A retirada preventiva de órgãos pode ser uma opção quando a pessoa tem uma síndrome genética que provoca risco aumentado de câncer. Saiba mais.
A primeira vez que Aída Girão ouviu falar sobre a síndrome genética que predispõe ao câncer foi lendo uma matéria sobre Angelina Jolie. A atriz, então com 37 anos, havia retirado preventivamente as duas mamas após descobrir uma mutação genética no gene BRCA-1 que aumentava consideravelmente seu risco de desenvolver câncer de mama (85%) e de ovário (50%) ao longo da vida. Enquanto lia a matéria, Aída não imaginava que passaria por algo parecido.
O fantasma do câncer de mama já era algo presente na vida da arquiteta e urbanista. A tia havia descoberto o diagnóstico jovem, aos 44 anos; e a avó enfrentou a doença duas vezes. Por causa do histórico familiar, Aída mantinha os exames de rotina em dia, sempre esperando pelo melhor.
Até que, em 2017, também aos 44 anos, uma ultrassonografia detectou microcalcificações na mama esquerda. Esse achado era benigno, não corria o risco de se transformar em câncer. Mas a médica recomendou um exame mais detalhado, uma ressonância magnética, que descobriu um nódulo na outra mama. Mais tarde, a biópsia comprovou: seguindo a tendência da família, Aída estava com câncer de mama.
Justamente por essa relação hereditária com a doença, Aída se tornou elegível para um teste genético, igual ao que Angelina Jolie havia feito. O teste diagnosticou uma mutação no BRCA-2, gene que, assim como o BRCA-1, é um gene supressor de tumores.
Isso significa que ela tinha uma síndrome de predisposição hereditária, mais especificamente a síndrome de predisposição hereditária ao câncer de mama e ovário. A condição é capaz de aumentar a probabilidade de desenvolver determinados tipos de câncer em uma mesma família, sendo transmitida hereditariamente, com risco de 50% em cada geração.
Para enfrentá-la, uma das opções é aquela adotada por Angelina Jolie: retirar o órgão sob ameaça de forma preventiva.
Por que retirar um órgão preventivamente?
“O médico me orientou a só tirar a mama com câncer, mas eu decidi tirar a outra também. Como eu já tinha um diagnóstico positivo, não quis ficar me submetendo a mais exames sabendo que poderia acontecer de novo”, conta Aída. A cirurgia profilática remove um tecido ou até um órgão inteiro com alto potencial de se tornar câncer, reduzindo consideravelmente o risco em quem tem a síndrome.
Essa possibilidade já é bastante conhecida no caso do câncer de mama, mas também pode ser feita em relação aos seguintes órgãos:
- Tireoide;
- Estômago;
- Intestino grosso;
- Útero;
- Tubas uterinas;
- E ovários.
“Essas são as situações em que a gente tem uma evidência robusta de diminuição da incidência do câncer com a retirada do órgão. Em relação ao câncer de ovário, nas mulheres que têm a síndrome, o risco de desenvolver a doença é de 44%, aproximadamente uma a cada duas. Enquanto na população habitual, é de 1%, ou seja, uma a cada cem. Considerando que a cirurgia preventiva diminui o risco em até 96%, o benefício em se retirar [os ovários] é enorme”, explica o dr. Vandré Carneiro, cirurgião oncológico titular da Sociedade Brasileira de Cirurgia Oncológica (SBCO) e diretor do Programa de Câncer Hereditário do Hospital de Câncer de Pernambuco (HCP).
Tais probabilidades também vieram à tona no caso de Aída. O risco mais alto era o de ter câncer de mama, o que, de fato, aconteceu. Mas a mutação no gene BRCA-2 também poderia aumentar a probabilidade de desenvolver câncer de ovário, uma doença silenciosa que, quando diagnosticada, geralmente já está em fase avançada. Para piorar, como o câncer de Aída era receptor de hormônio — isto é, quando as células cancerosas têm receptores que se ligam ao estrogênio, à progesterona ou a ambos, “alimentando” o crescimento do tumor —, o ideal mesmo era retirar preventivamente os ovários, o útero e as tubas uterinas.
Foi o que Aída fez.
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Como o corpo reage à retirada preventiva de um órgão?
Entre a descoberta do câncer, a retirada preventiva das mamas, o resultado positivo para a síndrome mama-ovário e a nova cirurgia, passaram-se apenas cinco meses. “Eu não tive muito tempo. Só queria ficar bem, estar viva, ver meu filho crescer e fazer as coisas que eu gosto. A ficha só foi cair no pós-operatório”, relembra Aída.
“Toda aquela confiança que eu tinha antes, aquela coisa de não dar tempo nem de sentir medo, acabou. Veio a sensação de estar mutilada e não saber como vai ficar a aparência. Eu já saí da primeira cirurgia com prótese, mas era outra mama, não era a minha. Não era o meu jeito, sabe?”, desabafa a arquiteta.
Além de toda a questão psicológica, Aída também passou por uma adaptação fisiológica. Como explica o dr. Vandré, uma paciente jovem que retira o ovário, entra em menopausa precoce. Isso traz sintomas incômodos no dia a dia, como ondas de calor, cansaço, dificuldade para dormir, entre outros.
“Não deu tempo de eu ir me preparando aos pouquinhos, como as mulheres fazem. Em um dia, eu menstruava; no outro, parei totalmente. Além disso, fiquei com osteoporose e tive que ser acompanhada por uma endocrinologista”, relata Aída. A menopausa é um fator que aumenta o risco de desenvolver osteoporose.
