É preciso avançar no diagnóstico e tratamento da dor. Leia na coluna de Mariana Varella.
“De 0 a 10, como você classificaria a dor que está sentindo?” É assim que profissionais de saúde de hospitais que têm serviço de dor costumam abordar as pessoas em sofrimento. Infelizmente, nem todo serviço de saúde no Brasil está preparado para lidar com a dor aguda ou crônica de seus pacientes.
Em geral, a dor costuma ser encarada como um sistema de alarme do organismo que “avisa” quando algo não vai bem: doenças, ferimentos, infecções ou inflamações podem disparar a dor. Após tratar o problema, os médicos esperam que ela desapareça.
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No entanto, isso pode acontecer com a dor aguda, mas nem sempre ocorre com a crônica porque, nesses casos, a dor por si só já é uma condição médica. A dor crônica, classificada como aquela que dura mais de três meses, afeta milhões de pessoas no mundo todo. Com o crescimento da expectativa de vida, de doenças não transmissíveis como diabetes e das doenças autoimunes e o aumento da obesidade deve atingir ainda mais indivíduos nos próximos anos.
Na semana passada, a revista científica “Nature” lançou uma longa série de matérias sobre dor crônica e um editorial em que afirma que a esse tipo de dor está relacionado a uma mistura complexa de fatores neurológicos, imunológicos, psicológicos e sociais que não são reconhecidos por médicos e profissionais de saúde.
A influência desses fatores biopsicossociais na dor começou a ser estudada recentemente, e já há avanços importantes no tratamento. Contudo, nem sempre é fácil acertar a combinação exata de recursos terapêuticos, que podem incluir medidas não farmacológicas pouco acessíveis para a maioria das pessoas.
O editorial cita o exemplo de tratamentos integrativos que incluam profissionais de diversas áreas (médicos, fisioterapeutas, psicólogos, entre outros) e que podem ser mais efetivos que apenas o uso isolado de medicamentos como esteroides. No entanto, nos Estados Unidos, que não têm um sistema único de saúde como o nosso, o que torna a maioria de seus habitantes dependente de planos de saúde privados, esses tratamentos não estão disponíveis para toda a população. Além disso, no geral são longos e menos lucrativos.
Mesmo no Brasil do SUS, nem todas as regiões podem contar com centros que ofereçam tratamentos multidisciplinares para a dor crônica, e os serviços disponíveis em geral estão distantes do domicílio dos pacientes e sobrecarregados. Isso impacta diretamente no acesso ao tratamento da dor: de acordo com a Sociedade Brasileira para Estudo da Dor (SBED), a média da população brasileira que se queixa ou sofre de dor, é de cerca de 30%.
Outro problema é a falta de preparo dos profissionais de saúde, que muitas vezes sequer reconhecem a legitimidade da dor do paciente. O editorial cita uma pesquisa feita com médicos do Reino Unido que revelou que os profissionais sequer reconheciam a fibromialgia como uma condição real.
No Brasil, faculdades de medicina e enfermagem nunca deram muita atenção à dor, embora isso venha mudando nos últimos anos e muitos cursos já estejam empenhados em ensinar que a dor é um sinal de avaliação do paciente tão importante como os batimentos cardíacos, a respiração, a pressão arterial e a temperatura.
É fato que se a dor for mal avaliada, ela consequentemente será mal tratada, daí a importância de uma boa avaliação. Muitos médicos não sabem administrar os fármacos disponíveis para a analgesia após procedimentos médicos. Em entrevista ao Portal Drauzio Varella, o anestesiologista dr. João Valverde Filho, do Núcleo de Movimentos Anormais e Dor do Hospital Sírio-Libanês, disse: “Por isso, no mundo inteiro, inclusive no nosso país, estão sendo instituídos serviços especializados no tratamento da dor pós-operatória. É comum o cirurgião prescrever subdoses de analgésicos para serem ministradas ‘se necessárias’. Quando se verifica que elas não surtiram o efeito desejado, está provado que a equipe de enfermagem leva – veja bem, nos lugares em que o atendimento é bom — aproximadamente 45 minutos para conseguir entrar em contato com o médico, preparar a medicação e administrá-la ao paciente. Isso significa que, quando recebe o medicamento, a intensidade da dor aumentou tanto que a dose aplicada será insuficiente para surtir efeito. Assim, a situação se agrava e a conduta terapêutica se torna cada vez mais ineficaz”.
O medo de dependência também gera preconceito e receio quanto ao uso de morfina no tratamento da dor. “Tanto não é verdade [que a morfina tem alto potencial de desenvolver dependência] que os opioides podem ser ministrados com segurança também para pacientes não oncológicos, desde que sejam bem avaliados e controlados pelo médico”, explicou o especialista.
“Além dessa propriedade [de analgesia], a morfina tem a vantagem de não apresentar efeito teto. À medida que se aumentam as doses, cresce seu poder de analgesia”, concluiu.
É preciso enfrentar o estigma e o preconceito em torno da dor crônica e entender que reduzir a dor aguda, além de aliviar o sofrimento, diminui o tempo de internação. Hoje a medicina tem os meios para isso, mas é preciso investir na formação de serviços e profissionais que sejam capazes de diagnosticar e tratar a dor.
Apesar de todo o progresso terapêutico, a dor ainda não recebe a abordagem necessária e está se transformando num problema de saúde pública no Brasil.