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Hematologia

Doença falciforme: Crises de dor prejudicam qualidade de vida do paciente

Publicado em 17/06/2022
Revisado em 05/07/2023

Enfermidade causa episódios de dor aguda que podem levar a longas internações em hospitais.

 

A doença falciforme é uma condição hereditária que causa alterações nos glóbulos vermelhos e é considerada a disfunção hereditária mais comum no Brasil.

Dessa maneira, os glóbulos vermelhos, que têm um aspecto levemente arredondado, se deformam e assumem um formato diferente, semelhante ao de uma foice, por isso têm o nome “falciforme”.

Por causa da mudança de estrutura, os glóbulos ficam “presos” e não conseguem levar o oxigênio aos órgãos e tecido do corpo. Essa “pequena” deformação causa danos sérios ao paciente, como anemia, icterícia ​​(olhos amarelados), cansaço, além das chamadas crises vaso-oclusivas (CVOs ou VOCs, em inglês, como é comumente conhecida no meio da saúde), episódios de dor aguda altamente debilitantes, que prejudicam a qualidade de vida dos pacientes.

Apesar da sua alta prevalência, 47% da população desconhece a condição, segundo pesquisa do Ibope. São cerca de 3.500 casos novos por ano. A incidência é maior em negros, porque a doença tem origem africana. Muitas pessoas têm o traço falciforme, o que significa que elas não desenvolvem a doença, mas podem transmitir o gene para as próximas gerações. Para que a criança nasça com a doença, é preciso que pai e mãe tenham o gene. Se apenas um dos pais tiver o gene, a criança pode nascer com o traço, mas não com a doença.

 

Diagnóstico e acompanhamento multidisciplinar

Hoje, a doença falciforme é diagnosticada através do Teste do Pezinho, feito logo após o nascimento. Pelo teste, o paciente passa a ser acompanhado pela equipe de hematologia em um centro de referência especializado. Por se tratar de uma doença crônica, também é fundamental o acompanhamento nutricional e psicológico. Fisioterapia também pode ser aliada no tratamento. 

Mas, além disso, ainda pode ser necessário o acompanhamento por outros especialistas, como neurologista, cardiologista e nefrologista, por exemplo, já que a doença falciforme pode causar uma série complicações, como hipertensão pulmonar, maior risco de acidente vascular cerebral (AVC), alterações nos rins que podem levar à insuficiência renal, retinopatia (lesões na retina) e úlceras nos membros inferiores. Pelo maior risco de infecções, é importante ainda ter acompanhamento odontológico, já que muitas infecções começam pela boca.

Como é uma doença crônica, o acompanhamento é para a vida inteira. “Todo estado tem o seu serviço de referência. Muitas vezes, o paciente mora longe do centro de referência e a gente recomenda o acompanhamento em conjunto na unidade de saúde perto de sua residência”, explica a dra. Rita de Cássia, hematologista. “Desde cedo, o que muda a história desses pacientes é a prevenção de doenças infecciosas, então eles também acompanham na unidade básica de saúde a questão das vacinas.”

Segundo a médica, anteriormente a expectativa de vida desses pacientes era de 55 anos. “Mas isso mudou com advento dos antibióticos, de um autocuidado melhor, já que os pacientes estão mais conscientes em relação à enfermidade, além das medicações que a gente teve nos últimos anos”, explica.

        Veja também: Anemia falciforme | Guilherme Fonseca



Descoberta tardia da doença pode deixar sequelas

A assistente social Sheila Pereira, de 41 anos, só recebeu o diagnóstico aos 7 anos de idade, quando sua mãe percebeu que a dificuldade para andar e as articulações inchadas poderiam ser sinal de algo sério. Naquela época, ainda não era feito exame para diagnosticar a condição no recém-nascido. A falta de conhecimento sobre a doença na época deixou a situação ainda mais difícil. “O primeiro diagnóstico foi de reumatismo, só que a medicação usada para reumatismo acabou me prejudicando”. A partir daí, foi feito um mapeamento genético e foi descoberto que o pai e a irmã mais nova de Sheila, na época com 2 anos, também tinham a doença, enquanto a mãe tinha apenas o traço falciforme – que é uma alteração genética e não a doença.

