —, que é a intolerância à lactose.

 

Drauzio – Então, vou começar fazendo a pergunta mais óbvia, Paulo: o que é lactose?

Dr. Paulo Carvalho – A lactose é o carboidrato do leite. O leite é um alimento muito completo e bastante importante para a alimentação da população em geral, e basicamente ele tem gordura, proteína e carboidrato; [é] o carboidrato [que] se chama lactose, [e] é um carboidrato complexo.

 

Drauzio – O que isso quer dizer?

Dr. Paulo Carvalho – Significa que é um carboidrato com uma cadeia grande, que o nosso organismo não consegue absorver se não houver a fragmentação [dele] em duas moléculas pequenas. A lactose é composta por uma molécula de glicose e outra de galactose.

Imagine o intestino como se fosse uma peneira fina, que só consegue absorver moléculas pequenas [e] a lactose é uma molécula grande…

 

Drauzio – Não passa na peneira.

Dr. Paulo Carvalho – Não passa na peneira. Então, no intestino nós temos uma enzima que vai fragmentar [a lactose] em duas moléculas — que seriam a glicose e a galactose — para [ela], então, ser absorvida.

 

Drauzio – Qual é a diferença entre intolerância à lactose e alergia ao leite?

Dr. Paulo Carvalho Alergia é alergia à proteína do leite; e a intolerância à lactose é a má absorção da lactose. Na verdade, a intolerância à lactose é uma síndrome, uma gama de sintomas desencadeados pela má absorção da lactose.

 

Drauzio – E quais são esses sintomas?

Dr. Paulo Carvalho – São sintomas muito comuns. Você pode ter diarréia, desconforto abdominal, a distensão abdominal, flatulência, gases e, às vezes, até constipação.

 

Drauzio – Os sintomas da alergia ao leite são, de alguma forma, parecidos. Há uma maneira de distinguir os sintomas quando [eles] vêm da alergia à proteína do leite e quando vêm da lactose?

Dr. Paulo Carvalho – Eles realmente são muito parecidos. A grande diferença é que a alergia ao leite tem uma incidência; começa na primeira infância e permanece constante ao longo da vida. [Já] a intolerância à lactose, não.  Nós nascemos [e] somos mamíferos, então, nos primeiros anos de vida, a intolerância à lactose é extremamente raro. O que acontece é que, com o crescimento, a nossa capacidade de digerir a lactose vai caindo. Nem um mamífero adulto mama, nem um mamífero adulto na natureza continua ingerindo leite depois de adulto.

 

Drauzio – Não seria por que eles não têm acesso ao leite?

Dr. Paulo Carvalho – Não é. É porque para cada carboidrato que absorvemos, ou para cada proteína, nós precisamos ter uma enzima específica. Que é uma química, que vai fragmentar, para que possa ser absorvido.

Conforme a gente vai introduzindo novos alimentos, a capacidade da lactose [ser absorvida] vai diminuindo. Então, ao longo da vida a produção de lactase — que é a enzima do nosso intestino — diminui e vão aparecendo as outras enzimas. É por isso que nos primeiros seis meses [de vida] a criança só mama e depois [é que se] vai introduzindo paulatinamente os outros alimentos [para ela].

Veja também: Quem é intolerante à lactose precisa cortar o leite?

 

Drauzio – O número de adultos que toma leite é enorme… São milhões e milhões de pessoas… Essas pessoas que tomam leite e não sentem nada têm essas enzimas, produzem a lactase?

Dr. Paulo Carvalho – Todos os mamíferos perdem a enzima ao longo da vida. A persistência da enzima no intestino foi um grau de evolução. Se a gente voltar a milhões de anos atrás, as populações eram [compostas por] coletores e caçadores. Quando conseguiu-se domesticar os mamíferos, principalmente cabras — os bovinos…

 

Drauzio – Há 10 mil anos atrás…

10 mil anos atrás… O que aconteceu? Algumas populações tiveram uma mutação genética que permitiria ingerir leite na fase adulta. Essa população teve mais chance de sobrevivência.

 

Dr. Paulo Carvalho – Portanto, deixaram mais descendentes?

Mais descendentes, que têm a capacidade de, na fase adulta, absorver a lactose. Agora, é importante dizer que em algumas populações 100% da população adulta não absorve lactose.

 

Drauzio – Por exemplo?

