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Ortopedia

Como a tecnologia está mudando a implantação de próteses?

profissional coloca prótese em atleta
Publicado em 30/08/2023
Revisado em 23/09/2024

Distante do estigma do passado, as próteses têm melhorado a vida de quem as usa em casos de perda de membros inferiores, superiores, olhos e dentes.

 

Marco Antônio Guedes estava no quinto ano do curso de Medicina na Universidade de São Paulo (USP) quando sofreu um acidente de moto. Durante uma semana, seus colegas do Hospital das Clínicas tentaram salvar seu pé esquerdo, mas diante da gravidade dos ferimentos, ele precisou amputar a perna logo abaixo do joelho. Era dezembro de 1974. Marco Antônio não pôde e nem quis se abater, afinal tinha uma residência em ortopedia para completar, cirurgias que deveria comandar no sexto ano e um curso para terminar. Uma vida toda pela frente.

“A primeira cirurgia que fiz, mais ou menos um mês após o acidente, foi uma de fimose. Fiz pulando em uma perna só, com o joelho apoiado em um banquinho. Não podia entrar na sala de cirurgia com muleta porque poderia contaminar o ambiente. Enquanto seguia com o curso, fazia fisioterapia, mas naquela época a reabilitação ainda era precária, mesmo no maior hospital da América Latina, porque as terapeutas também não prestavam muita atenção no que estavam fazendo. E as próteses demoravam e não eram nada boas. Foi então que caiu minha ficha. Vou trabalhar com amputados, é isso. Principalmente para melhorar essa reabilitação”, relembra.

O interesse de Marco Antônio por ortopedia e traumas físicos não surgiu apenas após o acidente. Dois anos antes, ele havia começado a trabalhar no Hospital de Fraturas da Lapa, e nos plantões fazia o primeiro atendimento, realizava suturas, via de tudo. “Fui picado pelo desafio do trauma. Por exemplo, duas cirurgias de fratura de fêmur não são iguais. Ou qualquer outra fratura. Em cada uma, você fica pensando em como consertar. Era isso que me fascinava, a criatividade do procedimento. Sempre fui de pegar as coisas e ir resolvendo.”

Foi o que fez quando se viu ainda estudante de medicina e com parte da perna amputada. “Enquanto fazia minha fisioterapia comecei a ver os outros pacientes e logo percebi diferenças na reabilitação de cada um. Era um mundo novo a ser conquistado e eu fui atrás.” Então, logo após se formar, o agora ortopedista e traumatologista Marco Antônio se juntou ao amigo e cirurgião vascular Nelson De Luccia para montar o Centro de Preservação e Adaptação de Membros de São Paulo. “Tivemos esse consultório juntos por dez anos, até o final da década de 1980. A gente fazia próteses, importava joelhos mecânicos, e nossas funções se complementavam maravilhosamente.” Nelson, aliás, estava junto de Marco Antônio no dia do acidente e foi o primeiro a lhe contar que seu pé esquerdo não tinha salvação. Eles são amigos até hoje.

“O fato de ter uma perna amputada me ajudou muito nas conversas com os pacientes. Pessoas me falavam ‘o senhor taí falando pr’eu cortar a perna porque não é com você’. Então eu saía de trás da mesa, tirava minha perna, colocava de volta, e isso mudava a postura do paciente. Tinha gente que entrava desesperada e saia rindo. Para um amputado, o ato de reabilitação começa pela maneira como você dá a notícia a ele. Uma coisa é você ir para uma cirurgia como quem vai para um enterro, e outra coisa é você ir como um primeiro passo pra reabilitação.” No cotidiano de atendimentos e operações, Marco Antônio percebeu que era preciso mais do que nunca tirar o peso, o estigma, da amputação.

“A indicação de amputação não é uma mutilação e sim a proposição de um tratamento. Antes a amputação era considerada a perda de todas as tentativas de preservar aquela extremidade, ou aquele membro, e a gente queria mostrar que às vezes essas tentativas de preservação eram a pior opção, pois podia-se perder muito mais. Era e é preciso ter uma visão holística da pessoa, saber da sua vida, do seu trabalho, da sua família. Pessoas não são números, pessoas não são membros”, explica.

Outra virada de chave na trajetória profissional de Marco Antônio foi quando conheceu o inventor de próteses norte-americano Van Philips. “Foi ele que sacou que uma prótese não pode ser uma imitação de um membro perdido, ela tem é que devolver a função de um membro perdido. Os pés protéticos que ele desenhou não buscavam reproduzir a imagem do pé, mas a função do pé. Foi quando surgiram aquelas lâminas em forma de C que os paratletas usam para correr. Isso foi uma revolução absurda.”

Em pouco mais de quatro décadas de trabalho ininterrupto, Marco Antônio mapeou as duas principais causas de amputações de membros inferiores/superiores que chegavam a seu consultório: infecções causadas por diabetes e traumas (invariavelmente de jovens em acidentes de moto). E também acompanhou em seu próprio corpo a evolução das próteses desde a década de 1970. “A tecnologia protética melhorou muito, e a formação desses profissionais mudou para melhor. É uma coisa impressionante ver os novos materiais usados, as inúmeras combinações de sistemas. Existem hoje em dia próteses tão bem impermeabilizadas que dá até para pular no mar sem prejuízo nenhum.”