Por outro lado, na maior parte dos casos, há a possibilidade de realizar a reposição hormonal ou manejar as mudanças de outra forma.
“Quem retira o estômago preventivamente, por exemplo, passa a viver sem grandes alterações do ponto de vista nutricional. Algumas coisas são repostas, como a vitamina B12, mas geralmente o indivíduo vive bem. Na retirada do intestino grosso, a absorção de líquidos fica prejudicada no início, mas logo o intestino fino passa a assumir essa função”, detalha o dr. Vandré.
Segundo o cirurgião oncológico, o importante é levar em conta todos esses fatores na hora da decisão, que costuma ser compartilhada entre o paciente e o profissional de saúde. “A gente coloca na balança: se a cirurgia preventiva vai diminuir o risco de câncer, o quanto de diminuição vai existir e qual o preço a se pagar ao fazer o procedimento”, ressalta.
Retirar um órgão preventivamente significa que a pessoa nunca vai ter câncer?
Atualmente, não existe uma forma de prever quem vai ter câncer. Também não existe uma receita exata para evitar o seu aparecimento. O que a cirurgia preventiva oferece é a diminuição considerável do risco do paciente desenvolver a doença.
“É óbvio que vai depender do tempo de cirurgia e da síndrome em que ele está inserido, mas o impacto do procedimento é gigantesco. Ter câncer depois de uma cirurgia como essa é um evento muito raro. Mas, como quase tudo na vida, não é 100% de certeza”, pontua o dr. Vandré.
É por isso que, após o diagnóstico de uma síndrome de predisposição hereditária ou até mesmo após fazer a cirurgia preventiva, o paciente deve continuar com os cuidados de prevenção. Entre eles, o acompanhamento médico mais frequente e adoção de um estilo de vida saudável.
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Familiares também podem ter o risco de câncer aumentado
Esse olhar mais atento pode se estender também à família. Quando um indivíduo é diagnosticado com síndrome de predisposição hereditária, todos os familiares devem acender o sinal de alerta. O câncer em si não é transmitido, mas o risco maior de ter câncer, sim.
O teste genético que faz esse diagnóstico não é recomendado para toda a população, já que as síndromes são consideradas raras. No entanto, três critérios principais tornam uma pessoa elegível para o exame:
- Se o paciente tem ou teve câncer, especialmente em idade jovem ou se for mais de um tipo de câncer;
- Se o paciente tem vários casos de câncer na família;
- Se já existe o diagnóstico de alguma das síndromes de predisposição hereditária na família.
Aída preenchia os dois primeiros requisitos. Receber o resultado positivo do exame levantou várias dúvidas em sua cabeça, entre elas: de quem ela havia herdado a mutação?
A resposta veio logo. O pai fez o exame e descobriu a síndrome, que se materializou pouco tempo depois, quando ele também foi diagnosticado com câncer de mama. A doença é bastante rara na população masculina, atingindo um homem a cada cem mulheres.
Por outro lado, não é preciso testar a família toda. Segundo o dr. Vandré, a lógica é a seguinte:
- É recomendado testar o pai e a mãe, para saber de que lado da família veio a mutação.
- Supondo que a mutação tenha vindo do pai, como no caso de Aída, é recomendado testar também os irmãos do pai e, se possível, os pais do pai.
- Não é preciso testar os sobrinhos do pai, a não ser que algum de seus irmãos receba o diagnóstico positivo.
- Se alguém tiver falecido ou não quiser fazer o exame, a geração seguinte pode optar por realizá-lo. Por exemplo, se isso acontecer com um dos irmãos do pai, os sobrinhos do pai recebem esse direito.
- Na maioria dos cenários, o recomendado é realizar o exame apenas em familiares maiores de 18 anos.
Ao descobrir que a síndrome havia sido herdada realmente do pai, Aída mobilizou a família. A mais velha de quatro irmãos, ela usou as orientações dos médicos (e a sua influência como primogênita) para convencê-los a se testarem também.
Rommel, dois anos mais novo, logo buscou o exame. Ele tem duas filhas e preocupava-se com os impactos que o possível diagnóstico poderiam provocar nelas. Felizmente, ele não apresentou a mutação. “Foi um alívio, né? A gente obviamente não está isento de desenvolver o câncer de mama ou de outro tipo, mas diminui o risco exponencialmente”, comenta.
Weber, o terceiro filho, percebeu a gravidade da situação quando o pai também apresentou a doença. “Eu vi que um homem poderia ter, mesmo sendo um tipo raro nessa população”, lembra. O resultado dele foi positivo, o que o deixou bastante apreensivo. Depois, a notícia o incentivou a cuidar melhor da saúde: Weber faz acompanhamentos médicos rotineiros e busca se alimentar de forma balanceada.
Elise, a caçula, ainda não fez o teste. Por já ter tido problemas graves de saúde, que não estão relacionados ao câncer, ela desenvolveu pânico de hospitais. No início, dizia que não queria saber, mas os irmãos a foram convencendo. Hoje, mesmo com medo de receber o diagnóstico, ela pretende fazer o exame. “Tenho medo de descobrir que estou doente. Pode ser que sim, pode ser que não, mas a dúvida me deixa perturbada”, diz.
De acordo com o dr. Vandré, o diagnóstico é importante para toda a família. Assim, cada um pode ser orientado sobre as medidas necessárias para minimizar o risco de câncer — seja através da cirurgia preventiva ou não.
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