Os transtornos alimentares são multifatoriais, ou seja, existem diversos fatores associados, e a busca pelo corpo “perfeito” é um deles. Conheça os principais e saiba como funciona o tratamento.
A busca pelo corpo “perfeito” por meio de dietas restritivas, a percepção de que somente pessoas muito magras são bonitas, comentários a respeito do peso frequentes no ambiente familiar, questões genéticas: são muitos os fatores que podem levar uma pessoa a desenvolver um transtorno alimentar, distúrbio psiquiátrico que causa disfunções no comportamento alimentar, muitas vezes acompanhadas de preocupação excessiva com o peso e grande sofrimento psíquico.
Estima-se que hoje, em todo o mundo, mais de 70 milhões de pessoas tenham algum transtorno alimentar, como anorexia nervosa, bulimia nervosa e compulsão alimentar, entre outros. Além de causar um grande prejuízo físico e mental na vida dos pacientes, já que normalmente as questões relacionadas ao comer e à imagem corporal tornam-se centrais no seu dia a dia, em casos graves, alguns transtornos podem levar à morte.
“A anorexia nervosa é um transtorno alimentar que você vai ver índices de mortalidade que variam de 6% até 10% em pessoas não tratadas. É um dos transtornos psiquiátricos que têm a maior mortalidade. Isso é extremamente preocupante”, afirma o dr. Fábio Salzano, psiquiatra e vice-coordenador do Programa de Transtornos Alimentares (Ambulim) do Instituto de Psiquiatria da USP (IPq/HCFMUSP).
Qual a diferença entre anorexia e bulimia?
Às vezes, as pessoas confundem os dois transtornos, mas eles têm características bem específicas. A anorexia nervosa é marcada pela recusa da pessoa em manter um peso adequado, um medo muito grande de ganhar peso e/ou uma distorção sobre sua imagem corporal, ou seja, ela sempre acha que não está magra o suficiente e que precisa perder mais peso. “Talvez, para sintetizar em uma pequena frase, eu diria que é a busca pela magreza extrema”, explica o psiquiatra.
Segundo ele, o termo “anorexia” não é o mais adequado, porque anorexia significa falta de apetite. “Os pacientes que têm anorexia nervosa não deixam de ter fome, não é isso. Eles querem ter um controle intenso do que ingerem porque eles buscam perder cada vez mais peso”, afirma.
“O comportamento alimentar clássico da anorexia nervosa é uma progressiva e grave restrição alimentar na qual o paciente elimina os alimentos que ele julga ruins, calóricos e acaba tendo uma dieta bastante empobrecida. A questão da alimentação se torna central na vida desses pacientes. Essa restrição alimentar leva a uma marcante perda de peso na maioria dos casos, e os pacientes frequentemente negam o problema e se mostram indiferentes ao seu péssimo estado nutricional”, explica Vanessa Tomasini, psicóloga aprimorada em transtornos alimentares pelo HCFMUSP e psicóloga voluntária da Enfermaria de Comportamento Alimentar (Ecal) e do Ambulatório de Atendimento para Homens com Transtorno Alimentar (Geahta) do IPq.
Já a bulimia nervosa é caracterizada por episódios de compulsão alimentar com perda de controle sobre a quantidade ingerida seguidos de métodos compensatórios para evitar o ganho de peso. Nos episódios compulsivos, a pessoa geralmente ingere, em um curto período de tempo, uma grande quantidade de alimentos que as pessoas que não têm compulsão não conseguiriam comer nas mesmas circunstâncias.
Diferente da anorexia, quem tem bulimia nervosa não está buscando a magreza extrema. O objetivo das medidas é evitar a qualquer custo o ganho de peso.
No caso de pessoas com anorexia, segundo Fábio, são mais comuns características como perfeccionismo e rigidez de comportamentos. Enquanto isso, nos pacientes com bulimia, é mais frequente a impulsividade. Muitas pessoas com bulimia, inclusive, acabam desenvolvendo outros comportamentos compulsivos relacionados a álcool e compras, por exemplo. Também é comum a tricotilomania (ato de arrancar pelos do corpo), não por questões estéticas, mas como uma forma de aliviar a ansiedade.