Dr. Paulo Carvalho – Os asiáticos. No Japão, China… Por quê? Porque não existia o rebanho, não foi domesticado. Quando nós pegamos os europeus [como exemplo], a maior parte dos seus descendentes produz a lactase e absorve o leite.

No continente africano, cerca de 30% da população produz a enzima. Ou seja, pode tomar leite. Então, aqui no Brasil — e isso é muito interessante, porque a nossa população é uma mistura de todas as raças —, dependendo da localização, nós temos uma população que tem 40~50% [de membros/pessoas] que não consegue absorver direito o leite, e em outras regiões, quase 100% [das pessoas] absorve o leite.

 

Drauzio – Mas aí você pega um país como o Japão, por exemplo. Você disse que os japoneses não têm lactase, não produzem [a enzima]…

Dr. Paulo Carvalho – Eles não comem e não tomam leite. O queijo lá é tofu, não é? É o queijo de soja, é o leite de soja.

 

Drauzio – E os descendentes de japoneses aqui no Brasil?

Dr. Paulo Carvalho – Eles têm intolerância. Quando você não tem a enzima, existe a necessidade de fazer suplementação enzimática.

Imagine uma criança de dois a três anos de idade. Ela toma um litro de leite por dia. Isso significa 10% do peso [total]. Se a gente transportasse isso para um adulto médio de 70 kg, isso [essa quantidade de leite] seria sete litros. Quer dizer, ninguém consegue tomar sete litros sem passar mal. Mesmo as pessoas que não absorvem a lactose ou que não têm a enzima conseguem metabolizar [apenas] em torno de 12 gramas de lactose por dia.

 

Drauzio – Isso corresponde a quanto em volume de leite?

Dr. Paulo Carvalho – Um copo de leite tem cerca de 15 gramas de lactose — um copo de leite integral.

Veja também: Tira-Dúvidas: Intolerância à lactose | Paulo Carvalho

 

Drauzio – Seria meio copo?

Dr. Paulo Carvalho – Um pouco menos de um copo.

Os queijos, nós temos os queijos brancos, [que] têm teor de lactose. Por exemplo, o requeijão tem 40% do [seu] peso em lactose. O leite em pó, por exemplo, tem 35% do [seu] volume em lactose. O leite integral é o que menos tem lactose.

 

Drauzio – E o desnatado?

Dr. Paulo Carvalho – O desnatado é o que tem mais, porque quando tira a gordura do leite, concentra o carboidrato.

 

Drauzio – Quanto por cento no leite?

Dr. Paulo Carvalho – O leite está variando de sete a 14%.

 

Drauzio – [É] bastante…

Dr. Paulo Carvalho – [É] bastante.

 

Drauzio – Quer dizer, se eu tomo um litro de leite por dia, tomei de sete a 14 gramas de lactose.

Dr. Paulo Carvalho – Existem uns lactobacilos que têm a capacidade de produzir a enzima bacteriana — a lactase, enzima que está faltando. Então, há pessoas que têm uma flora intestinal capaz de metabolizar a lactose não absorvida.

Por isso, a gente acredita que em média uma pessoa consiga (mesmo que não absorva) tomar um copo de leite ou comer uma fatia de queijo sem grandes sintomas.

A intolerância à lactose não é exclusivamente a má absorção da lactose, [mas] é uma gama de sintomas desencadeados pela ingestão da lactose. Assim, quando existe um equilíbrio entre flora bacteriana, lactobacilos e a dieta, a pessoa, mesmo que não absorva de maneira natural, pode não ter sintomas.

 

Drauzio – E quando os sintomas são graves, o que é que isso provoca?

Dr. Paulo Carvalho – Os sintomas são decorrentes da fermentação do carboidrato. Quer dizer, da produção de gás. Dessa forma, uma pessoa que não absorve lactose vai produzir uma grande quantidade de hidrogênio no intestino, metano e CO² [gás carbônico], além de acidificação de ácido — as fezes ficam ácidas.

Isso faz com que o intestino distenda — a pessoa sente aquela distensão abdominal, sente cólica intestinal importante —, muitas vezes seguido de uma diarréia.

E o que a gente também tem que lembrar [é] que as pessoas pensam em lactose só quando estão tomando leite, mas em grande parte dos nossos comprimidos existe a lactose como excipiente. Por exemplo, aqueles adoçantes de saquinho, alguns que têm aspartame — eles são dissolvidos em lactose.

