É importante entender os diferentes tipos de fome para o prazer na comida não virar um problema.
Frente ao aumento do nível de ansiedade causado por momentos difíceis do dia a dia, é natural buscar uma fonte de conforto que possa tornar o momento mais suportável. Para muita gente, esse prazer pode estar na comida. E isso não deveria ser motivo de culpa. “Estamos vivendo um momento inédito, então, é normal buscar algum conforto na comida”, defende a nutricionista Sophie Deram, autora do livro “O Peso das Dietas”. A especialista considera o prazer de comer parte de uma vida saudável, mas destaca que esse sentimento ainda é visto como condenável por muitas pessoas. “Infelizmente, estamos em uma sociedade que demoniza muito o prazer de comer, como se ele não devesse existir. Não só existe, como não deveria nos deixar com culpa.”
Quando a busca por prazer na comida se torna uma experiência ruim
Procurar experiências prazerosas por meio da comida é natural e reflete nosso instinto humano. Porém, é importante entender como – e porque – essa busca ocorre, pois pode indicar uma relação pouco saudável com a comida.
Segundo Deram, há uma grande diferença entre buscar conforto no ato de comer e utilizá-lo como refúgio. Esse último comportamento é chamado pela especialista de “fome emocional” ou “comer emocional”.
Sentir prazer ao comer pode ajudar a aliviar a tensão, e isso acontece porque comer não tem somente uma dimensão fisiológica, mas também um fundo emocional e comportamental. Para a especialista, a alimentação não está distante das emoções: ela se relaciona ao momento que vivemos, a como estamos nos sentindo e às pessoas que nos cercam.
“O ato de comer é também psicológico. Então, é normal ter vontade de aliviar momentos de ansiedade com o ‘comer gostoso’. Já a ‘fome emocional’ é aquela em que a pessoa desconta todas as emoções na comida, buscando um refúgio. E geralmente não vai ser no brócolis.”
Os favoritos nessa hora são os alimentos ricos em gordura, açúcar e sal, mais recompensadores para o cérebro. Podem tanto ser ultraprocessados (chocolates em barra, biscoitos recheados, salgadinhos “de pacote”, refrigerantes e macarrão instantâneo) quanto comidas preparadas em casa (frituras e bolos, por exemplo). O que define essa preferência é o nível de prazer e energia que aquele alimento irá proporcionar.
Segundo Deram, a “fome emocional” ataca de maneira urgente e sem planejamento. Na maioria das vezes, é seguida de uma sensação de mal-estar emocional. Esse sentimento se explica porque, ao perceber que o alívio buscado trouxe apenas um conforto momentâneo, e que a sensação de tensão que levou a pessoa a comer não foi embora na mesma velocidade, o prazer dá lugar à tristeza ou à culpa por ter agido no impulso. “É importante entender que a fome emocional não é nossa culpa. É o próprio cérebro, no ‘piloto automático’, que vai buscar alívio das emoções nas comidas recompensadoras. É por isso que, muitas vezes, é necessário terapia para trabalhar essa questão”, explica a nutricionista.
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Como construir uma relação tranquila com a comida
Geralmente, a fome emocional ataca com menor frequência as pessoas que possuem uma relação mais tranquila com a comida. Aquelas que se permitem comer com prazer e sem julgamentos ou culpa. Segundo a nutricionista, existem algumas dicas que podem ajudar na conquista dessa consciência alimentar ao mesmo tempo em que se mantêm hábitos saudáveis.
Uma delas é começar a perceber que o prazer de comer pode acontecer com outros tipos de comida, não só com aquelas que normalmente são mais recompensadoras para o cérebro. “A gente pode buscar prazer e conforto em um feijão super bem temperado, por exemplo, e entender que o prazer de comer acontece com comida gostosa, não só com açúcar, chocolate e gordura.”
Outra dica é não substituir uma refeição inteira pelos alimentos consumidos nos momentos de tensão. “É importante colocar esse prazer que vem de alimentos ultraprocessados como uma maneira de satisfazer uma vontade que temos, mas sem usá-los como forma de matar a fome”, explica a especialista.
Como lidar com a vontade
A vontade, explica Deram, é um comportamento alimentar que pode surgir mesmo quando já estamos fisiologicamente satisfeitos. Ela costuma ser específica, ou seja, quando vem, sabemos exatamente o que queremos: uma sobremesa depois do almoço ou um bolo caseiro no lanche da tarde, por exemplo. Segundo a nutricionista, aprender a identificar esses diferentes comportamentos que podemos ter com a comida é um caminho para lidar melhor com nossas sensações e estabelecer uma relação mais consciente com ela.
Vontade X Fome física
A fome física é manifestada pelo corpo através de sinais bem conhecidos: sensação de “estômago vazio”, dor de cabeça, irritação etc. Ao sentir essa fome, buscamos saciá-la o mais rápido possível. O mesmo pode ser dito sobre aquela vontade de um agrado a mais, que já não está ligada à fome física.
Ao contrário do que nossa intuição pode dizer, é melhor não ignorá-la. Se não saciada, a vontade pode vir de forma exagerada em algum outro momento ou fazer a pessoa atropelar a fome física, trocando a refeição pela sobremesa, por exemplo. “Quanto mais restrição, maior o risco de descontrole”, alerta a nutricionista.
Planeje as refeições
Planejar a alimentação priorizando comidas frescas e caseiras – que você goste! – de preferência de forma variada, é outra dica importante. No caminho da consciência alimentar, é essencial aceitar quando algo não agrada. “Se existem alimentos de que você não gosta, não tem problema nenhum. Você pode procurar outros alimentos do mesmo grupo, mas que você goste”, orienta Deram.
Encarar o “comer de tudo” ao pé da letra, como algo obrigatório para “comer saudável”, tende a ser um tiro no pé. A cobrança pode se tornar um fardo e virar mais um motivo de culpa, alerta a especialista. “Nunca vou obrigar ninguém a comer salada. Isso é uma invenção de nutrição controladora. Podemos achar essas fibras e qualidade alimentar em outros alimentos. Nem frutas são obrigatórias. Eu tenho pacientes que adoram legumes e não gostam de frutas. Eu não vou enchê-los de culpa e dizer que eles têm que comer frutas. A gente vê que essas regras mais atrapalham que ajudam. Quando a gente confia no corpo, a gente entende que o corpo fala.”
Muitas vezes, o contexto não será o mais favorável – podemos estar com pressa, preguiça ou desânimo –, mas é importante tentar se conectar de forma mais profunda com o ato de comer, o que significa estar mais presente no processo que vai da compra de produtos e da preparação, até a primeira garfada. Procure pensar nos alimentos que quer ter em casa, cozinhar mais e buscar receitas novas e descomplicadas.
Como alerta Deram, o corpo fala, mas para conseguirmos escutá-lo, é fundamental enxergar a comida como uma aliada, e não inimiga. Para incorporar essas dicas em seu dia a dia, tente encarar o ato de comer não como uma pausa entre as tarefas cotidianas que de fato importam, ou como um refúgio para as emoções indesejadas, mas um momento essencial no cuidado da saúde.
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