Em ambos os casos, o peso e a forma corporal normalmente têm um grande impacto na autoavaliação dos pacientes. A produtora de conteúdo Mirian Bottan, de 36 anos, sabe o que é isso. Ela conviveu com a bulimia dos 13 aos 28 anos de idade.
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Como é conviver com um transtorno alimentar
A relação conflituosa de Mirian com o seu corpo começou muito cedo, aos 6 anos, quando ela passou a participar de desfiles e concursos de beleza. Ainda criança, Mirian aprendeu que a beleza era algo muito importante e que para ser bonita só existia um caminho: a magreza extrema. Ela participou dos concursos até os 12 anos de idade, quando finalmente começou a expressar sua angústia em relação às competições e seus pais entenderam que aquilo estava fazendo mal para a filha.
“Mas já era tarde demais, o ambiente dos concursos era permeado de um culto ao corpo super magro das modelos dos anos 2000. Sem dúvida esse contexto teve grande peso no fato de aos 12 anos eu já era totalmente obcecada com a ideia de que um corpo bonito era um corpo extremamente magro, com os ossos aparecendo – coisa que eu buscava diariamente no espelho”, conta.
Com 12 anos, ela começou a fazer dietas por conta própria, evitando alimentos que no imaginário popular são “vilões”, responsáveis pelo ganho de peso, como arroz, pão, massas, molhos e doces. “Em pouco tempo passei a perder o controle quando finalmente comia algum desses alimentos proibidos, ingerindo num curto período de tempo quantidades muito maiores do que costumava comer normalmente. Por exemplo, em vez de comer um prato de espaguete, repetia duas, três, quatro vezes, compulsivamente, até terminar comendo direto da panela, o que só parava quando a comida acabava.”
Aos 15 anos, ela buscava métodos compensatórios diariamente para evitar o ganho de peso, e chegou a pesar 38 quilos. “Passei a evitar praticamente todas as atividades sociais e me isolar em casa, perdendo até um ano na escola. Também nesse período, com a doença já trazendo várias consequências físicas como perda de cabelo, anemia e interrupção da menstruação, aceitei ajuda pela primeira vez e iniciamos um tratamento medicamentoso e psicoterapêutico”, relata.
Porém, a mudança de vida só veio mais de dez anos depois, quando ela se sentiu pronta e procurou ajuda por conta própria. “O pior de um transtorno alimentar é justamente isso, ele parece muito mais uma saída do que um problema, você não quer se curar, quer que continue porque é uma muleta para as questões emocionais. Foram anos de terapia para que eu entendesse que podia encontrar outros caminhos para lidar com os meus sentimentos”, afirma Mirian.
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Fatores de risco
Os especialistas dizem que esse tipo de distúrbio tem causa multifatorial, ou seja, existem diversos fatores de risco, conforme mencionado na abertura do texto. Esses fatores podem ser genéticos, familiares, psicológicos e socioculturais. O médico comenta que já existem estudos indicando que há um componente genético presente nesse tipo de transtorno, apesar de não ter sido identificado nenhum gene específico que explique a condição.
Segundo Caroline Bartholo, nutricionista especialista em transtornos alimentares, um dos principais fatores que ajudam a desencadear um transtorno alimentar é a prática de dietas restritivas. “Nem todo mundo que faz dieta vai desenvolver um transtorno alimentar, mas todo transtorno alimentar começou com uma dieta”, afirma.
“Quando a gente fala em fatores de risco, a gente vai levar em conta que, por exemplo, crianças que tiveram sobrepeso na infância provavelmente foram mais incitadas a fazer dietas ou foram mais colocadas em exposição com relação a ter que emagrecer ou a ideia de ter um corpo inadequado. Então, isso se torna um fator de risco também”, comenta Vanessa.
Na adolescência, principalmente no caso das meninas, pode existir um incômodo em relação às mudanças corporais, como desenvolvimento das mamas e aumento dos quadris, por exemplo, e muitas vezes elas acabam ouvindo comentários desagradáveis a respeito de seu corpo. Isso também acaba sendo um fator motivador para as dietas restritivas, destaca o psiquiatra.
