Cirurgia de enxaqueca descomprime nervos envolvidos na dor, mas entidades de neurologistas são contrárias à prática. Entenda por quê.
Tratar enxaqueca não costuma ser fácil, principalmente por três motivos: multiplicidade de sintomas, tratamento caro e o risco de efeitos colaterais significativos.
O cérebro do indivíduo com enxaqueca é mais suscetível à dor. Fatores externos, como som alto, cheiro de perfume, estresse, alimentos gordurosos, que para uma pessoa com o cérebro “normal” passariam despercebidos, para o paciente com enxaqueca funcionam como um disparador. Em um momento de crise, o indivíduo deseja apenas que pudesse flutuar sozinho em uma sala escura e ficar quieto, até a dor passar.
Não é à toa que os neurologistas costumam descrever a dor da enxaqueca como um “sofrimento inútil”, porque, diferentemente do que ocorre com uma sinusite ou um osso quebrado, a dor da enxaqueca não tem nenhuma serventia para o organismo. Ela não alerta para nada.
O paciente com enxaqueca vive na expectativa de que a qualquer momento a dor vai chegar. Essa angústia de querer resolver o problema e se antecipar às crises gera uma procura por todo tipo de tratamento, na maioria das vezes sem nenhuma eficácia garantida. Há centenas de grupos de pacientes nas redes sociais trocando informações sobre medicamentos, chás e daith piercing — uma espécie de piercing que se coloca na orelha (pela compressão, funcionaria como um analgésico natural). Recentemente, a cirurgia de enxaqueca entrou na conversa.
A polêmica da cirurgia de enxaqueca
Convivo com a doença desde 2004 e ao longo desses anos tentei muitos métodos. Medicamentos, acupuntura, fisioterapia, terapia, meditação, mudanças na alimentação e estilo de vida. Como tudo na vida, há altos e baixos. Recentemente, alguns colegas me marcaram em um post de rede social que indicava que a Cruz Vermelha de São Paulo estava fazendo cirurgia de enxaqueca. Como não conhecia esse método, resolvi pesquisar conversando com alguns neurologistas (cefaliatras) e com o cirurgião plástico que trouxe a técnica para o país.
O procedimento ainda não é reconhecido pela Sociedade Brasileira de Neurologia e de Cefaleia e não entra nos protocolos de manejo de enxaqueca. A American Headache Society também não indica o procedimento na prática clínica por falta de estudos conclusivos. Logo, é difícil encontrar um neurologista que recomende a cirurgia.
Encontrei a dra. Thais Villa, chefe do setor de cefaleia da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), em seu consultório particular, em Moema, bairro de São Paulo, e ela estava bastante incomodada com a repercussão que o tema ganhara em veículos de comunicação e nas redes sociais. Na sua opinião, a divulgação confunde os pacientes, que, na esperança de encontrarem um tratamento promissor, acabam caindo em opções que não são bem conhecidas e ainda não têm eficácia e segurança atestadas. “É preciso entender o princípio básico do que é a enxaqueca, ou seja, uma doença multifatorial, química, do cérebro. Médicos da cirurgia plástica acreditam que o paciente sente dor porque o nervo trigêmeo está em contato anatômico com algo que o está irritando, com algum músculo, uma parte óssea do crânio, algum vaso; portanto, a partir do momento em que você desfaz esse contato, a dor desaparece. Só que a gente sabe que não é só isso. Observamos na clínica todos os dias. Não tem como operar algo que não é operável. Chega a ser bizarro”, afirma Villa.
Fui ouvir a opinião do cirurgião plástico que trouxe a cirurgia para o Brasil, o dr. Paolo Rubez, membro da Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica (SBCP) e especialista em Cirurgia de Enxaqueca pela Case Western Reserve University, dos Estados Unidos. Ele começou a implementar o procedimento há alguns anos, depois de ter feito um estágio clínico com o médico Bahman Guyuron (criador da técnica) em Cleveland, nos Estados Unidos, entre 2014 e 2017.
De acordo com o especialista, basicamente a cirurgia tem o objetivo de descomprimir e liberar ramos dos nervos trigêmeo e occipital (atrás da nuca) envolvidos em pontos de dor. “É uma doença que tem vários gatilhos por trás, claro, mas também existe o componente de compressão dos nervos, relacionada à liberação de neurotoxinas que desencadeiam um processo inflamatório. Cerca de 80% dos pacientes melhoram com a cirurgia e até 40% deles ficam totalmente sem dor. É um procedimento que existe há mais de 20 anos nos EUA”, explica Rubez, que já tratou 40 pacientes com a técnica.