Então, às vezes nós estamos tomando 10, 12, 13, 15 gramas de lactose ao longo do dia, sem ter tomado conta de que estamos tomando lactose, tentando evitar somente o leite.

Veja também: O que fazer se você for intolerante à lactose | Coluna #94

 

Drauzio – Toda pessoa que chega a você com queixa de desconforto abdominal, flatulência… Você sempre pensa em intolerância à lactose?

Dr. Paulo Carvalho – “A laço que a história e a clínica é muito importante” [00:09:27]. Então, o diário alimentar associado aos sintomas é como a gente faz o diagnóstico, a suspeição clínica, o diagnóstico clínico.

Um diário alimentar em que os pacientes falam “toda vez que eu faço ingestão de leite eu passo mal” dá uma grande suspeita da intolerância à lactose. O que a gente tem é que comprovar esse diagnóstico.

 

Drauzio – E como é que faz isso?

Dr. Paulo Carvalho – A maneira mais comum é o teste sanguíneo. Não é o melhor [método], mas é o mais disponível no Brasil. Nele, o paciente vai em jejum ao hospital, se dá uma carga de lactose — normalmente uma dose de 50 gramas — e mede-se a glicemia.

Então, se o paciente absorver a lactose, ele terá a enzima e vai absorver glicose e galactose. De modo que, medindo a glicose no sangue, se ela se elevar, significa que o paciente absorveu [a lactose]. É um exame interessante, mas ele tem uma série de falsos negativos e falsos positivos.

O teste de escolha é o teste de hidrogênio. É um exame muito simples, em que a gente mede o hidrogênio no ar expirado. O paciente vem [ao hospital] em jejum, toma uma carga pequena de lactose — 25 gramas; [e] isso a gente faz em qualquer faixa etária — e assopra numa máquina. Nessa máquina, a gente vai fazer a dosagem de hidrogênio.

Se o paciente absorver a lactose, a concentração de hidrogênio vai ser constante. Mas, se ele não absorver e tiver fermentação intestinal, ele produzirá hidrogênio no intestino, e daí, por difusão, cairá na circulação sanguínea e sairá no ar expirado.

Então, este é considerado o modo standard [ou seja, padrão]. Por quê? Primeiro porque o sintoma que gera no paciente são os gases, e a gente vai medir exatamente a produção de gases; e segundo, que dá para a gente diferenciar em dois tipos a intolerância à lactose — porque nós temos a intolerância à lactose pela falta da enzima, mas existe também a intolerância à lactose secundária.

 

Drauzio – O que é [a intolerância à lactose secundária]?

Dr. Paulo Carvalho – O trato digestivo alto — o estômago, o duodeno, o jejuno —, o intestino proximal é onde é feita a absorção dos carboidratos. E nesta localização do trato digestivo nós não temos bactérias, ou temos uma carga bacteriana muito pequena. Se, por alguma patologia, o paciente tiver um supercrescimento bacteriano nas porções proximais, ou seja, no intestino, a bactéria vai fermentar a lactose antes de ela ter sido absorvida — mesmo que [este paciente] tenha a enzima [lactase em seu organismo]. E a fermentação bacteriana é responsável pelos sintomas do paciente.

 

Drauzio – É, e o teste dá positivo.

Dr. Paulo Carvalho – O do sangue vai dar positivo, mas a gente não consegue separar. Porém, num teste de hidrogênio, nós conseguimos separar essas duas populações [a que tem intolerância à lactose por falta da enzima lactase e a que tem o tipo secundário, descrito acima].

Dessa forma, uma população tem intolerância primária — por falta de enzima —, e o tratamento é referente ao manejo dietético. Mas, [para] quem tem [intolerância à lactose] por supercrescimento bacteriano, o tratamento vai ser algum tipo de antibiótico-terapia de normalização da flora.

Por isso, é importante essa diferenciação, porque [para] uma [população o que é/vai ser indicado] é um tratamento de duas semanas e depois [a pessoa/o paciente] toma leite normal; e [para] o outro [grupo] vai ser um controle para o resto da vida.

 

Drauzio – Quem realmente tem intolerância à lactose [e] não produz [a enzima] lactase, não pode tomar leite de jeito nenhum? Retira-se o leite da dieta?