Além disso, pessoas com profissões voltadas para o esporte ou que trabalham com a imagem também podem estar mais expostas a este tipo de transtorno, como atletas, bailarinos, educadores físicos, nutricionistas e modelos, por exemplo.
O padrão de beleza adoece
Todos os especialistas são enfáticos em afirmar que a supervalorização de um corpo padrão, considerado o corpo “ideal”, é um fator que tem impacto no desenvolvimento dos transtornos alimentares em geral.
De acordo com Fábio, existem diversos trabalhos feitos em países de culturas diferentes, como países na Ásia, no Oriente Médio e Ilhas Fiji, mostrando que a exposição aos modelos de beleza do Ocidente – ou seja, Estados Unidos e Europa Ocidental – que geralmente são pessoas brancas e com peso abaixo do habitual, causa danos àqueles que não são dessa etnia. “Isso faz com que essas pessoas passem a ter uma maior insatisfação corporal, e essa insatisfação faz com que essas pessoas acabem se lançando em uma busca, às vezes desenfreada, por uma perda de peso ou por um controle do peso, e isso facilita, sim, que haja um início de um transtorno da alimentação.”
A ideia de que um corpo magro é mais valorizado pela sociedade muitas vezes começa dentro de casa, com os próprios familiares fazendo comentários depreciativos a respeito de pessoas fora desse padrão. “Nós observamos que às vezes os pacientes contam que na própria família ouviam muito que ter um padrão de corpo talvez até dentro do esperado, do normal, mas com uma tendência mais próxima do IMC 24 ou 25 [o máximo na categoria de peso ideal é 24,9] era exagerado. Ouviam que ser obeso era algo completamente fora do padrão que os pais desejavam. [Os pais] davam exemplos pejorativos de pessoas com obesidade ou com sobrepeso, como se o futuro de uma pessoa não fosse adequado em termos profissionais, em termos de relacionamentos intrafamiliares, relacionamentos afetivos, conjugais, caso a pessoa estivesse acima do peso”, conta o psiquiatra.
“Culturalmente, essa ideia de que o corpo magro é um corpo privilegiado, e ele realmente é um corpo privilegiado, está fincada. O corpo magro consegue encontrar roupas com facilidade, consegue assentos no avião que caibam melhor, consegue cadeiras e por aí vai. Sem sombra de dúvidas é um caldo que nos envolve socialmente, a todos nós, inevitavelmente, e pode ser sim um colaborador, um dos fatores de risco para o desenvolvimento de transtornos alimentares”, afirma Vanessa.
“Infelizmente, vivemos numa sociedade que cultua a magreza a qualquer custo e vende a ideia de que qualquer pessoa pode alcançar esse corpo idealizado”, completa Caroline.
Vanessa destaca que a nossa forma física e o nosso peso dependem de diversos fatores, e não somente do quanto se come ou o quanto se gasta em atividade física. O primeiro ponto é ter consciência disso. “Tem muitas outras questões envolvidas aí. Então, essa ideia de que se você trabalhar duro e for restrito na sua alimentação você vai conseguir esse corpo magro é uma grande mentira, e isso sem sombra de dúvidas adoece a muitas pessoas – independentemente de elas desenvolverem um transtorno alimentar ou não. Piora a relação com o corpo, piora a insatisfação corporal, aumenta os sentimentos de ansiedade, e é um fator de risco para depressão.”
Na visão de Caroline, o caminho é se fortalecer, aumentar o senso crítico e entender que nossa beleza, valor pessoal e sucesso independem da forma física. “Questionar esse modelo de corpo, ter em mente que o padrão de beleza foi feito para gerar exclusão, consumir conteúdos positivos nas redes sociais, praticar o “unfollow terapêutico” deixando de seguir perfis que te fazem se sentir mal com o seu corpo e com a sua alimentação, ler sobre o assunto e não esquecer que por trás disso existe uma indústria que lucra muito com a nossa insatisfação corporal”, afirma a nutricionista.