A diferença nos dois casos é que, na doença falciforme ocorre uma alteração genética na hemoglobina, que muda do tipo A para o tipo S. Já pessoas com o traço não desenvolvem doença falciforme e, portanto, não apresentam sintomas e nem necessitam de tratamento. Veja:

  • Pessoas que não têm a doença e nem o traço falciforme: Hemoglobina normal (AA);
  • Pessoas que têm a doença falciforme: Hemoglobina alterada em homozigose ou heterozigose com outras variantes (SS, SC, SD, SE, S/β0-talassemia ou S/β+-talassemia);
  • Pessoas que têm apenas o traço falciforme: Hemoglobina parcialmente alterada (AS).

Portanto, é preciso que ambos os pais possuam o gene para que a criança nasça com a doença. Se apenas um dos pais for portador do gene, a criança só poderá herdar o traço. No caso de Sheila, ambos os pais tinham o gene: o pai com a doença e a mãe com o traço. 

Com dores frequentes, as consequências na vida de Sheila foram muitas, desde a dificuldade de brincar como as outras crianças, e não participar das aulas de educação física, repetiu dois anos na escola devido às internações longas e recorrentes, o que ocasionou na interrupção dos estudos ainda na adolescência. A irmã mais nova de Sheila faleceu em 2013, aos 29 anos, por uma insuficiência renal decorrente da doença falciforme.

A expectativa de vida dos brasileiros é de 77 anos, mas de acordo com o estudo sobre mortalidade citado no início da reportagem, a doença falciforme pode estar relacionada a uma redução de até 37 anos de vida no Brasil. Segundo o estudo, as principais causas de morte entre pessoas com a doença são: sepse (infecção generalizada) e insuficiência respiratória. 

Sheila e sua irmã tiveram uma série de problemas decorrentes de tratamentos incorretos. Mas hoje, de acordo com a dra. Rita, a doença falciforme é bem conhecida tecnicamente. “O que acontece é que medir a dor é uma coisa muito particular. Então, às vezes, é aquele paciente que vai muitas vezes ao mesmo pronto-socorro. Ou seja, todo mundo já o conhece. Às vezes, a equipe pode diminuir esse entendimento do sintoma do paciente, pode não dar a devida importância, não valorizar a dor. Nossa missão é tirar a dor e não fazer julgamentos”, afirma.

 

Assista: Doença falciforme: Como é conviver com a dor?


 

 

Crises de dor são incapacitantes

Sheila conta que as crises começam com uma sensação de mal-estar, cansaço e fraqueza. Então, ocorre uma pontada de dor (às vezes, desencadeada por determinados movimentos) que vai aumentando aos poucos, até se tornar tão intensa que a pessoa fica impossibilitada de realizar qualquer tarefa. “Até hoje, tem aquelas dores que eu suporto, consigo fazer as coisas devagarinho, tratar em casa. Mas tem aquelas dores que vão crescendo ao ponto de ficarem insuportáveis, de a gente chorar. Aí tem que ir para o hospital, porque só com medicação na veia para melhorar”. Em alguns casos, também pode ser necessária uma transfusão por causa da falta de oxigenação no sangue.

O preconceito e o desconhecimento sobre a intensidade das crises podem ter um impacto muito negativo na vida dos pacientes. As dores são muito debilitantes e fazem a pessoa perder muitos dias no trabalho. Segundo a pesquisa internacional Sickle Cell World Assessment Survey (SWAY), feita com mais de 2 mil pacientes em 16 países, os pacientes afirmam ter perdido mais de um dia trabalho por semana (8,3 horas em 7 dias) por causa da doença. Por conta disso, é comum que na empresa ela tenha a imagem de alguém que é preguiçoso ou relaxado, por exemplo. Até mesmo amigos e familiares podem ter dificuldade em entender a situação. Por vezes, acham que o paciente está fazendo “corpo mole”.