Dr. Paulo Carvalho – Até uns cinco, 10 anos, a conduta era: limitar a ingestão de leite e derivados. Mas o leite, hoje — e isso é um dado da Organização Mundial da Saúde (OMS) —, é o alimento mais completo e mais importante para a população em geral, porque é de baixo custo.

Então, é completamente contraindicada a limitação da ingestão do leite, porque ele tem cálcio — não é só lactose —, tem proteína, tem uma série de vitaminas… Assim, qual é o tratamento hoje? É fazer com que o paciente tome o leite normalmente e [consuma seus] derivados e faça uso de enzimas.

A lactase, que é a enzima que fragmenta o carboidrato, existe comercialmente. Portanto, a pessoa toma a enzima quando faz uso do derivado lácteo.

 

Drauzio – Não precisa fazer um tratamento constante?

Dr. Paulo Carvalho – Não. Toma só [a enzima]. “Vou tomar um copo de leite” e toma a pastilha junto.

 

Drauzio – E funciona?

Dr. Paulo Carvalho – Funciona. Os leites que a gente vê, produtos sem lactose… Eles tentam colocar a enzima no leite. O problema desses leites é que a enzima fica inativa depois de um certo período, e devido à temperatura da pasteurização ela perde a atividade.

Numa pessoa normal, em vida normal, [que] vai tomar um copo de leite, coloca-se a enzima, daí, no estômago, ela vai fazer a hidrólise — [que é] a separação da molécula de glicose e galactose — [e] quando chegar no [intestino] delgado será absorvida.

Veja também: Entenda por que intolerância à lactose causa desconforto abdominal | Infográfico

Drauzio – Se eu fico muitos anos sem tomar leite por alguma razão, mas eu produzo lactase normalmente, corre o risco de eu perder essa memória e parar de produzir a lactase?

Dr. Paulo Carvalho – As nossas enzimas digestivas são produzidas por demanda. Se você para completamente de fazer a ingestão, [consequentemente] vai cair a produção. Mas, se voltar a ingerir de maneira constante, a tendência é que volte.

É importante dizer que as pessoas não param para pensar, mas nós temos intolerância ao açúcar comum — à sacarose —, temos intolerância à frutose… Temos intolerância a todos os carboidratos.

Na doença celíaca — que é a “alergia ao glúten” — há uma destruição de toda a vilosidade intestinal, a saliência do intestino… Então, esses pacientes [com doença celíaca] têm uma intolerância à lactose, têm intolerância a quase todos os carboidratos, porque existe a destruição dessa peneira que lhe falei que faz absorção dos alimentos — [ou seja, destruição] do revestimento intestinal. Logo, também é uma intolerância secundária.

Quando a gente faz o diagnóstico de intolerância [à lactose] é importante a gente situar se é uma intolerância pura, por questões genéticas; se não é uma intolerância secundária, por alterações da flora; ou, às vezes, até uma doença imunológica, como a doença celíaca.

Por exemplo, [no caso do] paciente celíaco, você tira o glúten, existe aquela dessensibilização da mucosa intestinal, há, [a partir] daí, a recomposição da mucosa e o paciente volta a ingerir a lactose.

 

Drauzio – É, porque o leite não tem glúten.

Dr. Paulo Carvalho – Não tem glúten.

 

Drauzio – Paulo, você acha que uma pessoa que começa a tomar leite e tem sintomas de flatulência, cólicas, um desconforto abdominal, precisa necessariamente consultar um especialista?

Dr. Paulo Carvalho – Não, o médico generalista está habilitado para fazer este diagnóstico. Não é um diagnóstico difícil, acredito que é importante que o pediatra, o clínico geral… O próprio ginecologista é capaz de fazer o diagnóstico de intolerância à lactose.

Até pouco tempo atrás, se dava muito pouca importância a isso. Não é porque os médicos não sabiam, [mas] é porque nós não tínhamos no Brasil as enzimas nacionais. Então, a gente dependia de importar as enzimas.

Assim, [basicamente o cenário era] fazer um diagnóstico, falar para um paciente “olha, não tome leite”, porque a gente não teria muito o que fazer por ele… Mas, recentemente, com as enzimas nacionais — que são de muito boa qualidade —, os colegas [das demais especialidades citadas] já estão prestando atenção, fazendo esse diagnóstico e medicando o paciente. Quem não tem a enzima produzida pelo próprio organismo vai ter que tomar a enzima por via oral pelo resto da vida.

Veja também: Quem é intolerante à lactose precisa cortar o leite?

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