Outro ponto importante são os programas de edição de imagem que diminuem o corpo. É comum que as pessoas se comparem e se sintam mal ao ver fotos de pessoas com corpos padrões nas redes sociais, sem perceber que essas imagens, muitas vezes, não retratam exatamente a realidade. “Uma foto não mostra um corpo real com todo o seu movimento. Corpos reais mexem, dobram, têm estrias, têm flacidez, a vida real não é o que aparece na timeline das pessoas. Os corpos reais não são aqueles que são extremamente manipulados, seja por edição, seja por dietas ou comportamentos alimentares adoecidos”, destaca a psicóloga.
Consequências da anorexia e da bulimia
A restrição alimentar frequente característica da anorexia e da bulimia podem levar a uma série de problemas de saúde, conforme esclarece o médico. Podem ocorrer, por exemplo, alterações dos níveis de eletrólitos (potássio, sódio, fósforo e magnésio), sendo que a falta do potássio pode causar problemas no coração, como arritmias, o que aumenta o risco de morte.
Nos casos de anorexia, o quadro de desnutrição pode deixar a pele com aspecto doentio, as unhas quebradiças, e os cabelos passam a cair mais. Essas alterações também podem estar presentes na bulimia devido à ingestão inadequada de vitaminas e nutrientes. Nos casos das alterações nutricionais graves, também é possível perder as unhas.
O uso de substâncias para evitar o ganho de peso pode causar alterações gastrointestinais graves e problemas de funcionamento dos rins, que podem levar a insuficiência renal reversível ou irreversível. Também podem ocorrer problemas de saúde bucal. Em casos extremos, os pacientes podem perder os dentes.
Em mulheres, é comum a amenorreia, que é a ausência da menstruação, como aconteceu com Mirian. Isso leva a alterações no metabolismo ósseo, o que aumenta o risco de doenças como osteopenia e osteoporose.
Existe ainda o risco de morte, conforme mencionado no início da matéria. Nos casos de bulimia, o risco é bem menor do que na anorexia, mas ainda existe: 0,5% de mortalidade em pessoas não tratadas, de acordo com Fábio.
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Transtornos associados
É comum que pessoas com transtornos alimentares desenvolvam outros transtornos psiquiátricos, como depressão – o mais comum –, transtornos de ansiedade, de personalidade e também dependência de álcool e outras substâncias. Porém, é preciso atenção nesse ponto porque o quadro de desnutrição na anorexia pode causar sintomas semelhantes aos de depressão, mas que desaparecem com o restabelecimento de uma alimentação adequada.
Junto da bulimia, Mirian acabou desenvolvendo outras compulsões: abuso de álcool e drogas, compulsão por compras e por pornografia.
“Eu vivia numa busca compulsiva por um ‘prazer’ rápido e fácil, que na terapia entendi na verdade ser a busca por um alívio emocional instantâneo. Minha busca por ajuda se deu inicialmente por conta do abuso de álcool, que estava se intensificando e tornando minha vida insustentável. Tratar a base do problema, que era minha dificuldade de lidar com as emoções, desenvolver regulação emocional, me possibilitou lidar com elas de formas mais saudáveis e assim tratar todas as compulsões ao mesmo tempo”, relata.
Toda pessoa com anorexia é magra?
Embora a imensa maioria das pessoas com um transtorno alimentar como a anorexia de fato apresente uma perda de peso muito significativa, isso não significa que pessoas com peso normal ou até sobrepeso não possam desenvolver a doença.
Neste caso, as especialistas Vanessa e Caroline explicam que trata-se de anorexia nervosa atípica, um transtorno que provoca os mesmos sintomas da anorexia nervosa, mas sem o baixo peso e a desnutrição que os pacientes normalmente apresentam – o que, inclusive, dificulta o diagnóstico desses pacientes.
“Transtorno não tem cara, não tem gênero, não tem raça. É importante que a gente sempre ao passar informações sobre os transtornos alimentares quebre esses estigmas e esses mitos para que as pessoas recebam atendimento e também diagnósticos corretos. Não devemos associar o tamanho do corpo a um determinado transtorno alimentar”, afirma a psicóloga.