 

Importância do cuidado com a saúde mental

Com tantas dificuldades e desafios que não se limitam apenas à saúde da pessoa, mas têm efeito em todas as esferas da vida, ter um acolhimento, uma rede de apoio e um atendimento psicológico é extremamente importante. “A doença traz vários vieses: de você se sentir incapaz, de você sempre achar que é diferente dos outros, sempre ouvindo comentários negativos, de sempre viver com esse medo da morte”, conta Sheila.

“É sempre esse recomeço. As coisas não te esperam, o sistema não te espera. O patrão não vai esperar aquele funcionário voltar. A escola não vai entender que aquele aluno faltou porque teve limitações. Hoje, com todos os avanços, a gente sempre passa para as pessoas: ‘você pode’. A gente pode, tudo dentro do nosso limite. Mas, para isso, tem que trabalhar o psicológico”, relata.

Atualmente, Sheila ocupa a presidência da Associação Pró-Falcêmicos (APROFe) – instituição sem fins lucrativos, e que tem a missão de ampliar o acesso aos tratamentos das doenças que afetam a população negra fundada por pessoas com doença falciforme e que busca atender pacientes com essa condição. Sheila conta que está sempre muito envolvida com os pacientes. “É onde estou hoje e foi onde eu aprendi a me aceitar e a conviver melhor com a doença”, conta. “Minha mãe não teve esse acolhimento, uma orientação. E hoje a gente consegue proporcionar isso para muitas famílias, que elas não estão sozinhas”.

Esse cuidado com a saúde mental deve se estender aos familiares e cuidadores dos pacientes, que na maioria das vezes são as mães. Muitas delas também adoecem, tamanho o estresse e a preocupação que a situação causa na vida delas. Por isso, é fundamental que essas pessoas tenham acolhimento e apoio psicológico, além da possibilidade de se dedicar às suas atividades e não viver somente para tratar a doença dos filhos. A mãe de Sheila acabou adoecendo e morreu aos 36 anos, após um AVC. “Não teve tempo, não teve um olhar para ela, um cuidado com ela mesma. É o que vejo hoje nas mães, porque elas deixam de se cuidar para cuidar da pessoa. É fundamental o cuidador ter essa ajuda psicológica”, explica a assistente social.

Para a dra. Rita, é muito importante a questão do autocuidado. “É o que faz a diferença nessa doença. Lembrar da medicação, lembrar da prevenção das vacinas, da prevenção oncológica, lembrar da hidratação (tomar de 2 a 3 litros de líquido por dia). Tem que ter os cuidados com a pele, os cuidados com a boca. O autocuidado aumenta a autoestima e, aumentando a autoestima, você vai querer estar sempre bem, você vai se amar e vai se sentir amado”, finaliza.

Veja também: Quais são as doenças mais frequentes na população negra?

 

Campanha #eusinto

Com o objetivo de chamar a atenção da sociedade e decisores de saúde para os desafios e preconceitos vividos pelas pessoas com Doença falciforme, esclarecer a população sobre a doença e buscar intervenções que realmente tragam o aumento e a melhoria de vida desses pacientes, a APROFe, em parceria com a ABHH – Associação Brasileira Hematologia, Hemoterapia e Terapia Celular- e apoio da Colabore com o Futuro e outras associações de pacientes, desenvolveu a campanha #EuSinto.

 Criada com o propósito de mostrar à população que a Doença falciforme é devastadora, mas não tem sinais aparentes e, por isso, é negligenciada pela sociedade, a campanha #EuSinto tem o intuito de trabalhar as políticas públicas, ampliando o acesso aos medicamentos, melhorando assim o cenário dos tratamento e qualidade de vida dos pacientes com Doença falciforme.

Além do enfrentamento das barreiras de iniquidade e preconceito, os pacientes com doença falciforme veem as oportunidades e esperanças do acesso a inovação em novas tecnologias em saúde serem preteridas em relação a outras doenças.

“Diante deste cenário e com o objetivo de aumentar a visibilidade da doença, queremos chamar a atenção da sociedade para a causa e tornar a saúde dos pacientes com doença falciforme uma prioridade do governo para melhorar, controlar e implementar e políticas públicas, sistemas de cobertura e disponibilização de cuidados e tratamentos, ressalta, Sheila.

 

Conteúdo desenvolvido em parceria com a NOVARTIS https://www.novartis.com.br/

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