Apesar de as sociedades e academias médicas consultadas (Sociedade Brasileira de Cefaleia e Academia Brasileira de Neurologia) não apoiarem o uso da cirurgia de enxaqueca, o Conselho Federal de Medicina (CFM) não impede a prática. Para passar pelo procedimento, que custa de 5 a 30 mil reais (muitos convênios cobrem e não é disponibilizado pelo SUS), o paciente precisa ter o diagnóstico de enxaqueca. Na Cruz Vermelha, a cirurgia é realizada pelo dr. Rubez e não é gratuita.
Maurício Nagata convive com a dor da enxaqueca desde o final dos anos 1980 e já foi inúmeras vezes ao pronto-socorro tomar medicação na veia, já que analgésicos comuns não funcionam mais. “Cansei de tomar um monte de remédios — os chamados preventivos — e sofrer por conta dos efeitos colaterais. A cirurgia foi uma tentativa. Mais uma, na verdade. Acredito que tive melhora parcial de uns 30%. Não sinto mais dor nos pontos operados. A intensidade e a frequência da dor diminuíram, mas não zeraram. A cirurgia foi algo complementar, mesmo. Acho que zerar a dor é muito difícil.”
O presidente da Sociedade Brasileira de Cefaleia (SBCe), dr. Elder Machado Sarmento, reforça que não há cura para enxaqueca e nem terapia milagrosa. “Não recomendamos o procedimento, pois além de ser extremamente caro e invasivo, não vai resolver o problema. Atualmente, há terapias mais eficazes que podem ajudar o paciente a ter melhora na qualidade de vida. É importante que o paciente encontre um médico especialista em enxaqueca para mudar hábitos nocivos, como o consumo abusivo de remédios para dor e, então, entrar com o tratamento preventivo”, defende.
O que vem sendo feito para tratar enxaqueca
Sabe-se que a doença está ligada ao desequilíbrio de substâncias químicas do cérebro chamadas neurotransmissores, entre elas serotonina, dopamina, noradrenalina e glutamato. É uma doença neurológica e genética (já são conhecidos mais de 60 genes de predisposição) e difere muito de uma dor de cabeça comum, que surge esporadicamente e passa com o uso de analgésicos simples. As crises de enxaqueca duram de 4 a 72 horas, mas podem se estender por semanas.
Atualmente, há opções de tratamentos preventivos com medicamentos das classes dos anti-hipertensivos, antidepressivos e antipsicóticos, que devem ser tomados diariamente a fim de equilibrar a composição de neurotransmissores. Na maioria das vezes eles funcionam, mas boa parte dos pacientes larga o tratamento por conta de efeitos colaterais significativos, como sonolência, ganho ou perda de peso e queda de cabelo.
Uma nova esperança vem com a chegada dos anticorpos monoclonais injetáveis anti-CGRP (peptídeo relacionado ao gene da calcitonina). Esse peptídeo é uma das principais substâncias responsáveis por disparar crises de enxaqueca. Basicamente, o objetivo é “sequestrar” o CGRP para diminuir sua concentração na corrente sanguínea e, assim, reduzir o risco de crises. Pela primeira vez na história um tratamento foi desenvolvido especificamente para enxaqueca. Para a grande maioria das pessoas, não há efeitos colaterais significativos além de dor ou sensibilidade no local da injeção, que é aplicada no braço ou na coxa. Até setembro de 2019 o medicamento se encontrava sob análise na Câmara de Regulação do Mercado de Medicamentos.
Se você tem enxaqueca ou conhece quem tem, é importante ficar de olho nos gatilhos. Eles variam muito de pessoa para pessoa, mas, aparentemente, luz, barulho, comidas gordurosas e álcool são universais. Se tem algo que aprendi na prática é que somente o controle desses fatores não irá livrá-lo da dor. É necessário ajuda especializada, principalmente se você toma mais de dez comprimidos analgésicos por mês. Por mais que seja difícil, insista na busca por um tratamento eficaz. Lembre-se: não é normal ter dor.