Como ajudar alguém com transtorno alimentar
Segundo Vanessa, para ajudar alguém nessa situação, é preciso ter um olhar gentil, buscando acolher, amparar e cuidar dessa pessoa. “É importante que a nossa preocupação seja muito mais de uma aproximação e acolhimento do que um apontamento. Muitas vezes frases como “eu queria saber se você está bem, se você precisa de ajuda” ou “eu estou aqui se você quiser conversar sobre o que está acontecendo”, são uma forma do paciente se sentir mais seguro, de poder falar sobre essas questões e, num segundo momento, poder buscar atendimento, poder buscar uma forma diferente de lidar com essas questões.”
É comum que esses pacientes apresentem resistência em buscar ajuda. Nos casos de bulimia, como não há uma perda de peso tão acentuada como geralmente acontece na anorexia, pode ser mais difícil para as pessoas próximas notarem que algo está errado. E o paciente muitas vezes não tem noção da gravidade do que está acontecendo.
Na anorexia, normalmente, com o passar do tempo, a alteração do estado nutricional da pessoa começa a ficar evidente – mas o próprio paciente pode não se enxergar dessa forma devido à distorção corporal. O problema é que muitas vezes, quando ele começa a emagrecer, isso se torna motivo de elogio para as pessoas próximas, que não desconfiam que a perda de peso é, na verdade, resultado de uma doença.
“Eventualmente isso passa despercebido porque infelizmente existe não só no Brasil, mas em muitos países do mundo todo, o culto à magreza de certa maneira. A prova é a grande quantidade de publicações hoje em dia mais voltadas para dietas restritivas, dietas para perda de peso. Então, às vezes, no início, [a perda de peso] pode ser aplaudida até pela própria família, o que acaba sendo um reforço positivo para que essa restrição alimentar mantenha-se”, explica Fábio.
Por isso é tão importante evitar fazer comentários sobre o peso e o corpo das pessoas de maneira geral – seja em tom de crítica ou de elogio – pois ela pode estar passando por questões sensíveis que você desconhece.
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Como funciona o tratamento
O tratamento padrão-ouro dos transtornos alimentares é multidisciplinar e deve incluir sempre acompanhamento com psiquiatra, psicólogo e nutricionista. Vanessa destaca que é importante que esses profissionais sejam especializados na área, pois, caso contrário, pode haver uma piora no quadro. “Justamente por essas questões relacionadas à imagem, ao peso, à dicotomia dos alimentos, e também ao fato de nós vivermos em uma cultura que privilegia corpos magros, os profissionais que atendem esses pacientes precisam de especialização específica para trabalhar com essa população”, afirma.
O uso de medicamentos para esses quadros vai variar de caso a caso. Nos casos de bulimia, existem medicamentos que podem auxiliar na diminuição do número de episódios bulímicos. E se houver alguma comorbidade [transtorno psiquiátrico associado], ela também será tratada em conjunto.
“Para quem tem uma anorexia nervosa sem comorbidades, os trabalhos apontam que o uso de medicamentos infelizmente não vai ajudar na distorção da imagem corporal, no medo de voltar a ter um peso adequado, na facilitação da ingestão de alimentos”, explica Fábio. No caso de pacientes com alguma comorbidade, são usados medicamentos para tratar a comorbidade.
Existem casos em que pode ser necessária internação hospitalar.
Outro ponto importante para os pacientes que têm anorexia é o IMC mínimo. “Apesar de a Organização Mundial de Saúde (OMS) adotar o IMC de 18 como normal, para quem tem anorexia nervosa, os trabalhos indicam que o peso mínimo é 19. Isso tende a evitar que haja piora no quadro nos primeiros meses após a recuperação”, esclarece o psiquiatra.