Aposentado há cerca de dois anos, Marco Antônio Guedes divide seu tempo entre São Paulo e seu sítio em São Luiz do Paraitinga, onde gosta de observar e tirar fotos de pássaros. Mas lembra com orgulho as décadas de trabalho, as vidas que transformou e os casos célebres que acompanhou como especialista (tais como o do velejador Lars Grael e do goleiro Jakson Follmann, um dos poucos sobreviventes da queda do avião que vitimou o time da Chapecoense em 2016). Tudo isso o fez pensar que “o ser humano é muito grudado ao próprio corpo. Acho que uma das coisas que a humanidade precisa resolver é essa questão da materialidade. Não se apegue a esse pé, se apegue ao que você precisa para continuar vivendo. O seu corpo é uma carruagem, você está dentro dele”.

        Veja também: Reabilitação de amputados | Entrevista

 

Próteses oculares  

Órgão dos mais fundamentais e delicados do corpo humano, os olhos também fazem parte, há muito tempo, do universo das próteses. Antes eram mais precários, mas em pouco mais de duas décadas, tempo que a médica oftalmologista Simone Milani Brandão está formada, a qualidade do produto final melhorou consideravelmente. Simone viu tudo isso acontecer enquanto pesquisava sobre implantes oculares, tema das suas dissertações de mestrado e doutorado na Faculdade de Medicina de Botucatu, da Universidade Estadual Paulista (Unesp).

Especializada em plástica ocular, Simone desenvolveu, em parceria com o Laboratório de Materiais Vítreos da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), um implante em biomaterial. “Não temos implante nacional e os importados disponíveis são de alto custo. Um dos objetivos desse que criamos é torná-lo mais acessível, tanto para convênios quanto para o SUS. Já temos a patente, mas ainda estamos esperando o aval da Anvisa para procurarmos um parceiro comercial que invista no produto e que assim chegue a todos e não só a quem pode pagar.”

E muitas pessoas precisam desses implantes pelos mais diversos motivos. “O implante é usado quando o paciente perde os olhos por causa de um câncer ou teve uma perfuração, um trauma grave, ou um glaucoma muito avançado, e até doenças congênitas. Antes é preciso fazer a retirada cirúrgica do olho para então devolvermos o volume da cavidade orbitária com o biomaterial. Esse volume também pode ser feito com gordura do próprio paciente, o que chamamos de enxerto. Depois de recuperado o paciente recebe uma prótese, de porcelana ou resina acrílica, para dar estética e simetria.”

Próteses oculares não devolvem a visão, mas dão ao paciente algo tão importante quanto. “É uma grande mudança que visa melhorar a autoestima, a socialização, a vida da pessoa.”

        Veja também: Aumentam amputações causadas pelo diabetes; saiba prevenir

 

Próteses dentárias 

Próteses dentárias são as mais comuns, e nem por isso as menos importantes desse rol. Sylvia Leal Fernandes, dentista formada em 2005 pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), com especialização concluída em 2009 e pós-graduada em biomateriais pela USP, explica: “Prótese é um termo muito vasto. Tudo que substitui dente é prótese. Pode ser sobre o próprio dente, ou uma removível parcial e até, mais raramente nos últimos tempos, uma removível total”, explica.

Os motivos para próteses dentárias são os mais variados e Sylvia se depara com eles diariamente em seu consultório no bairro de Pinheiros, São Paulo. “Geralmente o que chega pra mim são cáries, ou tratamento antigos de canal que deixam o dente mais frágil, e até alguns acidentes. Os dentes posteriores, os pré-molares, são os que mais sofrem. A partir daí, o procedimento é mais ou menos o mesmo: avaliação clínica seguida de uma avaliação radiográfica, e essa combinação é imprescindível para um bom diagnóstico e um bom planejamento.”

 Quando é possível salvar o dente, opta-se pela prótese sobre dente cuja adaptação é muito tranquila. Caso contrário são necessárias extrações dos dentes danificados e uma prótese removível (parcial ou total). “Aí a adaptação pode ser complicada porque é preciso ajustar bem a oclusão, a mordida. É uma sintonia fina. Às vezes a prótese pega no céu da boca ou atrás da língua e pode machucar. Tem pacientes que não se adaptam, não conseguem falar ou deglutir, e então tem que partir para o implante, que é mais caro e precisa de uma pequena cirurgia.”

 Já os materiais usados continuam sendo resina acrílica, resina composta com cerâmica ou porcelana, mas segundo Sylvia, existem mais avanços tecnológicos na confecção de próteses, que agora podem ser feitas em impressoras 3D. “Com essa tecnologia é possível fazer a instalação no mesmo dia. Basicamente a pessoa sai com dentes novos na mesma sessão, só que é uma sessão mais longa, claro. Vale muito a pena.”

        Ouça: Por Que Dói? #13 | Dor fantasma

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