O país é referência no tratamento da hemofilia, mas o atraso para disponibilidade de fatores de coagulação mais modernos, que irão gerar menos infusões, ainda é um entrave.
A hemofilia é uma doença hemorrágica, de caráter genético que atinge mais de 13 mil brasileiros. A doença é mais prevalente nos homens, por conta de uma alteração genética no cromossomo X.
Ela é classificada em dois tipos: A e B. Pessoas com hemofilia tipo A têm deficiência no fator VIII (oito). Já as pessoas com hemofilia do tipo B têm deficiência no fator IX (nove). Os sangramentos são iguais nos dois tipos, porém a gravidade dos sangramentos depende da quantidade de fator presente no plasma (líquido que representa 55% do volume total do sangue).
Para entender por que pacientes com hemofilia têm tendência a apresentar sangramentos que são difíceis de conter, imagine o seguinte: quando você faz um leve corte no dedo ao descascar uma fruta, depois de alguns minutos aquele ferimento para de sangrar sozinho. Isso ocorre porque você tem um fator coagulante no sangue. Quem tem hemofilia, não tem essas proteínas, por isso sangram mais que o normal.
E não estamos falando de sangramentos ocasionados somente por traumas físicos, mas também sangramentos espontâneos, que podem ocorrer em locais submetidos à pressão, especialmente nas articulações (joelhos, cotovelos e tornozelos) e músculos, o que pode causar episódios de dor, conforme aponta o fisoterapeuta Curtis Yee, do Centro de Tratamento de Hemofilia, da UC Davis, na Califórnia.
Ele trabalha com a reabilitação de pacientes, utilizando principalmente a técnica de ultrassons (método que possibilita aquecer os tecidos profundos numa frequência muito alta, imperceptível ao ouvido human, e que possui propriedades vasomotoras, analgésicas e antiinflamatórias, reduzindo o tempo de recuperação do paciente).
“A doença pode ser muito incapacitante, pois os sangramentos internos podem causar inchaços, dores, limitação do movimento. Por isso a importância da prevenção e da relação coordenada entre a equipe de reabilitação, os ortopedistas e os hematologistas, uma vez que é fundamental prevenir o risco de novos sangramentos”, diz.
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Brasil é referência mundial
O Brasil registra a quarta maior população de pacientes com a doença no mundo, e por aqui o tratamento é oferecido de maneira integral pelo SUS, sendo referência em muitos países. Por meio de um sistema chamado Hemovida Web Coagulopatias, o Ministério da Saúde mantém atualizado um cadastro de todos os pacientes que necessitam dos medicamentos e os encaminha, onde quer que ele esteja.
Nos Estados Unidos, por exemplo, o fator é distribuído por centros especializados espalhados pelo país. Entretanto, como não há um sistema público de saúde, o paciente com hemofilia precisa contratar convênios privados para ter acesso a tratamentos.
Evolução no tratamento
Para se ter uma ideia, até a década de 1980, segundo o hematologista pediátrico Jonathan Ducore, do Centro de Tratamento de Hemofilia, da UC Davis, na Califórnia, o tratamento da hemofilia exigia constantes transfusões de sangue, o que aumentava o risco de contaminação por doenças transmitidas pelo sangue, como o HIV/aids e as hepatites.
“Muitos tinham medo de serem contaminados, porque os fatores plasmáticos não passavam por inativação viral”, relembra o dr. Ducore.
Personalidades como o cartunista Henfil, o sociólogo Betinho e o músico Chico Mário tinham hemofilia e morreram devido à aids. Mas hoje, esse cenário mudou e temos grandes progressos no tratamento, já que cerca de 70% do fator produzido é feito por engenharia genética, conforme aponta a hematologista Alessandra Prezotti. No caso da hemofilia B, em que os pacientes ainda necessitam de fatores plasmáticos, o sangue passa por dois processos de inativação viral e uma vez por ano o paciente faz exames de sorologia. “Felizmente, não temos relatos de contaminação no Brasil há anos”, comenta.
Sob demanda e profilaxia
O tratamento das hemofilias tem como principal pilar a reposição do fator da coagulação deficiente (fator VIII [8] na hemofilia A ou fator IX [9] na hemofilia B). O paciente recebe os fatores de coagulação e faz a aplicação intravenosa em casa, sem a necessidade de ir a um centro especializado.
Mas é importante destacar que há casos de pacientes com hemofilia A que desenvolvem uma espécie de “tolerância” ao fator 8, e por isso quando recebem o fator de coagulação, o organismo não reconhece. Então, ele precisa passar por uma dessensibilização, ou seja, utilizar um agente-ponte (bypassing, fator VII ativado ou complexo protrombínico). Depois de um tempo, são testados de novo, e se não houver mais essa inibição, ele volta para o tratamento convencional.
“A partir do diagnóstico, as mães são treinadas a fazer as aplicações quando as crianças têm dois meses de idade. Com o passar do tempo, a própria criança vai aprendendo e criando autonomia. As aplicações são feitas de duas a três vezes por semana, depende do caso e do tipo de hemofilia. O paciente recebe o fator de coagulação, que vem num potinho com um pozinho branco dentro. Ele dilui num diluente próprio, aspira por meio de uma seringa e faz a infusão”, explica a dra. Prezotti.
As modalidades de tratamento da hemofilia são definidas pela periodicidade com que é realizada a reposição dos fatores de coagulação, podendo ser sob demanda (somente quando o paciente sangra) ou profilático (para evitar os sangramentos).
“Por aqui, o tratamento preventivo é realizado somente quando o nível de fator de coagulação do paciente é muito baixo, menos de 2%, que são pacientes com hemofilia grave. É indicado também quando ele tem um sangramento de repetição em determinada articulação, ou vai fazer alguma cirurgia, realizar algum esporte de alto impacto”, complementa a médica.
Dra. Paula Villaça, médica responsável pelo Centro de Hemofilia do Serviço de Hemoterapia e Terapia Celular do Hospital da Faculdade de Medicina da USP, reforça que o Brasil consegue ser bem assistido e oferecer um tratamento padrão para todos os pacientes. Atualmente, já existem fatores de coagulação de terceira geração, que reduzem o número de infusões semanais que melhoram a qualidade de vida do paciente.
Ela diz que, muitas vezes, a necessidade de múltiplas infusões acaba dificultando um pouco a adesão do paciente, principalmente os mais jovens.
“Com fator de meia-vida estendida dessas novas drogas que estão para chegar, existe a possibilidade de reduzir o número de infusões, para uma vez por exemplo, porque os fator de coagulação fica mais tempo no organismo. A eficácia é a mesma, mas você tirando uma infusão, já melhora muito a qualidade de vida do paciente. Porque os adolescentes principalmente, acabam pulando, não fazendo as aplicações direito, porque esse procedimento toma uma hora da vida da pessoa”, diz Villaça.
A boa notícia é que tais medicamentos já foram incorporados pelo SUS em setembro de 2021, mas ainda não estão disponíveis. Por lei, o medicamento já deveria estar no mercado após 180 dias de sua incorporação, mas isso ainda não ocorreu até o momento.
Consultamos o Ministério da Saúde para saber se há um prazo estimado para elaboração do documento que orienta os médicos sobre o uso do produto e sua disponibilidade para os pacientes, mas até a publicação desta matéria, não obtivemos resposta.
A jornalista viajou a convite da Bayer para a Califórnia.