Na parte nutricional, é fundamental fazer ajustes para uma alimentação adequada. “Em ambos os casos, é necessário adequar a ingestão de energia e nutrientes, ajudar o paciente a realizar refeições estruturadas, reduzir ou cessar restrição alimentar, episódios de compulsão e comportamentos compensatórios inadequados, trabalhar distorções cognitivas em relação a comida e autoimagem, normalizar percepção de fome e saciedade, e diminuir ou eliminar distúrbios de imagem corporal. Na anorexia nervosa, também é importante restabelecer o peso para sair do risco nutricional”, explica Caroline.
O papel da família também faz muita diferença nessa etapa. “A rede de apoio familiar é essencial e também faz parte do tratamento, sendo tão importante quanto a equipe. Tanto o paciente quanto os familiares precisam ter paciência e perseverança, pois é um processo de muitos altos e baixos”, completa a nutricionista.
Existe vida depois do transtorno alimentar?
Apesar da dificuldade que é conviver e tratar um distúrbio tão complexo como o transtorno alimentar – um problema de ordem psiquiátrica, mas que também têm impacto direto na saúde física – a boa notícia é que sim, existe luz no fim do túnel. Com o tratamento adequado, é possível reconstruir uma relação saudável com a comida e com sua própria imagem, e Mirian é prova disso.
“Minha relação com a alimentação foi reconstruída com processo psicoterapêutico (que segue até hoje, já se vão mais de dez anos) e uma abordagem nutricional um pouco diferente da que estamos acostumados, onde o que impera é a proibição. Até os meus 28, 29 anos tive uma alimentação restritiva, proibitiva, que gerava sentimentos de amor e ódio tanto com relação a mim quanto com os alimentos, porque se comia o que não podia, eu ficava irritada comigo mesma, como se eu tivesse feito algo terrível. Para mudar essa relação com a comida, precisei mudar minha relação comigo mesma. Conforme eu conseguia me tratar de forma mais amorosa e respeitosa, o mesmo ia acontecendo com a alimentação. Hoje eu vejo a comida com carinho, com respeito, como algo que me nutre não só fisiologicamente, como emocionalmente também.”
Hoje, ela conta que se permite comer conforme suas vontades e contextos nos quais está inserida – por exemplo, comer pizza em uma pizzaria, ou lasanha em um almoço de domingo na casa da avó. Com o acompanhamento psicológico e nutricional, Mirian aprendeu a não deixar sua relação com a comida ser guiada pelo medo de engordar, nem pelo impulso de “comer as emoções”. “Não é que esses pensamentos não existam ou que eles jamais guiem alguma decisão, tem dias que me sinto mais cansada ou frustrada e busco conforto em alimentos mais calóricos que me trazem uma memória afetiva. Também posso controlar um pouco mais quando percebo que comi mais açúcar que o normal para um certo período. Mas isso não dita mais a minha vida, não tem mais protagonismo no meu dia a dia e não gera angústia ou sofrimento”, relata.
Pergunto a Mirian se ela tem algum conselho para as pessoas que estão passando pelo que ela passou, ou por uma situação parecida. O conselho é claro: buscar ajuda psicológica, porque o comportamento compulsivo e descontrolado – seja por comida, compras, álcool, drogas –, assim como a culpa ao comer e o medo de engordar, tem raízes emocionais e psicológicas. Foi o que ela compreendeu durante essa longa jornada de tratamentos e aprendizados sobre si mesma.
“Outra dica, para quem decidir pelo tratamento é: não se julgue, nem se culpe. O processo de recuperação é lento e cheio de altos e baixos e por isso exige muita paciência e persistência, é um dia de cada vez. É preciso mergulhar na sua história, se conhecer melhor e se reconhecer como uma pessoa inteira e não apenas como uma casca cheia de defeitos. E se perguntar: perfeita pra quem? Porque se está prejudicando a sua saúde física, sua saúde mental, sua segurança financeira, será que serve pra você? Eu acho que o primeiro passo para lidar melhor com tudo isso é a gente fazer esse movimento de cuidar da nossa cabeça, das nossas emoções, entender o nosso valor e entender que a gente merece mais do que passar a vida se anulando, se machucando e perdendo tempo, perdendo momentos e experiências que não vão voltar por achar que nosso corpo não é bom o suficiente para ser ocupado por nós.”